25 anos sem Muslimgauze

A história e a obra de Bryn Jones, responsável por um dos projetos mais ousados da música eletrônica nos anos 1990

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Fotos: Reprodução

A trajetória de Bryn Jones, nascido em 1961 na pacata cidade de Salford, nos arredores de Manchester, é um daqueles causos da música sem pé nem cabeça – mas que cativam justamente pelo inesperado. Jones começou sua carreira em 1982, sob o nome de E.g Oblique Graph, e já no ano seguinte lançou o primeiro disco do projeto solo Muslimgauze, Kabul (1983), inspirado nos ocorridos da Guerra Afegã-Soviética de 1979. Em apenas 16 anos, ele soltou mais de 96 projetos autorais diferentes, incluindo singles, EPs e discos. Por outro lado, vale lembrar que Muslimgauze teve pouquíssimas aparições públicas: cerca de 15 apresentações ao vivo – muitas delas pelo Reino Unido, algumas por Alemanha, Espanha, França, Holanda e Suécia, além de um único show no Japão.

Apesar de ter falecido com apenas 37 anos, em 1999, devido a uma rara infecção sanguínea provocada por um fungo, os arquivos de Muslimgauze continuam a ser lançados – totalizando mais de 70 discos póstumos (e contando) – o que faz de sua discografia uma das maiores já registradas na história da música. Ao contrário do que a intuição possa nos sugerir, o músico e produtor não tinha origem árabe, muito menos foi praticante do islã. Ele era apenas um britânico branco mesmo. O nome do projeto é um jogo com as palavras “muslim” (“muçulmano” em inglês) e “muslin”, um tipo de tecido conhecido como musselina em português, e que é fino como gaze (“gauze” em inglês). Esse tecido era muito usado na confecção de roupas femininas delicadas e sua origem remete a Mosul, cidade no atual Iraque. O nome também revela uma preocupação e um olhar atento do artista para todo o mundo muçulmano. Dessa forma, podemos nos perguntar: Jones seria então um orientalista? Ou seria somente um genuíno admirador da cultura árabe e muçulmana, além de um fiel apoiador da causa palestina? Investigamos a vida e a obra desse personagem tão curioso da história da música eletrônica underground que se foi há 25 anos.

Entre Manchester e Gaza: música instrumental e política

Praticamente todas as faixas de Muslimgauze são instrumentais, com exceção de alguns samples de vozes ou cantos corânicos. Algumas têm ritmo mais lento e proposta mais ambient, enquanto outras são aceleradas sob levadas hipnóticas, com sons de um instrumento por vezes chamado de violino árabe, mas cujo nome original é rebab – tudo acompanhado de derbakes e tambores d’água, por exemplo, instrumento nativo do continente africano com som característico e que precisa ser literalmente posicionado dentro de um corpo de água (um balde, um rio ou uma poça d’água) para ser tocado. Somam-se às composições alguns samples de pessoas falando em árabe e gravações de instrumentos tradicionais da música árabe como derbakes, alaúdes, a chamada flauta ney, o tambor dafi, entre outros. O posicionamento político de Jones se expressa, de forma clara e explícita, nos títulos das faixas e dos discos.

The Rape Of Palestine (1988), Vote Hezbollah (1993), Fatah Guerrilla (1996), In Search of Ahmad Shah Masood (1998) e No Human Rights for Arabs in Israel (2005) são apenas alguns exemplos do comprometimento de Jones não somente com a causa palestina e a OLP (Organização pela Libertação da Palestina), mas com outros movimentos de resistência armada anti-imperialista no Oriente Médio – de Irã, Afeganistão, Líbano e uma série de outros países. O artista inclusive afirmou, quando perguntado por Mark Crumby numa entrevista concedida à Impulse Magazine em 1992, que um dos motivos para a criação do projeto foi a invasão israelense do Líbano em 1982, além de citar nomes como Benazir Bhutto, Muammar Gaddafi, Leila Khaled e Yasser Arafat. Jones conta que, não fosse a OLP, a riquíssima produção musical tradicional do Oeste Asiático e Norte da África (OANA) e os acontecimentos políticos (que o instigaram a investigar o contexto cultural da região), o Muslimgauze não existiria. Para ele, esses elementos constituem a própria “espinha dorsal” do projeto.

