Resenhas

Elza Soares – Planeta Fome

Planeta Fome é uma genuína declaração de amor ao Brasil que tira o patriotismo das mãos do fascismo e o coloca em seu devido lugar: ao lado de um olhar crítico e sensível que respeita a história deste país

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Ano: 2019
Selo: Deck
# Faixas: 12
Estilos: MPB, Samba, Rock Alternativo
Duração: 42'
Nota: 5
Produção: Rafael Ramos

Os gemidos magoados quase sufocados pela belíssima linha de guitarra do BaianaSystem na primeira faixa, “Libertação”, anunciam a voz inconfundível de Elza Soares que afirma resoluta: “eu não vou sucumbir”. Seguindo os grandiosos A Mulher do Fim do Mundo (2015) e Deus é Mulher (2018), Planeta Fome chega como terceiro disco de canções inéditas da artista com a mesma potência lírica dos antecessores e um resgate ao Samba, gênero que consagrou a cantora. Conceitualmente, o LP fala de retornos e de um amor inexplicável e incorrigível.

O interlúdio “Menino” é um respiro necessário depois da faixa de abertura e nesse Samba marcado, Elza canta “sei que é muito triste não ter casa, não ter pão”, explorando o significado mais literal das tantas fomes sobre as quais a artista vai se debruçar no disco. Planeta Fome, inclusive, é um nome que remete ao pontapé inicial de sua carreira no programa do Ary Barroso, da Rádio Tupi. Em resumo, o prêmio para a nota 5 estava acumulado e um filho de Elza estava muito doente, a então jovem de 21 anos em uma tentativa desesperada de conseguir dinheiro para levar seu filho ao médico foi ao programa cantar. Pegou as roupas da mãe, muito maiores que seu corpo, e toda presa em alfinetes decidiu se apresentar. Ary tentou fazê-la de chacota e, depois de uma resposta atravessada, ele perguntou de que planeta Elza tinha vindo, ela respondeu o mesmo que o dele, “Planeta Fome”. Nesse dia a artista cantou “Lama”, levou o prêmio de nota 5 e ao final de sua apresentação Ary a abraçou e disse que naquele momento nascia uma estrela.

Sonoramente, a virada de “Menino” para “Brasis” é brilhante. Entramos de cabeça em uma análise dura e valiosa sobre o país, em uma fusão de Samba e Rock alternativo extremamente cativante. Os backing vocals são usados com preciosismo, o que faz com que cada entrada deles na faixa seja um deleite. Com a produção de Rafael Ramos, nesse trabalho um movimento criativo suscita o outro, gerando uma cadência ótima. Em “Blá Blá Blá”, a cantora fala explicitamente sobre alienação política em cima de uma guitarra distorcida violenta e o silêncio, sempre muito bem utilizado, abre espaço para a poderosa voz de BNegão em tom de confidência falar sobre a desesperança em ficar em um país no qual a vontade democrática pede retrocesso, “Me dê motivo para ir embora, estou vendo a hora de te perder”, canta. É dessa mistura de sentimentos, entre ir e ficar, se é que existe opção, que chega “Comportamento Geral” e se as faixas anteriores dialogam com uma análise ampla do Brasil, essa é um discurso direto a quem defende a linha política atual. A faixa é uma releitura do Samba de Gonzaguinha de mesmo nome, lançado em 1994, no álbum Meus Momentos, agora com marcas de Rock e o scat singing característico de Elza, que tornam a letra (tão contemporânea) ainda mais ácida, na tangente do escárnio. A capa do álbum, desenvolvida pela brilhante Laerte Coutinho e pelo Pedro Hansen, sintetiza essa postura da artista: muita informação e uma mulher que não vai medir palavras.

Vale lembrar que a Elza já teve que sair do país e morou com Garrincha por 4 anos fora do Brasil após sofrer um atentado em que sua casa no Jardim Botânico foi metralhada por agentes da ditadura militar. Nessa noite, seu piano foi partido ao meio pela quantidade de disparos, ela perdeu um amigo e um bilhete foi passado por debaixo da porta para que eles saíssem do país em 24h. O destino, no susto, foi a Itália, onde foram recebidos por Chico Buarque. Posto isso, todas as discussões propostas até então são muito pessoais e quando ouvimos BNegão ou Elza falando sobre deixar o país, não é com a finalidade de uma letra alarmista, mas sobre uma memória dolorosa, mais latente do que nunca. “Tradição”, “Lírio Rosa” e “Pequena Memória para um Tempo Sem Memória” são canções angustiadas que marcam um novo momento do álbum, amargo como o vislumbre da volta de um regime não-democrático. A lírica profunda, clássica da MPB, em “Lírio Rosa” funciona como uma poderosa balada de amor ao país, “Meu colírio é você, meu olhar brilha em você, minha vida em você – que fez de mim um sol (…) Deu para mim um som, fez o que eu sou”, diz. 

Elza Soares, hoje, significa mil e uma formas de fazer Samba e, curiosamente, sempre foi quando ela fugiu do óbvio que voltou a ficar em evidência para o público, certamente pela sua incrível potência em apontar tendências e também pela sua maleabilidade musical, herdada dos tempos de crooner. “Não Tá Mais de Graça” é uma faixa-resposta para seu clássico “A Carne”, do álbum Do Cóccix Até o Pescoço (2002). E se essa é uma obra que carrega o samba na coluna flertando com o Hip-hop, Planeta Fome é Samba na coluna flertando com o Rock. A composição também não fica para trás em comparação à faixa de 2002, “Não tem bala perdida, tem seu nome, é bala autografada” declara. Uma curiosidade que Elza contou na audição do álbum, ainda sobre essa música, é que o verso original era “O que valia um quilo, hoje vale uma tonelada” e ela trocou para “O que não valia nada, hoje vale uma tonelada”, refletindo sobre sua trajetória marcada pelo racismo do mercado musical, da crítica, da opinião pública.

Sobre as participações, o disco novo conta também com Virgínia Rodrigues, cantora de Samba atualmente em turnê com seu álbum Cada Voz É uma Mulher (2019), e Rafael Mike, um dos membros do Dream Team do Passinho, grupo de Funk do Rio de Janeiro. Pedro Loureiro, diretor criativo de Planeta Fome e empresário de Elza, também arrisca algumas rimas em “Blá Blá Blá”. “Não Tá Mais de Graça” compõe a série mais combativa e enérgica do álbum, com “País do Sonho”, “Virei o Jogo” e “Não Recomendado”. “País do Sonho” assim como “Tradição” instiga nossa esperança na luta, trazendo o patriotismo para um campo de transformação e legítimo poder ao povo. “Virei o Jogo” é aquela música no fim de uma sequência eletrizante de um filme de ação em que já estamos na beira da poltrona nos segurando com força. Assim, “Não Recomendado” está para Planeta Fome como “Formation” para o Lemonade (2016), de Beyoncé: uma música hino de rolar os créditos depois de uma gigante obra.

(Planeta Fome em uma música: “Brasis”)

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ARTISTA: Elza Soares
MARCADORES: MPB, Rock Alternativo, Samba