Ao ler o título Portal, é imediata a interpretação de que a obra se propõe a ser a entrada para uma nova dimensão, como se o play permitisse o acesso a um lugar transcendental promovido pela música. Não é bem assim. Mesmo uma audição menos atenta revela que o álbum traz um registro de um Rashid que, ele sim, voltou aqui ao nosso plano após visitar uma nova dimensão – no caso, a paternidade.
Se antes “em matéria de amor era analfabeto”, ele é hoje um homem transformado e pronto para ler a vida a partir das novas lentes que ganhou com esse amor. Portal não é, por isso, uma obra de um tema só. Pelo contrário, suas nove faixas passeiam por assuntos que remetem também a experiências que o rapper viveu há muito tempo, ou ainda outras histórias que, não sabemos, podem ser fictícias, todas escritas à luz dessa nova ótica.
Não seria difícil entender que Portal surgiu imediatamente após Movimento Rápido dos Olhos (2022), mas ele mesmo explica isso em “Cairo”: “Na mó loucura tava terminando um disco / E mais ansioso pelo próximo ultrassom”. Os dois álbuns são pontas diferentes do mesmo pêndulo. Enquanto o anterior foi milimetricamente calculado, cheio de recursos narrativos e ambições para além da música, o novo segue o mesmo nível de qualidade (em produção, letras e arranjos) e na mesma potência de suas mensagens, mas de maneira muito mais orgânica.
Afinal, “vida” é a palavra por trás de toda a obra – a pulsão que o novo traz, o sopro de espiritualidade que transita pelos versos e, é claro, a nova vida que sua família experimenta com a chegada do bebê. Rashid aproveita a nova força para revisitar lugares temáticos por onde sua música já passou, com a mesma intensidade que sempre lhe foi presente – “Frustração”, por exemplo, não segura seu nervosismo.
A liberdade musical com que ele sempre trabalhou é novamente abraçada ao longo do disco, de um Lenine no refrão da também nervosa “Depois do Depois” à doçura do vocal de Melly em “Levante”. O lado mais pop do rapper convida Lagum para a radiofônica “Sem Norte”, e aquele Rashid criativamente inquieto convoca Péricles não para uma música romântica, mas para a força melancólica de “Um Tom de Azul” – clímax absoluto da obra. Com grande fluidez, ele passeia por esses climas e ainda entrega duas das melhores músicas que já lançou, em um terreno do rap com o indie brasileiro: “Castelos de Papel” e “Olha Quem Voltou”, que encerra a obra.
A escolha da faixa foi certeira para comunicar que Rashid retorna ao mundo após ter passado pelo tal Portal. É ele mesmo, como o conhecemos, mas em uma versão evoluída, ainda melhor letrada em seus sentimentos e com fôlego vital renovado. De certa forma, sua vida recomeça agora. E, talvez, sua discografia também.
(Portal em uma faixa: “Um Tom de Azul”)