Resenhas

Nathy Peluso — GRASA

Em segundo disco de estúdio, cantora argentina, mesmo entre deslizes, potencializa seu discurso e passeia por pop, funk, trap e bolero

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Ano: 2024
Selo: 5020 Records/Sony Music Entertainment España
# Faixas: 16
Estilos: Pop latino, Rap, Tropical, Funk
Duração: 43'
Produção: Nathy Peluso e Manuel Lara

Quando subiu ao palco do Grammy Latino de 2021 para receber o prêmio de Melhor Álbum de Música Alternativa por CALAMBRE (2020), é provável que Nathy Peluso tenha sentido um duplo frio na barriga. O primeiro deles, claro, pela consagração; o segundo, diz respeito à vindoura cobrança por um sucessor que estivesse à altura. Feita uma mulher de superlativos e consolidada como nome caro da indústria pop, seria natural o gesto de reconhecer seu valor, seja em termos de tempo, amor-próprio ou cachê.

Em GRASA (2024), álbum visual recém-lançado, isso se mostra recorrente. É certo dizer que os visuais, incluindo a capa, são pautados por uma lógica de improviso, com pouco a acrescentar em sua dispersão — um bom reflexo do título, que em português quer dizer “gordura”, ou refere-se ainda a “alguém com hábitos e preferências vulgares”. Esse detalhe não borra a potência e a verborragia da narrativa, que sugere um aprofundamento de velhos temas e gêneros musicais.

Tal escolha ganha tração, justamente, na ausência do multipremiado produtor portenho Rafael Arcaute (Luis Alberto Spinetta, Babasónicos e Calle 13), que nos últimos anos, tamanha sua popularidade, se converteu em uma espécie de “Jack Antonoff latino”. Agora de mãos dadas com o venezuelano Manuel Lara, a cantora decidiu admitir ambições desmedidas, vez ou outra embaladas por dramas dignos dos filmes de máfia. Em “CORLEONE”, bolero ao qual atribui as honras inaugurais e pode ser lido como síntese do enredo, assume um tom existencialista para descrever uma ligação confessional feita com a amiga Tatiana.

Como acontece na salsa “LA PRESA” e em outros momentos, Peluso opta por trilhar um caminho em que se enamoram a todo momento o tradicional e o moderno. Longe de ser um problema, esse exercício é o que sustenta, principalmente do ponto de vista lírico, a existência de uma persona kitsch, que gosta de repetir milanesa e dirigir Mercedes, mas que, pela mesma razão, firma seu lugar de singularidade tanto no pop alternativo quanto na música urbana. Ambos os espaços, já sabemos, por vezes, transbordam obviedades e padrões inalcançáveis.

Ao embarcar em um voo de alta tensão — tônica que a leva, em seguida, para os braços do hip-hop — o ouvinte se detém em “APRENDER A AMAR”, faixa curta demais e que expõe uma das principais deslizes do projeto. Conforme avança, GRASA vai sendo atravessado por repetições autoafirmativas, que não justificam sua extensão e, em consequência, limitam o desenvolvimento de questionamentos relevantes.

É o que propõem as rimas ferinas da referida música, em que são revistos temas como disciplina, lábia e promessas. “Sou uma idiota quase clássica”, diz a cantora em um dos versos. Na sequência, provoca: “Ainda que adocemos a política, ela segue com gosto de cimento / Todos queremos uma revolução, mas quem é que dedica a ela um momento do dia?”.

Raros são os momentos em que Peluso fala sobre dores do amor romântico. Sob um viés inegavelmente feminista, reitera, com razão, que sua prioridade está no bem-estar e nas metas. O descarte das fórmulas clichês não a encarcera em isolamento, mas um exemplo prático de como essa direção se estabelece é a forma como aparecem os colaboradores, em sua maioria eclipsados. É sem um propósito que vá além do entretenimento que o trap “TODO ROTO” e a faixa “MANHATTAN” soam enfadonhos.

Quem salta aos olhos é “MENINA”, funk com pinceladas de ostentação entoado na companhia de Lua de Santana, brasileira radicada na Espanha. Mesmo que o movimento surfe as ondas do verão europeu já há algum tempo, a escolha representa mais um sintoma de sua consagração e respeito internacional. Ainda em se tratando de triunfo, “EL DÍA QUE PERDÍ MI JUVENTUD”, com Blood Orange, é um lembrete do estandarte oferecido à nostalgia nos processos de criação. Em meio a uma reescrita de si que ecoa, facilmente, a melancolia do grupo argentino Serú Girán, Peluso se permite expor sentimentos com vulnerabilidade.

Hábil com as baladas, que, aliás, lhe renderam o primeiro hit radiofônico anos atrás, ela dá vida a “ENVIDIA” partindo de uma justaposição de sons e ideias em que bifurcam a delicadeza do piano e um exercício aguerrido de alteridade. “Dizem que Deus dá uma oportunidade a todos aqueles que pedem / Mas sem fazer esforço, secando os demais, não se pode conseguir”, entoa, reconhecendo que nasceu para vencer e só lhe resta ignorar seus detratores. De veia pop, sobressaem-se “LEGENDARIO” e “IDEAS RADICALES”, canções que, sem grande apelo, vislumbram uma segunda chance nos palcos. A mesma sorte não deve conquistar “REMEDIO”, faixa que, em um tropeço, evoca o termo quilombo.

A expressão informal, usada com naturalidade por um vasto número de argentinos, tem origem racista. Conforme o dicionário da Real Academia Española, seu significado pode variar a depender do contexto: “imbróglio, bagunça, problema ou conflito” — todas palavras que, na ausência de uma leitura crítica, suscitam desconforto mundo afora, sobretudo, quando reproduzidas por uma artista de sua geração.

No frescor do lançamento, caberia uma breve leitura semiótica da capa. Mais confortável consigo mesma, Nathy Peluso faz um autorretrato no espelho do que parece ser um estúdio de dança, intercalando calma e desejo de frenesi. Ao lapidar suas ideias, mostra, dentro e fora das entrelinhas, que seu deleite está, mais do que nunca, na possibilidade de ser — e para se encontrar com ainda mais força é preciso, antes de qualquer coisa, encarar-se.

(GRASA em uma faixa: “CORLEONE”)

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ARTISTA: Nathy Peluso