Resenhas

Sharon Jones & the Dap-Kings – Soul of a Woman

Disco póstumo é também o ápice da discografia da cantora, falecida em 2016

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Ano: 2017
Selo: Daptone
# Faixas: 11
Estilos: Soul, R&B
Duração: 35:01
Nota: 4.5
Produção: Neil Sugarman, Gabriel Roth

Os dois maiores astros da gravadora americana Daptone faleceram por conta de câncer. Charles Bradley neste ano e Sharon Jones em 2016. Ambos veteranos, com chances tardias nas carreiras, agarrados a música, à arte, aos shows, à vida na estrada, mergulhados nas águas redentoras da Soul Music mais tradicional. Ambos donos de carisma, garra, força e com muito ainda por oferecer. Nem tudo é tristeza, claro. A julgar pelos discos que eles deixaram, a impressão que temos é que ambos são/eram/serão invencíveis. A força que vem das vozes, dos arranjos, das histórias faz com que seja impossível imaginar que aquelas pessoas ali se calaram/calarão algum dia. É triste, mas não é.

No caso específico de Soul Of A Woman, a impressão se transforma em certeza com muita rapidez. Sharon manteve sua agenda de shows na medida do possível, não teve qualquer comprometimento de sua voz e, quando podia, registrava em estúdio suas novas composições, sempre otimistas. Sendo assim, não há qualquer indício de que este álbum seja um daqueles registros pungentes e reflexivos que anteveem a morte, muito pelo contrário. O que temos aqui é apenas a evolução natural que Sharon vinha mostrando em sua carreira, seja como cantora, seja – principalmente – como compositora. Além disso, sua alquimia rítmica com o grupo Dap-Kings também evoluiu na mesma proporção, mostrando que só esta banda de acompanhamento seria possível para que Sharon se mostrasse por completo. Aqui é quase impossível distinguir onde acaba a cantora e começa a genialidade dos arranjos e execuções.

No quesito composições, Soul Of A Woman oferece um valoroso panorama do que ia pela mente de Jones, uma cantora com poucas oportunidades na juventude, que viu sua carreira engatar após os 40 e tantos anos de idade, tornando-se uma diva moderna do Soul. Um exemplo fulgurante da excelência que Sharon alcançou ao longo do tempo é a explosiva Sail On!, segunda e trovejante faixa do álbum. O andamento rápido, a impressão de que estamos num porão dançante qualquer e a intensidade de Jones fazem lembrar uma versão feminina de Ray Charles, algo sério, raro e muito bom. O repertório de influências sempre foi bem vasto em se tratando de álbuns de Sharon Jones. Ela sai dessa forma primitiva de R&B para algo mais polido e sutil, caso da linda Come And Be A Winner, otimista como o título e cheia de guitarras coloridas com o padrão FM anos 1970.

Apesar de dominar as formas mais rascantes da canção Soul, Sharon oferece faixas mais próximas do terreno das baladas ou das Pop songs douradas. Pass Me By é uma derramada narrativa amorosa com cara de Soul sulista de Memphis, enquanto a Searching For A New Day é totalmente urbana e com cara de hoje. These Tears e, especialmente, a linda When Will I See Your Face poderiam ser egressas de alguma compilação obscura de raridades setentistas. Ela ainda faz uma discreta incursão no terreno da psicodelia através do arranjo orquestral e cheio de efeitos de Girl e mergulha no Gospel tradicional em Call On God, num chamado sem rancor de agradecimento mas nunca de resignação.

Quis o destino, este brincalhão, que Sharon Jones chegasse ao ápice com este álbum póstumo. Tal incongruência, pelos motivos que já ressaltamos no texto, mostra o quanto esta cantora fabulosa conseguiu driblar as convenções clichezentas da morte. Este disco é uma joia, não perca.

(Soul Of A Woman em uma música: Sail On!)

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.