7 discos fundamentais da Fania Records

Fundada há 60 anos – diretamente dos arranha-céus de Nova York –, a gravadora revolucionou a música latina

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Fotos: PBS/Courtesy Everett Collection

Abrir o jornal na década de 1960 significava se deparar com notícias como o embargo econômico imposto pelos Estados Unidos à ilha de Cuba. Em páginas menos óbvias, tomava-se conhecimento sobre uma mega ocupação de fábricas na Argentina e o desenrolar do infinito conflito armado colombiano. Nos suplementos de cultura, lia-se sobre a escolha do guatemalteco Miguel Ángel Astúrias como o Nobel de Literatura. De fato, a América hispânica vivia dias conturbados, o que, para muitos, soava como um chamamento à criação de novas frentes culturais.

Ainda que não tivessem um engajamento político por trás de suas intenções, o músico dominicano Johnny Pacheco e seu advogado, o ítalo-norte-americano Jerry Masucci, decidiram criar uma gravadora que pudesse comportar o fervor de jovens talentos que se dedicavam ao bolero, à guaracha e, sobretudo, à salsa – gênero com o qual a própria história da gravadora Fania Records se confunde. Fundado há seis décadas, o selo é um marco representativo do êxodo de artistas que se refugiavam nos Estados Unidos em busca de oportunidades, mas também das expressões culturais que, alinhadas ao orgulho étnico, os tornaram, nos anos subsequentes, manequins de uma rica vitrine formada por referências latinas.

Mesmo que seu nome tenha sido inspirado na canção “Estefanía”, um clássico da música cubana, “La Fania”, como ficou conhecida, nasceu abrangendo um caldeirão musical em que os sons das Américas e do Caribe se atravessavam, por vezes também em sintonia com o jazz e a ancestralidade africana. A fórmula de sucesso, que impulsionou nomes como Célia Cruz, Rubén Blades e Willie Colón, estabeleceu uma “era de ouro”, dando origem ao grupo Fania-All Stars, projeto que uniu, sem precedentes, dentro e fora do estúdio, seus principais nomes.

É certo que em determinadas bolhas de Nova York o noticiário parecia não ter efeito. Envolvidos por dramas sentimentais, galanteios, muito glamour e, por que não, uma estética camp, os discos lançados pela casa fizeram da Fania a principal arquiteta de uma cena que conserva permanente relevância, mas que também propunha sonhar. É o que se nota, pelo menos, através das escolhas criativas de jovens nomes como a argentina Nathy Peluso, fã declarada do gênero, ou mesmo do resgate de sucessos como “El títere”. Na voz de Louie Ramirez, a gravação se tornou uma trend incontornável em plataformas como o TikTok. A seguir, você passeia por entre alguns destes projetos que estabeleceram a música em espanhol tal qual a conhecemos hoje: vibrante e despojada de qualquer amarra.

 

La Lupe – La Lupe Es La Reina (1969)

“Intensa e irreverente” talvez sejam os adjetivos mais comuns para se referir à obra da cubana Guadalupe Victoria Yolí Raymond, conhecida como La Lupe. “Puro Teatro”, balada exageradamente trágica em que versa sobre um romance arruinado por dissimulações, ganhou releituras a perder de vista, inclusive pela brasileira Filipe Catto. Outros clássicos de seu repertório como “Que te Pedí” retornaram aos holofotes pela voz de Kali Uchis. Nada, entretanto, se compara aos vocais originais que, cheios de fôlego, alinharam-se ao drama dos violinos para acusar a desonestidade de seu companheiro.

Mirando o simulacro que se rompe por versos como “yo confiaba ciegamente en la fiebre de tus besos”, o disco La Lupe Es La Reina (1969) apresenta pérolas da canção afrolatina, aspecto que se faz presente até mesmo na capa do projeto. Como Clara Nunes haveria de fazer no Brasil, La Lupe ostentou com orgulho sua relação com a Santería, religião de origem yorubá, até mesmo na capa do projeto.

