5pra1: Jorge Drexler

Do simples romantismo à complexa adoração da palavra, cinco discos essenciais para redescobrir a poesia pop do cantor uruguaio

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Fotos: Silvia Poch

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

Os cursos e aventuras muitas vezes microscópicos que existem no corpo humano foram estudados por Jorge Drexler muito antes da concepção do disco Tinta y Tiempo, lançado em abril de 2022. Na faixa de abertura, o artista convida o poeta Rubén Blades, ícone da salsa panamenha, para viajar até o período mesoproterozóico. Eles traçam, em uma espécie de crônica, o percurso de duas células, descritas como “visionárias” e responsáveis por fazer surgir com seu casamento uma quantidade infinita de tantas outras. Sem se dar conta de que seriam fundamentais para a existência humana, elas acabariam fundando o amor e o sexo, duas necessidades básicas a qualquer criatura vivente.

Poucos sabem, mas Drexler vem de uma família tradicional de médicos e chegou a seguir o mesmo caminho por um curto período. Em uma de suas várias entrevistas, disse que esse ofício “é a maior biblioteca para atingir a alma de um ser humano”. E, de fato, ao longo de seus 30 anos de carreira, foi impossível manter a própria curiosidade restrita aos livros de biologia. Um passeio despretensioso pela discografia desmembra referências à psicologia, à história, à própria linguagem. Ele parece estar sempre à espreita dos mais singelos detalhes, dos pormenores, do imperceptível.

Esse som doce e sagaz, na contramão de posturas eventualmente excludentes, tem o privilégio de se bastar na própria complexidade. É que o cantor é capaz de se conectar com o mais corrosivo e espiralar dos amores, ao mesmo tempo em que se permite construir narrativas com uma simplicidade exclusiva dos grandes literatos populares. Não é de se admirar que em meio aos parceiros de composição mais célebres estejam nomes como Paulinho Moska, Shakira, Marisa Monte e Noga Erez – todos adoradores da palavra em diferentes idiomas e frequências.

Se, quase duas décadas atrás, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas norte-americana julgou sua presença indigna na cerimônia de entrega do Oscar,  hoje percebemos que isso não teria feito a menor diferença em seu trajeto. O episódio, que o levou a vencer o troféu de Melhor Canção Original por “Al Otro Lado del Río”, mesmo sem poder interpretar a própria música com a justificativa de ser uma figura “pouco conhecida”, trouxe a certeza de que a ignorância é um tema desajustado ao seu cancioneiro. Na prática, ela nunca conseguiu fincar raízes nas elegantes e calorosas faixas que comporiam seus projetos musicais.

Lá atrás, a experiência da otorrinolaringologia e de tantas outras coisas que parece conhecer como a palma da própria mão fundaram um senso observador raras vezes encontrado na música em espanhol. Jorge Drexler, médico e cantor, está sempre de olho no paradoxo existente entre problema e solução.

Bastante idílico, seu primeiro disco pós-pandemia parece propor agora um universo colorido e saudável ao ponto de se descolar da realidade em alguns tempos. As canções permitem confluir em um mesmo espaço sonhos, algoritmos e uma suntuosa orquestra. Talvez ainda seja cedo para atestar a sobrevivência de Tinta y Tiempo, seria preciso reconhecer sua potência com mais e mais audições. Mas Drexler parece a cada ano, a cada musical mais apaixonado pela vida, ao ponto de atravessar corações e se propor a desenhar silhuetas – do nome em relevo que compõe a capa até o encontro de seus dedos com os corpos evocados na letra de “Tocarte”. Esse funk de alma ibero-americana é, provavelmente, sua melhor colaboração com o amigo Pucho, o madrilenho C. Tangana.

Bem, a esta altura já não somos mais capazes de distinguir o que é música e o que é poema em sua obra. Jorge Drexler parece nos convencer, entre uma coisa e outra, de que temos os dias e as noites todas para ouvi-lo – um convite de delicadeza irresistível, irrecusável. Abaixo, você será guiado em um passeio que terá como destino 5 discos imprescindíveis do artista uruguaio.

 

Frontera (1999)

Desafio você a colocar este disco para tocar e fechar os olhos durante a primeira canção. Os instrumentos vão se sobrepondo uns aos outros de forma suave, como nuvens que caminham pelo céu e se misturam em um encontro cinzento. “La Edad del Cielo”, um símbolo da pequenez humana diante da onipresença divina, é um clássico em espanhol que surge unicamente graças à música popular brasileira, já que se trata de uma letra adaptada. A autoria, em português, é do amigo Paulinho Moska, um frequente e bem-vindo colaborador.

