Resenhas

Rosalía – MOTOMAMI

Destemida e maiúscula, artista barcelonesa cria autorretrato que une experimentalismo e apelo pop – e entrega um dos grandes discos do ano

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Ano: 2022
Selo: Columbia/Sony
# Faixas: 16
Estilos: Pop, Pop Eletrônico, Avant-Reggaeton
Duração: 42'
Produção: David Rodríguez, El Guincho, Ging, James Blake, Michael Uzowuru, Nick León, Noah Goldstein, Pharrell Williams, Rauw Alejandro, Roland Gajate Garcia, Rosalía, Sir Dylan, Sky Rompiendo, Tainy, Tayhana, Teo Halm e The Weeknd

Rosalía repete “Yo me transformo” oito vezes em “SAOKO”, carro-chefe de MOTOMAMI. Em comparação a uma borboleta e a uma chuva de estrelas cadentes, a artista barcelonesa se descreve como um ser cambiante e argumenta a cada faixa como sua personalidade consegue ocupar os mais variados espaços com grande naturalidade, do lugar pop no qual foi inserida nos últimos anos a um grau de experimentação distante dos hits.

Ela chegou a dizer que este seu terceiro álbum era o mais pessoal que ela já fez, ao ponto de se referir a MOTOMAMI como um “autorretrato” – e o convite parece ser conhecer a pessoa por trás das faixas por meio da soma de suas tantas características presentes em cada música e vinheta no repertório. Por conta disso, a audição do disco expande consideravelmente a percepção de quem a cantora é, principalmente ao seu público adquirido não com o lançamento de El Mal Querer (2018), mas com os singles da entressafra dos dois álbuns.

“SAOKO” e “CHICKEN TERIYAKI” fazem uma ligação mais direta com esses hits dos últimos anos, como “Con Altura”, “Aute Cuture” e “Yo x Ti, Tu x Mi”, em diálogos com o pop de influência caribenha e a música eletrônica, que se estabeleceu como uma das principais tendências em todo o mundo, incluindo o Brasil. Além disso, ter gravado “La Noche de Anoche” com Bad Bunny incrementou sua habilidade com o reggaeton do mais alto status. Ainda assim, ambas as faixas não escondem suas vontades de conquistar o ouvinte não no prazer imediato, mas no desafio aceito.

Toda a audição de MOTOMAMI é tão exagerada, ou mesmo agressiva, quanto seu título em caps, com timbres graves e batidas secas, como mandam as tendências da música eletrônica mais vanguardista nesses últimos tempos. São esses elementos que fazem “BIZCOCHITO”, por exemplo, estar sempre ali à beira do incômodo, apesar de suas tantas cores, ou que “CUUUUuuuuuute” seja tão tensa em sua imprevisibilidade, mesmo a faixa sendo literalmente carnavalesca. A faixa-título, praticamente uma vinheta de um minuto de duração, é tudo o que você não espera de uma cantora que alguém muito provavelmente chamou de “nova sensação do pop” ou algum termo dinossáurico equivalente.

“BULERÍAS”, “COMO UN G” e “DELIRIO DE GRANDEZA” são as músicas que mais se ligam ao que Rosalía nos deu em El Mal Querer – baladas que resgatam sua formação no flamenco e a interpretação tão característica da cantora. Mas o que marca a audição é o peso, o grave e as curvas bruscas que uma faixa consegue fazer. Nos momentos mais suaves, “G3 N15” e “DIABLO” (com James Blake) não tentam esconder suas intenções de serem mais para os fones de ouvido atentos ao disco como um todo do que às playlists feitas por algoritmos.

Os outros singles do disco, “LA FAMA”, “CANDY” e “HENTAI” também seguem essas mesmas qualidades. Enquanto essa última se constrói como uma balada minimalista que, de repente, recebe a intrusão de elementos que uma rádio dificilmente aprovaria, “CANDY” é uma espécie de hit discreto, de volume mais baixo que de costume, com uma melancolia muito agradável sobre a disparidade de sentimentos no fim de um relacionamento. “LA FAMA”, por sua vez, subverte a lógica do show biz ao trazer The Weeknd cantando em espanhol, não em inglês.

Vale mencionar que o álbum continua a aproximação da cantora com o universo da América Latina, por meio da presença da dominicana Tokischa em “LA COMBI” “VERSACE”, e pelas de influências de bachata, reggaeton e outros sons caribenhos ao longo do repertório e mesmo nas letras – a palavra saoco, por exemplo, é uma gíria porto-riquenha que expressa, em tradução livre, a alegria de dançar. E essa intenção coloca o disco em paralelo com o caminho que a artista percorreu desde 2019, com os tantos singles “avulsos” lançados.

Muito mais do que o sucesso dessas músicas, MOTOMAMI comunica a identidade de Rosalía como uma artista também maiúscula, destemida o suficiente para investir talento, tempo e recursos na música e nas mensagens que têm dentro de si. E também é uma obra que nos relembra que se foi (há muito) o tempo em que uma cantora pop deveria estar formatada a alguma expectativa de mercado, indústria ou até de público. Rosalía vence a discussão com o argumento que, assim como a música e o tempo, ella se transforma.

(MOTOMAMI em uma faixa: “SAOKO”)

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ARTISTA: Rosalía

Autor:

Comunicador, arteiro, crítico e cafeínado.