No clique de Warren Flagler, ela aparece vestida de branco e com a cabeça coberta, uma cartão de visitas para momentos como “Guaguancó Bembé”, canção em que presta homenagem às divindades africanas. A capacidade interpretativa da artista a levaria ainda a celebrar o Caribe (“Me siento guajira”) e seu próprio legado (na faixa-título), em registros que embaralham a mente do ouvinte ao formar uma dicotomia em que amor e dor se equilibram sem dificuldade.

Rubén Blades e Willie Colón – Siembra (1978)

A aproximação entre o compositor e trombonista norte-americano Willie Colón e o cantor panamenho Rubén Blades deu origem ao LP Siembra, um dos projetos de salsa mais celebrados e vendidos da história. Fruto de um percurso que se pauta pela exótica combinação de música, narrativa e crítica social, o projeto chama a atenção por suas escolhas pouco óbvias. “Plástico”, canção dedicada a abrir seus trabalhos, apresenta um prelúdio de 35 segundos dedicados à disco music, para só então explodir em uma profusão de instrumentos que pavimentam o drama de seus protagonistas, um casal de alpinistas sociais já cego por suas aspirações.

Nesse cenário de pura ilusão, a faixa se firma como síntese do que o ouvinte encontra a seguir. Ao assumir um tom narrativo que se aproxima da crônica, aspecto que gerou dúvidas até mesmo entre os executivos de “la Fania”, o material se aprofunda em situações urbanas e comportamentais enquanto tece críticas ao capitalismo. As risadas por conveniência e a sede desenfreada pelo poder saem de cena para dar espaço para a violência que finda a vida de Pedro Navaja. O bandido é protagonista da salsa homônima, que revela, ao longo de 7 minutos, seus planos de cometer um homicídio. Imerso em seu “vale tudo”, acaba se esquecendo da possibilidade de ser surpreendido pela vítima com um tiro.

Com um legado que o permitiu não apenas ser regravado ao vivo, 45 anos depois, mas também vencer um prêmio Grammy em 2024, na categoria Melhor Álbum Latino Tropical — gesto que gerou críticas por parte de Colón, contrário ao que chamou de “repetição” — “Siembra” haveria de atrair ouvintes como Joaquín Sabina e o Nobel colombiano, Gabriel García Márquez. Pesem as maledicências, a chamada “salsa consciente” faria de Rubén Blades um poeta de seu tempo.

Louie Ramírez – Ali Baba (1968)

No primeiro disco a integrar o bem-sucedido contrato que firmou com a gravadora Fania Records, o cantor Louie Ramírez, um compositor e arranjador que vinha há pelo menos 10 anos colaborando com a cena musical local, preferiu apostar em um pseudônimo. Pioneiro do mambo, o artista nova-iorquino mergulhou fundo em uma narrativa que buscava nas “Mil e Uma Noites” os elementos formadores de sua persona carismática e boêmia.

Amparado por uma conjuntura musical que ainda se entrelaça ao bugalu, subgênero que mescla R&B, soul e son montuno, Ramírez acabou impulsionando a própria carreira, que a partir deste trabalho ainda haveria de ganhar uma camada extra de interesse: em Alibaba, o artista acabou ampliando o alcance do Spanglish, dialeto utilizado por imigrantes e descendentes de latinos na América do Norte.

Com senso de humor e uma despretensão que o permitiu transitar por entre arranjos complexos e, ao mesmo tempo, ser cortejado pelo piano, o projeto tem como destaque as faixas “El Títere”, hoje um sucesso em plataformas como Instagram e TikTok; “Cachita”, ode aos ritmos empreendidos por seu intérprete; e “It’s Not What You Say”, sedutora parceria funky com o grupo Los Latin Chords. É ela quem abre caminho para a jam “Yambu”, arremate que dispensa apresentações.

Celia Cruz e Tito Puente – Alma Con Alma (1970)

A rainha da salsa e o rei do jazz latino decidiram se unir, em 1970, para um projeto inédito. Notadamente o mais expressivo dos cinco discos colaborativos lançados por Celia Cruz e Tito Puente, Alma Con Alma se revela um precursor da funesta cultura das colaborações, hoje a menina dos olhos de uma indústria musical sedenta por números. Gravadas à la Elis & Tom, as 10 faixas que compõem o material são apresentadas com altivez proporcional à da ilustração de capa, que enlaça suas trajetórias além da vida mirando o futuro.

