5pra1: Marcos Valle

Um resumo dos mais de 50 anos de carreira da força criativa mais inquieta que a bossa nova produziu

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Fotos: Reprodução

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

A missão de tentar definir que tipo de som Marcos Valle produziu e produz em mais de meio século de carreira seria sempre insatisfatória – ou teria como resultado uma lista enorme de gêneros, fusões, asteriscos e citações a estilos que despontam no meio de outros. Sua morada inicial, entretanto, foi inegavelmente a bossa nova. O carioca, que desde os seis anos de idade recebia aulas de piano clássico da avó materna, se encantou com a levada de João Gilberto, Tom Jobim, Carlos Lyra e Johnny Alf e, ainda muito jovem, começou a compor. Antes de completar sequer 20 anos, ele já integrava um trio com Edu Lobo e Dori Caymmi e tinha composições – feitas em parceria com o irmão e parceiro de sempre, Paulo Sérgio – executadas pelo Tamba Trio (“Sonho de Maria”). Veio então a estreia solo com Samba Demais (1963) e, na sequência, a explosão chamada “Samba de Verão”.

Dali em diante, o surfista de cabelos dourados trilhou seu caminho encontrando atalhos preciosos e recalculando a rota mais previsível para um prodígio da segunda geração da bossa nova. Músico prendado e dono de uma criatividade melódica espantosa, Valle foi do samba ao funk, do soul ao jazz, das trilhas para a televisão à psicodelia. Você consegue apontar mais alguém capaz de compor um standard da bossa nova e um hit oitentista e funkeado dedicado à ginástica? Ou outro músico desenvolto o suficiente para emprestar samples para Planet Hemp e Jay Z e, com mesma maestria, compor o tema clássico de fim de ano da maior emissora do país? Quem mais tem fãs que vão de Tyler, The Creator a Caetano Veloso, de Marcelo D2 a Boni?

Toda a pluralidade da obra de Marcos Valle parece vir de uma rara carta na manga: sua habilidade de ser pop. Versado nas harmonias intrincadas dos ídolos da bossa nova, ele sempre soube usar a complexidade a serviço do afável, do fácil, do magnético, com possibilidades teóricas de composição pincelando melodias assobiáveis. O resultado é uma música que viaja por aí, desembarca em grooves e linguagens distantes, mas retorna, tranquila e soberana, ao Rio de Janeiro dos anos 1960. Em um vídeo do Jazz Is Dead, Kassin define João Donato como “o Forrest Gump da música brasileira” – e eu peço licença para dizer que Marcos Valle é algo entre Ferris Bueller e Marty McFly. O primeiro, pela vontade de se divertir, uma joie de vivre que se traduz em canções; o segundo, por sua destreza ao se movimentar por passado, presente e futuro. E o privilégio é nosso por podermos acompanhar as tantas viagens de Marcos Valle há mais de 50 anos.

 

O Compositor e O Cantor (1965)

Com o sucesso de Samba Demais (1963), sua estreia, Marcos Valle estava inspirado e pronto para imergir de vez não apenas na carreira musical, mas especialmente no ofício de compositor. No primeiro disco, foram seis canções autorais, feitas em parceria com Paulo Sérgio, e outras seis releituras de nomes como Tom Jobim, Roberto Menescal e Johnny Alf. Em O Cantor e o O Compositor, de 1965, com exceção de “Vem” (parceria do músico com Lula Freire), todo o repertório foi fruto da afiada dobradinha entre os irmãos Valle.

Àquela altura, o jovem músico já convivia com a nata da bossa e havia “legitimado” as composições em reuniões frequentadas por gente como Carlos Lyra e os próprios Tom Jobim e Roberto Menescal. O último, inclusive, foi abordado por Valle, de sunga e prancha em um posto salva-vidas no Arpoador entre 1962 e 1963, para ouvir uma das canções que estariam no disco do jovem que aparecia no pedaço. Era “Samba de Verão”, um dos maiores símbolos da bossa nova, a canção que faz frente à “Garota de Ipanema”. O hit, composto quando Marcos tinha sequer 22 anos de idade, ganharia regravações de Duke Ellington, Dizzy Gillespie, Caetano Veloso, Astrud Gilberto, entre outros.

Produzido por Milton Miranda e com arranjos de Eumir Deodato, o álbum mostra um músico que estudou seus mestres, mas tem tom menos solene e é mais aberto a facilidades harmônicas, além de já acender sutilmente uma fagulha pop nas melodias, como na ponte-refrão de “Seu Encanto”. Valle, que no mesmo ano fez turnês com Sérgio Mendes pelos Estados Unidos, soa à vontade em meio ao jazz de “Vem”, à graça de “Gente” ou à melancolia de “Preciso Aprender a Ser Só”. Com o reconhecimento internacional, algumas faixas do disco apareceram, três anos depois, em versões em inglês no disco Samba 68.

