Resenhas

Open Mike Eagle – Anime, Trauma and Divorce

Animações japonesas e cultura pop se combinam a temas como divórcio e crise da meia-idade em um dos grandes lançamentos de Rap do ano

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Ano: 2020
Selo: Auto Reverse
# Faixas: 12
Estilos: Rap, Indie Rap, Art Rap
Duração: 34'
Produção: Jacknife Lee, Black Milk, Frank Leone e outros

Anime, trauma e divórcio. Os três temas – os quais, para um olhar mais desatento e superficial, parecem não ter lá tanta ligação – são a força motora do novo álbum de Open Mike Eagle. Apesar de sugerirem uma metáfora, os assuntos aparecem de maneira literal pelo disco de 12 faixas. Com produção executiva de Jacknife Lee (R.E.M., U2, Bloc Party), o novo projeto de Eagle toma um rumo diferente de Brick Body Kids Still Daydreamin (2017): enquanto o aclamado trabalho antecessor explora o tema da destruição do conjunto habitacional Robert Taylor Homes, em Chicago, Anime, Trauma and Divorce é um álbum de caráter mais pessoal. Mike, aos 39 anos de idade, se esforça para expressar os próprios sentimentos acerca de fracassos profissionais, traumas antigos que motivam escolhas no presente e a dor do fim de um relacionamento – tudo isso enquanto tenta achar a mesma motivação e coragem dos protagonistas de animação japonesa.

Em entrevistas recentes, Open Mike Eagle disse que, a princípio, o disco não seria tão pessoal. Originalmente, a ideia era usar o anime para abarcar conceitos mais profundos e, principalmente, construir paralelos com a narrativa clássica dos Shōnen, aquele tipo de anime clássico, como Naruto e One Piece, em que o personagem está sempre num processo de superação e em busca de um sonho utópico. No entanto, essa ideia foi transformada – e elevada a um nível bem mais pessoal – após duas grandes rupturas no ano de 2019: o cancelamento de The New Negroes (2019), seu show no Comedy Central, e o fim de um casamento de 14 anos.

“Everything Ends Last Year” é a música núcleo do projeto. Sob produção de Caleb Stone, os versos acompanham o instrumental baseado em cordas, enquanto Eagle traz suas confissões, até desabafar em um silêncio pesaroso e cansaço frustrante. Em seguida, “Black Mirror Episode” dá conta exclusivamente de detalhar o processo de término, com o rapper relatando como a série distópica da Netflix arruinou seu casamento. “Thought that it would be another Lost In Space / Now I gotta move and get my own damn place”.

Apesar do gancho do projeto ser baseado em dores e perdas de Mike, especialmente as do ano passado, o humor satírico e inteligente pelo qual ele se tornou notável ainda (e felizmente) exerce um importante papel. Em diversos momentos, remete ao tom de Childish Gambino em CAMP! (2011) e Because The Internet (2013). A excelente “Sweatpants Spiderman” é Eagle se colocando em paralelo com o Peter B. Parker de Spiderman: Into The Spider-verse (2018), em uma conversa sincera sobre as incertezas ao chegar à meia-idade. “Gotta start doing it different, review what I’ve written / Start thinking bout moving on, start thinking bout quitting” – rima ele, em versos de extrema sinceridade. “WTF is Self Care” é uma divertida reflexão sobre o que de fato significa o termo-tendência nos dias de hoje e que, para Eagle, ainda parece ser um pouco turvo. “Yeah, get a cup massage, that shit works bro / Shit fuckin hurt though / (What the fuck is self care?) / For obstacles that you struggle past, the key is taking bubble baths / (What the fuck is self care)?”

O anime aparece com mais evidência em músicas como “Headass (Idiot Shinji)”. Com produção de Black Milk, a canção é um hino em homenagem à inaptidão social do protagonista de Neon Genesis Evangelion – e, claro, a todos que passam pela mesma dificuldade. “Bucciarati”, quarta faixa do disco, carrega o nome de um personagem de Jojo’s Bizarre Adventure, que tem o poder de criar um zíper em qualquer superfície, inclusive em si mesmo. A composição é uma metáfora sobre tentar manter as coisas no lugar e tem a excelente participação de Kari Faux, dona de versos potentes. “Escaped the box, now I’m pushin’ my barrier / So why do I still feel like a moral grey area?” “Joestar (Black Power Fantasy)” é uma das canções mais positivas do projeto e outra referência a Jojo’s, com Eagle encontrando autoconfiança ao se afirmar como membro da família Joestar, protagonista do anime.

Imergir em assuntos pessoais nem sempre é o suficiente para uma boa obra de arte – da mesma forma, um bom conceito, sem profundidade, não é o bastante para segurar um repertório. Entretanto, em Anime, Trauma and Divorce, Open Mike Eagle faz com que esses três assuntos, de extrema importância para ele, conversem entre si de maneira franca, sagaz e carismática. O resultado é um conceito refinado e um repertório cativante. Além disso, dos snares sincopados e synths de Frank Leone aos beats do Black Milk, a produção é afiada e sempre em harmonia com o que a ideia da música pede. É um dos grandes discos de Rap do ano – fruto de uma mente criativa, lotada de referências e que sabe lidar de forma sincera com as próprias dores.

(Anime, Trauma and Divorce em uma faixa: “Everything Ends Last Year”)

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