Coçando As Costas De Peter Gabriel

Ex-membro do grupo de Rock Progressivo, Genesis, lança disco de covers imprimindo seu estilo performático e clássico

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Em 2010 Peter Gabriel teve uma ideia que, cedo ou tarde, quase todos os grandes artistas da música Pop têm: fazer um disco de covers. Para muitos, talvez a grande maioria, gravar canções de outros é uma prova quase irrefutável de lapso criativo, perda de inspiração ou mesmo preguiça em compor algo próprio. Álbuns de covers deveriam ser legais por vários motivos, mas, ao longo do tempo, tornaram-se quase ovelhas negras das discografias alheias. Peter, um artista sempre à frente de seu tempo, resolveu conceder significado e importância ao ato de gravar canções de outrem. Bolou um projeto chamado Scratch My Back And I’ll Scratch Yours, que significaria um disco duplo, cuja primeira metade seria preenchida com suas interpretações da obra alheia e o segundo disco estaria aberto para que os artistas, cujas canções haviam recebido versão de Peter Gabriel, gravarem algo dele, algo como um mecanismo de ação e reação. Você coça minhas costas e eu coço as suas. Ok?

Pra quem esteve ausente do planeta nas últimas décadas, Peter Gabriel nasceu em Surrey, Inglaterra, em 1950. Logo cedo demonstrou talento para interpretação e música, especialmente a flauta. Fundou o Genesis aos 17 anos, chamando para integrar a banda seus amigos Tony Banks, Anthony Phillips, Mike Rutherford e Chris Stewart. Em pouco tempo, com as presenças de Phil Collins e Steve Hackett, o Genesis seria uma das mais importantes bandas de Rock progressivo do mundo, ombro a ombro com Yes e Pink Floyd. Gabriel estava na vanguarda ao imaginar que poderia contar histórias, fantasiar-se e interpretar as canções do Genesis ao vivo, transformando seus primeiros shows em mistos de concerto de Rock com teatro. Concebeu, ao lado de seus companheiros de banda, vários discos importantes, com destaque absoluto para seus três últimos álbuns à frente da banda: Foxtrot (1972), Selling England By The Pound (1973) e The Lamb Lies Down On Broadway (1974).

Sua figura ganhou notoriedade e espaço na mídia. Seus companheiros de banda temiam que o foco fosse desviado da banda para Gabriel e várias tensões começaram a surgir nos últimos anos. Logo após finalizarem The Lamb Lies Down On Broadway, muitas resenhas de veículos de comunicação destacaram, além da excelente forma da banda, a habilidade literária que Peter havia demonstrado. Além disso, ele conheceria o diretor William Friedkin (O Exorcista, Conexão França) e este lhe propusera um projeto em conjunto. Peter ficou tentado, chegou a deixar a banda por uma semana, regressando em seguida. Mesmo assim, as tensões continuaram, tendo como gota d’água a gravidez da esposa de Peter, Jill. Ele alegou que não poderia excursionar e desejava passar o maior tempo possível ao lado da mulher e da filha recém-nascida, Anna-Marie.

Para os integrantes da banda, isso significava outra demonstração de que seria melhor seguir em frente sem Gabriel. Este também já tinha notado que o formato do Genesis não era mais adequado para a enorme quantidade de referências que havia acumulado em sua carreira. Em 1976, Peter Gabriel era um artista em carreira solo. Após um ano burilando um novo conceito, em 1977 ele solta o primeiro de seus discos epônimos, lançados até 1982 como se fossem “edições diferentes da mesma revista”, trazendo vários elementos em comum, como as capas, que continham imagens do rosto de Gabriel, nunca totalmente visível. Seu primeiro hit foi Solsbury Hill, influenciada pelos acontecimentos finais no Genesis. Apesar dos quatro primeiros discos serem absolutamente sensacionais, o sucesso maior veio em 1980, quando foi lançado o terceiro álbum trouxe Biko, uma canção de protesto, feita em tributo a Steven Biko, ativista sul-africano morto pelo regime do Apartheid. O último álbum dessa série, lançado em 1982, trouxe Shock The Monkey e I Have The Touch, apresentando Gabriel ao maravilhoso mundo dos videoclipes. Em 1984 ele ainda comporia a trilha sonora de Birdy, de Alan Parker.

O grande estouro mundial veio em 1986 com o lançamento de So. Puxado por hits mundiais como Sledgehammer, Big Time e Don’t Give Up, além de outras canções sensacionais – Mercy Street, Red Rain – o disco escalou as paradas do planeta e marcou a ascenção de Peter a um novo patamar em sua carreira. Ele provava que, mesmo em um disco de sucesso mundial, era possível não abrir mão de seus conceitos mais importantes, suas influências mais queridas e que, sim, dava pra aparecer na MTV sem precisar fazer gracinhas, ainda que os clipes de Sledgehammer e Big Time, verdadeiros marcos na história dos filminhos musicais, apresentem um PG vertiginoso em meio a tantos efeitos especiais, que, numa análise mais ampla, eram continuações de sua carreira performática de sempre.