Por essa resposta, dá para notar que existe um respeito e uma atitude bastante responsável – e francamente incomum para um europeu – por formas culturais que não pertencem a sua realidade social. É interessante como, nessa e em outras entrevistas, ele cita pouquíssimas influências musicais contemporâneas – entre elas, a banda de rock experimental alemã Can, o grupo de krautrock Faust, e as bandas britânicas Throbbing Gristle e Wire –, dizendo que quase sempre escutava música tradicional indiana, japonesa e de OANA. Até que ponto isso é totalmente verdade fica difícil dizer, mas ele poucas vezes fez menção a artistas que ouvia. Sobre o seu processo criativo, Jones inclusive relatou que partia literalmente de uma notícia, de uma fotografia ou de outras referências não sonoras para compor.

Problemas com gravadoras e orientalismo

Tudo era produzido por Jones de maneira absolutamente analógica, por meio de fitas e sintetizadores mecânicos, o que realça a autenticidade do trabalho e o fazer quase artesanal de criar as faixas a partir de sons de arquivo. Apesar de não serem claras as pretensões do autor em relação à fama e ao reconhecimento, muitos dos lançamentos de Muslimgauze foram feitos de maneira independente ou semi-independente, com cerca de mil cópias produzidas por disco. Alguns discos foram lançados pelo próprio Jones em sua gravadora, Kinematograph, enquanto outros saíram por gravadoras pequenas como a cooperativa britânica de gravação Recloose, a Limited Editions e, mais adiante, pela holandesa Staalplaat, a australiana Extreme Records e a estadunidense Soleilmoon. Muitas dessas produções, inclusive, foram apenas lançadas em fita cassete, mas algumas saíram em vinil e depois foram remasterizadas em CDs.

Na mesma entrevista, Jones conta que passou por diversos problemas com algumas dessas gravadoras. Em casos como o da Recloose, ele diz não ter recebido royalties e nem cópias do material pronto, além disso, ele alega que a gravadora se aproveitou do faturamento de vários de seus discos.

O primeiro EP de Muslimgauze, Hammer & Sickle (1983), conta com quatro faixas cujos sons metálicos chegam a remeter ao EBM do Front 242, que à época começava a se popularizar. Mullah Said (1998) é outro disco importante, hoje considerado uma obra seminal de sua gigantesca discografia, que totaliza em torno de 2 mil composições originais. Fatah Guerilla (1996), um de seus discos mais longos, é quase que totalmente voltado à ao ambient experimental, com poucas incursões por ritmo, harmonia e melodia – muitas vezes, temos frequências de rádio distorcidas que se aproximam do noise, além de levadas de hip hop instrumental e até heavy metal. O ponto alto do repertório fica para “Shishla Nain Royal Bidjar”. Outros destaques de sua discografia são United States Of Islam (1991), Hamas Arc (1993), Damascus (2010) e Islamic Songs (2013).

A obra de Bryn Jones, afinal, seria orientalista? Por um lado, podemos identificar alguns elementos que constituem, sim, essa abordagem na composição e elaboração dessas faixas, já que o artista era um europeu se utilizando de uma cultura do chamado “Oriente” como meio para os seus próprios fins. É possível traçar um paralelo com as pinturas exotizantes de Eugène Delacroix, com os romances etnográficos de Joseph Conrad ou com os estudos historiográficos de Gustave von Grunebaum. Essas figuras representam o que Edward Said apontou como parte da Escola Orientalista, campo de estudo que se formou na Europa a partir do século 19 para analisar – de forma bastante eugenista, preconceituosa, racista, generalista e frequentemente pseudocientífica – os chamados “povos não ocidentais”.

Porém, há algo que diferencia claramente Muslimgauze desses nomes citados anteriormente: o profundo respeito e uma defesa dos interesses políticos dos povos árabes e muçulmanos que aparece de forma explícita em seu trabalho. Há a reivindicação da autonomia e soberania desses povos em relação às práticas coloniais e imperialistas de países como Estados Unidos, Israel e mesmo europeus como França e Inglaterra. Nesse ponto, Jones contrasta profundamente dos outros citados, já que os estudos orientalistas servem à dominação. E Jones, se estivesse vivo hoje, provavelmente se escandalizaria com a atual situação dos palestinos em Gaza e o extermínio de sua cultura.

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ARTISTA: Muslimgauze

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