Essa melancolia que conduz boa parte de Frontera é a responsável por abrigar e dar ritmo a algumas das melhores canções de Jorge Drexler feitas na década de 1990, um período que pressupõe também o emprego estético de muitos elementos eletrônicos, embora se exima de exageros. Transitando entre gêneros como o candombe e o pop com uma fluidez que não o permite se fixar em lugar nenhum, ele se esforça para dizer poeticamente que não possui um lar.

A própria palavra “fronteira”, utilizada para batizar a obra e uma das faixas, põe também em evidência uma experiência que entremeia o Uruguai e a Espanha, país que acabou por ser o seu lar escolhido. Diante e dentro dos mares, as memórias tomam forma e tomam uma posição interessante como, por exemplo, na faixa “Aquellos Tiempos”. “Era maio de 1968, mas na Montevideo de 1983”, canta em um dos versos. Em outras palavras, há um resgate do próprio processo de amadurecimento em um país que convulsionava em meio ao enterro de uma ditadura militar.

Destaques: “La Edad del Cielo”, “Aquellos Tiempos”, “El Sur del Sur”

 

Eco (2005)

Sutil, quizás tan real como una fragancia. Drexler seguiu sua travessia, desta vez focado na sensibilidade da América Latina. Entre músicos conterrâneos, brasileiros, argentinos, e, por que não, espanhóis simpatizantes, ele criou o disco Eco, que assume justamente essa função especial de estreitamento e expansão de laços. A perspectiva micro, comum em trabalhos anteriores, agora se desdobrava em uma busca de conexão com os lugares pelos quais passou.

E foram crescentes os acenos ao Brasil, nação que o fez se declarar tantas vezes ao ponto de aprender a falar português com desenvoltura. Além de ter namorado uma garota mineira no início da carreira e de ser declaradamente fã da trindade João Gilberto, Caetano Veloso e Gilberto Gil, à ocasião o artista compôs “Milonga del Moro Judio”, fruto de uma tarefa quase artesanal de colagens e rimas de décimos. A milonga, que já tinha aparecido no álbum Llueve (1996), simboliza um abraço duplo dado em raízes e paixões por ser um ritmo tradicional tanto do Rio de la Plata, como também do nosso Sul. Foi mais um ensaio para as colaborações com companheiros hermanos que viriam, com mais propriedade, no trabalho seguinte, lançado um ano mais tarde.

Em síntese, seria possível dizer que este é um disco confortável, um verdadeiro eco do que já havia sido dito e visto. Nem mesmo a faixa “Al Otro Lado del Río”, vencedora do Oscar e composta a pedido do cineasta Walter Salles para o filme Diários de Motocicleta, foi incluída na tiragem original, ficando restrita apenas a uma reedição. O cantor brincou à época dizendo que considerou a atitude um “suicídio da própria carreira”, mas isso não fez mal. Tudo acaba como um bálsamo, que só oferece uma guinada durante “Guitarra y Vos”, quase poesia falada que não nos permite esquecer o caráter híbrido da obra drexleriana.

Destaques: “Milonga del Moro Judio”, “Guitarra y Vos”, “Eco”

 

12 Segundos de Oscuridad (2006)

Definitivamente um trovador que acabou por despertar no tempo presente, Jorge Drexler está sempre atento aos sinais – particularidade que o permite se aproximar e se esquivar da estética pop quando bem entende. O álbum 12 Segundos de Oscuridad evoca a grandiloquência “do véu semitransparente do desassossego”, um contraditório antagonista da paz interior que introduz esta narrativa embalada por letras complexas e sons um pouco menos pegajosos. Fruto de um intenso período criativo, o material busca revelar ao ouvinte uma perspectiva distinta de lugares e sensações afetivas.

Se um dos sonhos declarados pelo artista era ser um experiente escafandrista, entre os novos cenários e personagens estava o Cabo Polonio, um povoado situado no departamento de Rocha e que foi palco de episódios consideráveis da história nacional envolvendo o trânsito de galeões espanhóis, descobertas de ilhas e naufrágios. O farol existente na região, instalado na tentativa de evitar desastres, leva exatos 12 segundos para girar e devolver a luz. Vem daí o título, um esquadrinhamento visual do tempo e dos sentimentos que carecem ser guiados.

Os arranjos de bossa nova, tango e baguala fracassaram de certa forma ao criar uma relação de imediata acessibilidade ao que se queria dizer, uma série de decisões que acabou preterindo sua presença em muitas listas. No entanto, é preciso se atentar aos feitos, que incluem sua maior ode à terceira casa. Há duetos com Maria Rita, em “Soledad”, e Arnaldo Antunes, coautor do trava-línguas “Disneylandia”. É um sintoma de sua mirada para a globalização, aliada aos labirintos da tecnologia. O gaúcho Vitor Ramil também atua na linha de frente das composições.