Entre 1986 e 2002, Peter Gabriel lançou dois discos de material inédito (Us em 1992 e Up em 2002), uma trilha sonora (Passion, de 1987), fundou o Real World (seu selo e estúdio) e lançou um disco duplo ao vivo (Secret World Live em 1994) e participou de projetos coletivos, sempre mantendo sua presença no terreno musical como um nome respeitado, inovador e acima de qualquer suspeita. Suas criações na década de 2000 foram raras, porém marcantes, a começar pelo próprio Up. Era o retorno de PG ao idioma Pop depois de dez anos, cheio de ideias e frescor criativo, e presenças marcantes (Blind Boys Of Alabama, Tony Levin, Daniel Lanois, Steve Gadd, entre outros). Ele também encontrou tempo para uma nova trilha sonora, gravada no mesmo ano que Up, para o filme Long Walk Home, do diretor australiano Phillip Noyce.

O início dos anos 10 trouxe Gabriel trabalhando em seu projeto de covers, o motivo inicial e primordial deste texto. Para Scratch My Back, o disco em que PG faz versões, foram escolhidas seis canções de contemporâneos seus, no caso, David Bowie, Neil Young, Paul Simon, Randy Newman, Lou Reed, David Byrne e outras seis, de artistas atuais, no caso, Arcade Fire, Bon Iver, Regina Spektor, Radiohead, Stephen Merritt e Elbow. A ideia era que esses artistas gravassem canções de Peter Gabriel para a segunda metade do projeto, And I’ll Scratch Yours, mas apenas seis conseguiram cumprir o prazo (Stephen Merritt, Paul Simon, Bon Iver, Lou Reed, Elbow e David Byrne) , o que acabou por atrasar o projeto até agora. Como dissemos no início, não se trata apenas de covers. Peter Gabriel arregimentou uma orquestra completa, rearranjou todas as versões e imprimiu significados novos e distintos nos originais. Apropriou-se de clássicos do Rock (como “Heroes”, de Bowie e Brian Eno) e de canções menores, mas importantes, como Boy In The Bubble (Paul Simon) ou Street Spirit (Radiohead).

Enquanto esticava o calendário para receber as outras colaborações e aproveitando o excelente resultado do trabalho com a orquestra, PG aproveitou e rearranjou várias de suas composições, num projeto que surgiu no improviso, chamado New Blood, que pode ser considerado como um irmão de Scratch My Back. A intenção em mudar significados de suas próprias canções ou mesmo ampliá-los, é marca registrada da genialidade e inquietude artística de PG. O disco transformou-se em show, DVD e CD ao vivo, com o nome de Live Blood, lançado em 2012. Foi este show que PG trouxe ao Brasil no Festival SWU no ano anterior.

Depois de muita espera, finalmente I’ll Scratch Yours surge em 2013 com duas baixas. Saem Radiohead e Neil Young e entram Feist e Joseph Arthur. Mesmo com todo o cuidado da produção do próprio PG e evidente emoção dos homenageados em homenagear o artista, algumas versões brilham muito mais que outras. “Come Talk To Me”, com Bon Iver, atinge níveis altíssimos de beleza, assim como a total transformação que Randy Newman impõe a “Big Time”, além de “Biko”, revista por Paul Simon num clima de folk sessentista de protesto. Arcade Fire se sai bem com “Games Without Frontiers”, David Byrne leva PG para a pista de dança em “I Don’t Remember” e Brian Eno (representando David Bowie e a si mesmo) demonstra total intimidade com o terreno pisado por PG em “Mother Of Violence”. De um modo geral as versões são respeitosas, exceção feita a Lou Reed, que se apropriou de “Solsbury Hill”, tirou-lhe a melodia, enfiou guitarras distorcidas e um impôs um clima de largação sonora absoluta, mas familiar a vários momentos em sua carreira.

And I’ll Scratch Yours livra-se do status de tributo que esses discos geralmente exibem. Talvez PG tenha se esforçado ao máximo para atribuir o caráter de colaboração acima de qualquer coisa, tornando tudo uma criação coletiva. De qualquer maneira, desde que concebeu o projeto, a carreira de PG entrou em ebulição, fazendo com que ele lançasse quatro discos e um DVD, além de excursionar com um show absolutamente conceitual em três anos, algo absolutamente inédito e estranho para um artista conhecido pela longa gestação de suas obras ao longo do tempo. Para nós, só resta agradecer e torcer para que o homem siga inquieto.

Tracklist

1 – I Don’t Remember – David Byrne
2 – Come Talk to Me – Bon Iver
3 -Blood of Eden – Regina Spektor
4 – Not One of Us – Stephin Merritt
5 – Shock the Monkey – Joseph Arthur
6 – Big Time – Randy Newman
7 – Games Without Frontiers – Arcade Fire
8 – Mercy Street – Peter Gabriel feat. Elbow
9 – Mother of Violence – Brian Eno
10 – Don’t Give Up – Feist feat. Timber Timbre
11 – Solsbury Hill – Lou Reed
12 – Biko – Paul Simon

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ARTISTA: Peter Gabriel
MARCADORES: Redescobertas

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.