Resenhas

Sarah Cracknell – Red Kite

Disco da cantora inglesa convive em várias épocas musicais com elegância

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Ano: 2015
Selo: Cherry Red
# Faixas: 12
Estilos: Pop, Baroque Pop, Chamber Pop
Duração: 37:02
Nota: 4.0
Produção: Edwyn Collins

Discos como este me fazem entrar num loop de reflexões sobre tempo e novidade na música Pop. A primeira certeza é de que não há qualquer necessidade de urgência temporal para curtir um trabalho como este, da cantora e compositora inglesa Sarah Cracknell. Ouvidos mais antenados vão sacar que ela é a responsável pelos vocais da bela banda Saint Etienne, um desses grupos fissurados pela música de outras décadas, especialmente a de 1960. Se Sarah (com e sem seu grupo) se mostra capaz de reproduzir sonoridades com mais de cinquenta anos de idade, com criatividade bastante para fazê-las soar interessantes e novas para seus ouvintes, por que, necessariamente, o Pop precisa ter a cara de hoje o tempo todo? E por que discos como Red Kite soariam, necessariamente, datados? A questão é profunda, mas, só para ficarmos na superfície e não deixarmos de dar a atenção que o álbum merece, lançamentos de 95% das bandas e artistas de hoje, devem os fundilhos das calças à encruzilhada Eletrônica dos anos 1980, sendo igualmente “datados”.

Sarah, felizmente, não passa por essa linha temporal. Para ela, a música entrou em hibernação no início dos anos 1970, pulou Disco, Punk, Pós-Punk, Eletrônica, Grunge, Britpop, Hip Hop, e foi encontrada há pouco tempo, sem uma ruga sequer. Sua abordagem é elegante, charmosa, evoca uma Europa Ocidental musical que não existe mais, que serviu de referência estética e comportamental para aquela gente inglesa que reinterpretou sons negros americanos e ressignificou o Rock. Todo um cenário de publicações especializadas, mudanças na moda, questionamentos, tudo veio a reboque daquela pequena revolução e o disco que Sarah, tal qual um pesquisador de micro-história, se insere na sutileza do contexto para mostrar a delicadeza de uma música popular que existia não necessariamente nas paradas de sucesso ou em forma de poster nas paredes dos quartos dos jovens. Tampouco era algo que servisse de trilha sonora para viagens de ácido. É música herdada das tradições de refrão ganchudo, instrumental seguro e diversificado, melodias doces como afago da pessoa amada e um senso de beleza evocativa que, infelizmente parece perdido hoje. Tão perdido que soa novo, entendem?

A produção e execução de vários instrumentos estão a cargo do sensacional e redivivo Edwyn Collins, certamente um sujeito com cancha suficiente para entender esse rocambole temporal. O dueto que Sarah empreende com Nicky Wire, vocalista de Manic Street Preachers é um bom exemplo desse manuseio de influências e ambiências, reeditando vários episódios da tradição de unir voz masculina à voz feminina numa cançoneta de pouco mais de três minutos, que aspira contar histórias de amor para toda uma vida. Uma canção como Underneath The Stars, por exemplo, tem teclados e guitarras que poderiam estar num disco psicodélico de The Beatles, mas a voz de Sarah chega com sofreguidão e sentimento, enquanto a melodia é pontuada por bateria pungente e o cenário proporciona sorrisos involuntários tamanha é a certeza da beleza, como diria o outro. A abertura com On The Swings é uma quase valsa, ornada por violões e sopros atemporais, enquanto a voz de Sarah entra como se rodopiasse ao por do sol. As imagens que a canção evoca são, inescapavelmente belas e envoltas de mistério, como se tudo flutuasse num ritmo próprio. Há um delicioso flerte com a escola britânica de Folk, não a dos trovadores solitários, mas a de bandas como Fairport Convention, em Take The Silver, uma espécie de canção das pradarias e campos verdejantes sobre o mecanismo que a vida empreende em nós ao nos dar e tirar coisas e pessoas queridas à medida que o tempo vai passando diante do espelho.

Sarah tem inteligência e tempo de estrada em quantidade suficiente para não forçar qualquer aproximação com modernidades vazias. Seu disco soa muito parecido com o último trabalho da dupla Thievery Corporation, Saudade, que também revisita essa musicalidade europeia sessentista, mas, enquanto os sujeitos se valeram da presença de vocalistas que cantavam em espanhol, português, inglês, italiano e francês, Sarah mostra especificamente uma cena britânica de soslaio, na base do en passant, de forma muito natural. Há um clima enevoado em I Close My Eyes, que soa como uma variante ensolarada do Trip Hop, igualmente dramática, totalmente ao sabor da brisa em vez das paisagens enfumaçadas da noite em câmera lenta. Alguma urgência guitarreira permeia I Am Not Your Enemy, no sentido The Kinks do termo, enquanto Favourite Chair é canção de ninar do cotidiano, quase um mantra que se canta baixinho no ônibus, do trabalho para cara.

It’s Never Too Late encapsula o mote do álbum e dessa revisão com cara de presente inegável, com instrumental na fronteira temporal, borrando os limites daqui e de lá. Sarah Cracknell certamente não pensou nesses questionamentos estéticos, isso é trabalho do crítico de meia idade, mas seu disco é uma adorável peça de colecionador feita hoje, sem ranço, sem nostalgia, naturalmente num ritmo distinto da maioria e isso, amigos, é o que queremos, certo?

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.