Resenhas

Os Fonsecas – Estranho Pra Vizinha

Estreia do grupo paulistano mescla referências clássicas do MPB e do rock psicodélico, criando jogo interessante entre o estranho e o familiar

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Ano: 2024
Selo: Seloki Records
# Faixas: 10
Estilos: MPB, Rock, Psicodelia
Duração: 29'
Produção: Os Fonsecas

O estranho é relativo. É algo que se opõe ao familiar e que, portanto, carrega um entendimento individual. Entretanto, as diferentes expressões e definições do “estranho” tocam em um ponto comum: chamar a atenção. Seja compreendido como o completo oposto do esperado ou um desvio mínimo da norma, o fato é que somos fisgados quando percebemos a presença do estranho. E a partir disso, reavaliamos aquilo que consagramos como forma padrão. Assim, apesar de antônimos, o “familiar” e o “estranho” são indissociáveis – uma definição depende da outra. Tudo isso pode parecer uma tese de estética complicada, mas começa a ganhar contornos mais palpáveis a partir do momento em que escutamos obras capazes de jogar esse jogo. Um exemplo claro e didático das estranhezas do familiar está na banda Os Fonsecas.

Formado por integrantes imersos na cena alternativa paulistana, o grupo tem uma sonoridade de referências distintas. Há uma inserção clara na categoria “rock”, mas apenas esse rótulo diz muito pouco sobre seus discos. No EP Fundo da Meia (2020), ouvimos guitarras distorcidas, baterias groovadas e fortes e um vocal estridente – elementos que, listados separadamente, dizem pouco sobre o produto sonoro final. Há algo de reconhecível nas referências, mas elas não são abraçadas a ponto de se enquadrarem em alguma estética – flertes com samba, eletrônico e pop são algumas das possibilidades que o EP ativa (tudo isso em apenas quatro canções). Com uma formação sólida, ficou claro que o grupo tem uma dinâmica fértil, que brinca com influências de forma muito particular. Agora, com o disco estreia, o momento passa a ser menos, digamos, aleatório, a favor de uma formalização mais objetiva, ainda que livre – ou intencionalmente estranha –, destes primeiros experimentos.

O jogo entre estranho e familiar é tão forte que figura no nome do disco. Estranho Pra Vizinha contrapõe diferentes abordagens sem fazer disso algo completamente hermético. O rock brasileiro dos anos 1970-1980 está presente com força, porém revestido em distorções do punk e do indie; o auto-tune, tão criticado pelos puristas, é recebido de braços abertos pela banda; as texturas de sintetizadores, por sua vez, são recolocadas junto a vocais ágeis e irônicos, quebrando a seriedade e os padrões repetitivos. Este é um trabalho conduzido a partir de diferentes lugares familiares, que se estranham quando colocados em choque, mas que permitem novas interferências. Ao mesmo tempo, há um cuidado, uma parcimônia no manuseio daquilo que pode parecer “consagrado” – o que dá poder às maneiras de repensar propostas consolidadas

O início do disco já é arrebatador. O vozerio sutil da faixa de abertura “Não Peço Mais” é interrompido abruptamente por uma bateria quebrada e vozes distorcidas típicas do indie rock. Já “Olho Grego” fisga o ouvinte pela imersão nos anos 1960, repleta de ecos de Mutantes (e de entusiastas desse legado, como Boogarins e O Terno). “Vendaval” vem com o suingue das percussões psicodélicas, algo que transborda para o terreno da MPB, como o Gilberto Gil dos anos 1970-80. “Pirata” abre mão do ritmo para se manter dispersa no ar, entre texturas descompassadas e diferentes frequências de barulho. “Métrica” se destaca pela forma como diferentes linhas de sintetizadores conversam e se tensionam mutuamente, e, por fim, “Hoje Mais Cedo” encerra o disco com uma boa fritação psicodélica.

A partir da sobreposição de elementos e influências, Os Fonsecas apresenta um sólido disco de estreia, que reúne formas diferentes de estranhar o conhecido – ou (re)conhecer o estranho. As nove faixas trazem temperos do caldeirão musical brasileiro, mas, com um ingrediente psicodélico autêntico, extrapolam o revivalismo. Tem a ver, afinal, com um vizinho, como colocado no título do disco – algo que está ali acessível, ao lado, mas que desconhecemos – ou estranhamos – ao o conheceremos de perto e colocá-lo sob nossa perspectiva.

(Estranho pra Vizinha em uma faixa: “Vendaval”)

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ARTISTA: Os Fonsecas

Autor:

Produtor, pesquisador musical e entusiasta de um bom lounge chique