Destaques: “Samba de Verão”, “Seu Encanto”, “Preciso Aprender a Ser Só”

 

Garra (1971)

Após cravar, com louvores e aos 20 e poucos anos, seu lugar na seleção da segunda geração da bossa nova, Marcos Valle iniciou uma guinada sonora no fim da década de 1960. Mustang Cor de Sangue (1969) e principalmente o excelente Marcos Valle (1970) – de “Ele e Ela”, a canção sampleada por Kanye West em “Thank You”, de Jay Z – deram amostras de um artista interessado em expandir certas fronteiras bossanovistas, no som e nas letras. Sob os anos de chumbo de Médici, o carioca, um jovem veterano, consolidou a nova fase com Garra, novamente produzido por Milton Miranda e mais uma parceria certeira com Paulo Sérgio.

A bossa nova, claro, ainda ecoa aqui e a li pelos andamentos e ritmos (“Paz e Futebol”, “Ao Amigo Tom”), mas Valle se aproxima cada vez mais do meio-campo entre o que vinha produzindo nos anos 1960 e uma infinidade de propostas.  Toques de soul, blues, rock psicodélico surgem naturalmente e, mais do que gêneros e referências especificas, um astral pop perfuma o ambiente de Garra. Síntese disso é “Com Mais de 30”, hino à juventude que aloja pianos como os de Tom Jobim, violões jorgebenianos e acelerações melódicas modernas, despojadas; ou a faixa-título, também cheia de contrastes preciosos colados com refinado acabamento pop e coros que devem ser descobertos em algum momento por beatmakers. As letras, da mesma forma, demonstram novas percepções, de incertezas da maturidade (“Com Mais de 30”, “Garra”), a críticas à repressão (“Jesus Meu Rei”, cujo título, antes da censura, era “Pobre do Rei”) e ao racismo (“Black Is Beautiful”, eternizada na voz de Elis Regina).

O AllMusic chega a sugerir que Garra “talvez seja o melhor álbum do pop brasileiro da história”. Entre os melhores, está, e Valle seguiu motivado para mais triunfos durante a década de 1970 – quando ele, enfim, passou a ter mais de 30.

Destaques: “Com Mais de 30”, “Garra”, “Minha Voz Virá do Sol da América”

 

Previsão do Tempo (1973)

Se Garra foi um marco categórico da nova fase de Marcos Valle, Previsão do Tempo, de dois anos depois, é o ápice desse cruzamento azeitado e sem amarras que se tornou tão típico de sua obra. Vento Sul (1972), também entre os preferidos dos fãs, já havia comprovado que a viagem do carioca continuaria dinâmica pela década de 1970. Mas diferentemente de seu predecessor, embebido de referências ao rock progressivo, Previsão é groove, é easy, é pop – e, ao mesmo tempo, é substancioso e surpreendente. Entre samba, soul, funk, rock, pilantragem, cacoetes de trilhas da tv, pop barroco, valsa e até protótipos de beat box, fica difícil de adivinhar para onde Valle vai. E, ainda assim, você sempre se aconchega no caminho, em meio a melodias hipnóticas e mistérios sonoros forjados pelo Azymuth, trio presente em todas as canções – com exceção de “Flamengo Até Morrer” e “Poesia Fatal”, gravadas com O Terço, que já havia acompanhado Valle em Vento Sul.

Em um pulo, ele vai do balanço irresistível à la Stevie Wonder de “Mentira” – que se tornaria a base de “Contexto”, do Planet Hemp – para a sutileza extrema de “Mais do Que Valsa”, de melodia delicada, meditativa, mas sedutora, como um Brian Wilson que toma sol em Copacabana. Mesmo com paleta de cores tão rica, o disco tem subtexto denso nas letras, com críticas à polícia e à ganância (“Tira a Mão” e “Nem Paletó, Nem Gravata”), uma homenagem a Torquato Neto, que havia se suicidado (“Poesia Fatal”), relatos de crises de saúde mental provenientes da luta política na ditadura (“Tiu-ba-la-quiêba”), além da própria capa, alusão aos galpões de tortura e ao sufocamento artístico promovido pelo regime.

Mas, no manuseio melódico impressionante e no vai e vem dos timbres do Rhodes (de Valle) e do Mini Moog (de José Roberto Bertrami), o repertório de Previsão é dos mais convidativos e saborosos. Como não seria com uma composição como, por exemplo, “Não Tem nada Não”, cujos créditos trazem, além de Marcos Valle, João Donato e Eumir Deodato?

