Há algo de peculiar no shoegaze brasileiro. Apesar de suas referências primordiais remeterem a bandas americanas e britânicas dos anos 1990, essa faceta do rock alternativo se consolidou de forma muito autêntica no Brasil. Na década de 2010, o surgimento de selos como Balaclava, Honey Bomb e Transfusão Noise Records evidenciou de forma mais ativa a grande influência que My Bloody Valentine, Slowdive, Lush e outras bandas exerciam sobre jovens à procura de uma sonoridade preenchida, distorcida e, sobretudo, intensa. Em 2017, a banda curitibana terraplana fez questão de salientar esta última característica, ao trazer uma nova amostra do shoegaze nacional – uma massa sonora densa, carregada e sentimental.
Seu EP de estreia, Exílio (2017), deu o direcionamento estético para que, ao longo dos últimos anos, a banda demonstrasse cada vez mais domínio sobre as texturas etéreas e claustrofóbicas de suas canções. O aclamado disco de estreia, olhar para trás (2023), trouxe ainda mais emoção para os arranjos noturnos e arrastados, misturados a um timbre inconfundível de vozes cantando em par. As canções da terraplana têm sabor agridoce – nem tão tristes, nem tão felizes, sentimentalmente ambíguas. Enquanto o primeiro disco, entre reverbs infinitos e mixagens bem afundadas, carrega forte apego ao shoegaze, o segundo trabalho, natural, tenta não se fincar tanto nesses cacoetes.
Todo aquele sentimento intenso ainda está presente, entretanto, a sonoridade do grupo parece passar por uma “secada” intencional, revelando emoções ao invés de camuflá-las por entre camadas e camadas de reverb. O espaço que sobra é preenchido de forma afiada – sem exageros e com cuidado notável. As vozes ganham mais momentos separadas, abrindo um novo leque de possibilidades. Há um flerte mais significativo com diferentes subgêneros dos anos 1990/2000 – um indie rock mais cru e sentimental, um grunge mais melódico, bem como harmonias e dissonâncias do new metal (principalmente aos moldes de Deftones). Nesse mosaico sonoro, natural lapida as melhores características de seu antecessor – e expressa novas fusões de variadas maneiras e por meio de diferentes elementos.
“salto no escuro” introduz um novo território para os fãs da banda – mergulhando gradativamente em guitarras carregadas e uma melodia vocal intrigante e afiada. Já “amanhecer” nos coloca à mercê de acordes ambíguos, nunca deixando claro o tom sentimental da música – característica fundamental da terraplana. Parceria com a cantora e compositora Winter, “hear a whisper” mostra uma aproximação mais evidente com o dream pop, sem sacrificar a crueza dos acordes. Para os fãs old school de shoegaze, “desaparecendo” é um dos momentos mais potentes do disco – repleto de emoção e barulheira boa. Em “S.N.C”., é possível perceber até uma referência meio Radiohead.
Construído sob influência inegável do shoegaze, mas sem tornar essa uma direção exclusiva, o segundo disco da terraplana amplia os horizontes dando ênfase no que é sonoramente indispensável. É curioso como os nomes terraplana e natural possam aparecer juntos – principalmente em tempos pós-pandêmicos e negacionistas. Ao naturalizar o não natural, somos capazes de compreender as complexas e dolorosas contradições que a terraplana expõe tão bem.
(natural em uma faixa: “S.N.C”)