Não pode ainda ser apagada neste vale de escuridão a habilidade de Drexler como intérprete. “High and Dry”, hit do Radiohead, foi transformada em uma canção quase autoral, ganhando novos contornos de drama e vulnerabilidade.

Destaques: “La Vida es Más Compleja de lo que Parece”, “Disneylandia”, “La Infidelidad de la era Informatica”

Bailar en la Cueva (2014)

Em 2014, Jorge Drexler lançou um de seus discos mais fascinantes. Bailar en la Cueva é ousado e, como o título sugere, um trabalho que “nasce a partir dos pés”. Pés esses que dançam e caminham pelo mundo sentindo a musicalidade de lugares como Bogotá e Madrid, ambas cidades escolhidas para o transcorrer das gravações. Rodeado de parceiros e parceiras pan-americanos, cumpre com maestria o dever de enriquecer uma jornada que não se realiza sem o coletivo e acabou represada por anos graças à fragilidade dos tempos.

Um dos “filhos da ditadura uruguaia”, o cantor atribui seu desejo de criar o dito trabalho a uma tentativa pessoal de compensar uma juventude incolor em que, cercado pela repressão e pelas vivências de uma família tradicional de esquerda, vigiada pela crueldade fétida dos militares, não pode experimentar momentos cotidianos de diversão.

Ainda que tenha tardado, esse momento de júbilo aconteceu em grande estilo e na companhia de amigos. Além de Li Saumet, do grupo Bomba Estéreo, ele convocou a chilena Ana Tijoux e os brasileiros Caetano e Moreno Veloso para integrar a roda. Com pai e filho, gravou “Bolivia”, uma cumbia tropicalista que incorpora o berimbau e o folk andino para contar a história real do avô que, 75 anos antes, rumou em direção à América fugindo da barbárie nazista. Acuado por todas as partes, esse jovem judeu só conseguiria asilo na Bolívia, país latino-americano que se revelou um oásis frente às armadilhas do desvario e dos muitos ninhos de ratos.

Respeitando a própria essência, Jorge se permitiu fazer ainda experimentos inéditos com o hip hop e o eletrônico, um velho conhecido que se apresentou de forma mais experimental do que em seus trabalhos do início do século. Vale notar também o interesse em empregar a ironia, uma figura de linguagem pouco frequente no repertório. Ela é uma das protagonistas de “La Plegaria del Paparazzo”, uma oração feita sob a perspectiva dos que dependem do assédio, do imediatismo e da venda de registros alheios.

Destaques: “Bolivia”, “Universos Paralelos”, “Bailar en la Cueva”

 

Salvavidas de Hielo (2017)

Eis um feito interessante. No álbum Salvavidas de Hielo, entram como convidadas Julieta Venegas, Mon Laferte e Natalia Lafourcade. Não é um equívoco dizer que elas são hoje as três grandes cantoras latino-americanas quando o assunto é amor, mas a convite de Jorge Drexler elas também se mostraram as grandes protagonistas de uma trama minimalista como nenhuma outra. A proposta da vez se estabeleceu como um chamado para o discurso já que o artista tentou reconstruir em pequenas montagens a história da humanidade, cindida por ruídos, noites de metrópoles e travessias nas cordilheiras, que se derretem numa lamúria silenciosa a cada minuto.

O adeus e a efemeridade, temas que podem ou não simbolizar o ingresso em dias de tristeza, acabam sendo uma constante. O que já não pode mais ser resolvido, o que parte sem rumo e o que se predispõe a recomeçar cria “movimentos” que saem do caos em direção ao encontro e à gratidão. Aí já não se trata de um projeto tristonho, modorrento. No fundo, este álbum é uma compilação que verte interpretações óbvias, a fim de revelar que é possível se salvar diante do iminente fim. Ainda que você seja sua própria ilha de salvação.

“Asilo”, balada feita sob medida para as madrugadas mais inquietas, serve como um tiro de misericórdia disparado contra os corações apaixonados. A voz potente de Laferte é um ponto especial, que surge a fim de embriagar e queimar a garganta dos que já não conseguem mais dormir, pensando em companhia. Se esta aceitar o dito convite para se juntar, um novo mundo pode se abrir.

Destaques: “Asilo”, “Abracadabras”, “Silencio”

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ARTISTA: Jorge Drexler