Destaques: “É Mentira”, “Não Tem Nada Não”, “Mais do Que Valsa”

 

Marcos Valle (1983)

Depois de morar nos Estados Unidos de 1975 a 1980 (quando trabalhou com Sarah Vaughan, Leon Ware e Chicago), Valle retornou ao Brasil para gravar um álbum pela Som Livre, e Vontade de Rever Você (1981) – de “A Paraíba Não é Chicago” – mostrou que o músico se sentiria à vontade brincando pelos anos 1980.  Com a Lei de Anistia e a revogação do AI-5 sancionadas no fim da década de 1970, o clima no país era de esperança por uma possível abertura democrática, otimismo que se reflete na energia de Marcos Valle (1983), o famoso disco da capa com os sucos.  Mas, além da atmosfera confiante – Valle, inclusive, já disse ter saído do Brasil em 1975 por estar psicologicamente abalado pela ditadura –, o disco foi produzido por um mestre da endorfina musical: Lincoln Olivetti.

Fãs mútuos, Valle e Olivetti se entendem magistralmente por entre melodias cativantes e harmonias rechonchudas, caprichadas nos sintetizadores, bem na onda da pérola Lincoln Olivetti & Robson Jorge, lançada em 1982 (Jorge, aliás, está no time de músicos do disco, junto do saxofonista Oberdan Magalhães e do trombonista Serginho Trombone). Como de costume, o repertório funde ritmos brasileiros à música negra americana, mas, dessa vez, o boogie ascende como protagonista. Hino fitness e um dos funks mais emblemáticos da nossa música, o mega hit “Estrelar” transformou Valle em um astro de rotação no Chacrinha e no Fantástico e, segundo o próprio, fez ele “virar o Xuxo”.

“Dia D” e a instrumental “Naturalmente” também parecem fazer menção a Earth, Wind & Fire, The Gap Band e Quincy Jones; e “Tapa No Real” chega a remeter ao que Prince vinha cozinhando à época – a ambiência meio-funk-meio-synth-pop e o percurso até um refrão chiclete e vibrante –, mas tudo vem envernizado por um mel brasileiro que só poderia vir de dois magos do nosso pop. Há ainda tributos ao jovem bossanovista com uma incrível releitura elétrica de “Samba de Verão” e a versão instrumental de “Viola Enluarada”. Em um mundo em que Thriller já existia, Marcos Valle é um disco antenado à primeira metade dos anos 1980 e, ao mesmo tempo, de hits atemporais.

Destaques: “Estrelar”, “Fogo do Sol”, “Tapa no Real”

 

Sempre (2019)

Nos últimos anos de uma década de 1990 mais discreta, Marcos Valle engatou uma leva de discos pela Far Out Recordings – selo britânico dedicado a artistas brasileiros –, inaugurada com Nova Bossa Nova, de 1998. Na sequência, vieram Escape (2001) e Contrasts (2003), no geral inclinados a uma bossa nova pop. Após Os Bossa Nova (2008), projeto colaborativo com Menescal, Lyra e Donato lançado pela Biscoito Fino, ele soltou o sincopado Estática (2010), mais um pela Far Out – e então passaram-se quase 10 anos sem um disco de inéditas. O escolhido para fechar esse 5pra1 é um retorno em grande estilo: o dançante e lustroso Sempre, de 2019.

Acompanhado de Alex Malheiros, Armando Marçal e trio formado por Paulinho Guitarra, Marcelo Martins e Jesse Sadock, Valle resgata muito do que havia produzido nos anos 1980, mas adiciona virtuose e toques de jam session à textura disco music do repertório. A abertura “Olha Quem Tá Chegando” ressoa Nile Rodgers & CHIC, enquanto “Odisseia” é uma epopeia instrumental acid-jazz-funk exuberante (de 9 minutos) que mescla sintetizadores etéreos e Rhodes preciso. Em BPMs mais acelerados, “Minha Romã” e “Vou Amanhã Saber” trazem o suingue das pistas oitentistas, mas com roupagem mais orgânica e alinhada aos novos tempos. Ainda há espaço para uma versão turbinada, recheada de ataques de metais e teclas borbulhantes, de “Aviso Aos Navegantes”, hit do amigo Lulu Santos.

Sempre é mais uma demonstração de que Marcos Valle (aqui, já com mais de meio século de carreira e beirando os 80 anos de idade) é a força criativa mais inquieta e imprevisível que a bossa nova produziu. Livre e inspirado, mas nunca hermético: sempre pop e contagiante.

Destaques: “Olha Quem Tá Chegando”, “Minha Romã”, “Odisseia”

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ARTISTA: Marcos Valle