Resenhas

Nicolas Godin – Contrepoint

Disco do músico francês, integrante do duo Air, intriga em primeiro disco solo

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Selo: Because Music
# Faixas: 8
Estilos: Eletrônica, Progressivo, Instrumental
Duração: 34:19
Nota: 3.5
Produção: Nicolas Godin

Monkeybuzz, sempre atento ao que acontece por aí, já entregava de bandeja para você o serviço sobre essa estreia solo de Nicolas Godin, ou, se preferir, 1/2 Air. O duo francês, que ele forma ao lado de Jean Benoit Dunckell, notabilizou-se por erguer uma muralha diferente de nostalgia, como se canções nunca ouvidas por todos nós parecessem, assim, sem mais aquela, conhecidas e familiares aos nossos neurônios. Sabemos bem que vários artistas têm essa capacidade de se valer de boas influências e referências para dotar suas obras de relevância e pedigree. Com Air o buraco sempre foi mais embaixo, suas criações, ainda que familiares ao extremo, sempre trouxeram um senso de futuro que chegou, de “para o alto e avante” ou “para o infinito e além”. Alguns dirão que é futurismo, aquela coisa de cultuar um projeto de modernidade que foi abandonado aos poucos pela sociedade, que resolveu abraçar, em vez dos foguetes interplanetários e dos carros voadores, o smartphone e a banda larga. Cada um com seu cada qual.

A chegada de Contrepoint acena com amor para essa característica paradoxal no uso do tempo. Godin se vale de algumas composições de Johann Sebastian Bach, sim, ele mesmo, mas não vai diretamente nas fontes das interpretações mais clássicas, optando por recorrer às leituras empreendidas pelo pianista canadense Glenn Gould. Tal escolha é coerente e mostra-se acertada, uma vez que Godin irá dar seu próprio testemunho musical ao longo das oito canções do álbum, fornecendo pontos de vista que variam de acordo com sua visão, que não se mostra uniforme em relação à obra do mestre alemão, abraçada com força como ponto de partida estético para empreender esse vai e vem do futuro para o presente, através do passado. É complexo, mas fácil ao mesmo tempo, mantendo a incidência de paradoxos no nível aceitável.

Orca, a primeira canção do álbum, fornece uma ambiência daquelas em que as pessoas costumavam sonhar com um futuro em que carros voariam por aí e, para isso, pensavam em Cadillacs alados, não numa novíssima forma e modelo de veículo. É aquela coisa de “enfuturar” passado, coisa que Godin faz através de fraseados de guitarra sintetizados e filtrados. Widerstehe Doch Der Sünde vem logo em seguida, inspirada na Cantata BWV 54 e lembrando bastante a sonoridade de Air, com levada marcial de baixo/bateria, devidamente turbinados por vocais robóticos, teclados aéreos e um piano que puxa todo mundo para a Terra, como se fosse um norte na bússola. Clube Nine faz uma gracinha com o ouvinte e substitui o centro de Bach e coloca o veterano jazzista Dave Brubeck no lugar, citando explicitamente a clássica Take Five, uma das mais conhecidas composições do Jazz do século 20 e que, certamente, você já ouviu por aí. Clara é outra surpresinha, trazendo uma estrutura angular e os vocais entediados de Marcelo Camelo, surgindo em meio ao caos silencioso, cantando em português repetitivo o verso: “O que ela quer é solidão”, em meio violinos e pianos.

Glenn, como o nome já entrega, é homenagem ao pianista canadense Gleen Gould, fonte de inspiração assumida do disco. Engraçado que Godin brinca de esconde-esconde e oculta os pianos mais óbvios da canção, optando por teclados e cordas que vão pontuando a melodia, que poderia ser um primeiro lugar de audiência numa hipotética estação espacial, desde que projetada em 1963, no máximo. Quei Due vem com letra em italiano, recitada pelo poeta Alessandro Baricco, com quem Air já colaborara no passado. O clima é de luxo instrumental e expectativa, algo como uma sobra de trilha sonora de filme da década de 1960, com moldura musical acima de qualquer suspeita. Bach Off tem percussões intrigantes e um inesperadíssimo saxofone, que aparece do nada, pegando todos de surpresa e anuncia um final cinematográfico além do alcance.

Por mais que pareça devidamente escrutinado, Contrepoint é intrigante o suficiente para sustentar várias audições, de preferência com fones de ouvido, para perceber as mil pistas que Godin deixa ao longo do caminho, sempre levando as obviedades para passear em caminhos inesperados. Um disco meticuloso e bastante interessante.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.