Particularmente, sempre tive uma inquieta curiosidade por grupos que prezam pelo anonimato. Lembro que quando me falavam, nos anos 2000, que ninguém sabia quem eram os integrantes do Daft Punk ou Slipknot, isso me fascinava de uma maneira que eu não podia compreender. Como assim, ninguém nunca viu a cara deles? Obviamente, parte desse mistério foi solucionado uma vez que a internet e as informações tornaram-se cada vez mais acessíveis, mas naquele momento em que eu não sabia quem eram as pessoas por trás dos robôs ou daquelas máscaras aterrorizantes, havia um particular mistério que tornavam suas músicas ainda mais sedutoras e potentes.
Hoje em dia, como artista, há certa dificuldade em se manter anônimo. Mas, de vez em quando, há alguns projetos que conseguem se esconder da insaciável curiosidade que permeia o meio online. O coletivo inglês SAULT é um desses nomes com grande êxito em se esconder do mundo. Sabe-se que todos os registros, até hoje, foram produzidos pelo produtor Inflo, mas além dessa informação há muito poucos dados tangíveis que nos deem pistas sobre o restante do grupo. A cada registro novo, o número de vozes em cada disco parece ser inteiramente diferente, como se SAULT fosse um organismo vivo em que diferentes vozes vão e voltam deixando para trás suas fascinantes canções. A poderosa sequência de discos Untitled (Rise) e Untitled (Black Is), ambos de 2020, propõe um catártico ambiente no qual referências do R&B e música clássica se misturam criando o que pode ser nomeado como uma sonoridade de excessos. Não no sentido de que este excesso é desnecessário, mas na forma como as emoções nos transbordam ao ouvir o registro. SAULT pode ser um grupo que opta por existir nas sombras, mas é desse sorrateiro esconderijo que ele nos toca tão profundamente. Talvez por não ter forma definida, nossas mentes se colocam de forma ativa para solucionar este mistério.
Mas não apenas o movimento entre SAULT e nós é misterioso. A mudança brusca de estéticas também acompanha a magnitude dessa catarse. Seu último trabalho, AIR, talvez seja o pulo mais audacioso realizado em sua discografia. O R&B e instrumentos elétricos como guitarras e sintetizadores retornam totalmente para a escuridão em que SAULT habita e, em seus lugares, a música clássica preenche totalmente o espaço do disco. Trabalhando com uma orquestra e um coro lírico, o grupo encontra nesse complexo gênero musical a linguagem necessária para elevar a característica catártica a um novo patamar. Em um primeiro momento, pode parecer uma mudança muito brusca e ousada, dado que a música clássica vem carregada de um aspecto elitista e pouco acessível. Entretanto, assim que colocamos o disco para ser reproduzido, aquela sensação calorosa e emocionante de outros trabalhos do coletivo vem à tona.
Mesmo dentro da música clássica, há uma constante variação das abordagens desta linguagem no disco. A primeira faixa, “Reality”, introduz uma ambientação quase cinemática, só que ao invés de atores e uma trama narrativa, os arranjos de corda são preenchidos por imagens mentais e experiências subjetivas. Assim que ouvimos os primeiros coros vocais soarem fervorosamente, é impossível não se arrepiar e deixar nosso cérebro criar em movimento perpétuo. A faixa que dá título ao registro, por sua vez, é composta de elementos da música clássica, porém de uma forma mais acessível e direcionada a um experimentalismo mais presente. “Heart” é mais acolhedora em seu início, na medida em que propõe movimentos menos bruscos. Mas, na segunda metade da composição, ela nos arrebata em cheio com a montanha russa íngreme de emoções que sentimos a cada novo movimento. Para encerrar esse concerto, “Luos Higher” acrescenta à orquestra clássica instrumentos de diferentes etnias para construir o gran finale – em que as vozes e os instrumentos estão mais altos e fortes do que em qualquer outro momento do trabalho.
É evidente que parte do apelo catártico das composições de SAULT se beneficia do mistério ao redor de quem faz parte do coletivo. No entanto, o mistério reside também nessa audácia, nessa coragem de propor discos tão diferentes entre si. AIR traz mais um capítulo bem escrito desta história permeada pela emoção intensa e arrebatadora. Pode não ser um trabalho tão “fácil” do grupo, como a sequência Untitled, porém é inegavelmente um álbum que estabelece de forma ainda mais profunda a habilidade do coletivo em compor músicas que tem a emoção à flor da pele como elemento comum.
(AIR em uma faixa: “Luos Higher”)