O entusiasmo com que se destapa o todo se torna ainda mais evidente em momentos como a faixa de abertura, “Cuyi”, registro que para ouvidos desatentos seria plenamente capaz de se confundir com o samba brasileiro. As baladas “Mi Bohío” e “Murmullo del Mar”, por sua vez, desaceleram o ritmo a fim de reconstruir um romantismo delirante, fugitivo das recordações ingratas. Embora pouco se saiba sobre o contexto em que se deu a criação do álbum, o material também entrega momentos de pura sintonia como “Salsa de Tomate”, canção chistosa em que os autores brincam com a dubiedade da palavra “salsa”, uma vez que esta designa na língua espanhola tanto o ritmo musical que os consagrou como o tradicional molho utilizado em receitas. Narrada como se os autores estivessem na cozinha, a excitação cresce conforme se menciona um baile prestes a ocorrer. As intervenções faladas de Celia Cruz tornam o registro ainda mais instigante.

Héctor Lavoe – De Ti Depende (1976)

Segundo disco solo do porto-riquenho Héctor Lavoe, De Ti Depende se tornou um símbolo de sua também exitosa parceria com Willie Colón, já mencionada mente por trás de incontáveis projetos da Fania. Nesta compilação de oito músicas, a estética vibrante da salsa sai de cena para que uma frequência mais vagarosa, centrada na mensagem e na satisfação total melodia, se sobressaia. Como um convite para dançar entre tragos e à meia-luz, o material brinda o ouvinte com longas faixas que destacam o requinte instrumental de Colón, além dos vocais que consagraram Lavoe entre seus discípulos como “La Voz”.

O esquecimento e a constância das paixões se esbarram a todo momento entre metáforas que comparam amores, sob perspectiva oscilante, tanto a obsessões quanto a jornais vencidos. É o que dizem, pelo menos, as faixas “Felices Horas” e “Periódico de Ayer”, respectivamente. Em “De Ti Depende”, canção escolhida para dar título à obra, Lavoe parece se sentar em uma mesa de um bar com a intenção de expor um dilema sentimental. Compartilhando com o ouvinte suas dúvidas a respeito de uma dama inalcançável, ele se permite cantar com honestidade — algo que se repete, em outra frequência, ao reivindicar em “Hacha y Machete” seu lugar de direito dentro da música latina.

Ismael Quintana – Amor, Vida y Sentimiento (1977)

O título deste projeto de Ismael Quintana, mais um porto-riquenho a integrar a presente lista, funciona como uma celebração à alegria de viver, com seus erros e acertos. Convencida pelo desejo de encontrar nas coisas mais simples o ímpeto de seguir, a gravação peca, por circunstâncias incertas, ao não apresentar uma qualidade de áudio equiparável à de outros registros feitos sob a batuta da Fania. Por outro lado, ao remeter indiretamente a produções contemporâneas do Brasil como o disco Fa-Tal: Gal A Todo Vapor (1971), o repertório incita o ouvinte a buscar detalhes que extrapolam qualquer falha técnica, propondo uma charmosa atmosfera de época.

Imerso na intenção de tornar suas paixões algo eterno, blindado de qualquer lampejo de fugacidade, o artista constrói uma narrativa digna dos grandes romances em que músicas como “Pierdes” ganha status de hino contra a indiferença. A ela, somam-se a balada “No Es Preciso”, uma potente declaração, e “Oi Una Voz”, a sua vez, conectada ao lado onírico da música que impõe ao ouvinte um chamado a bailar. O projeto também faz questão de destacar a sensualidade do son cubano e do merengue, ritmos que dão o tom das faixas “Son Pariente” e “Rico Merengón”, escolhidas para encerrar a jornada.

 

Fania All-Stars – A Band and Their Music: Campeones (2008)

Com o sucesso dos projetos da Fania Records cruzando as fronteiras, seus executivos decidiram expandir ainda mais o grau de adesão popular ao criar um grupo com as principais estrelas do selo. Ainda que a atitude tenha se guiado pelo desejo comercial, o Fania All-Stars catapultou, dentro de pouco tempo, seu nome em direção aos letreiros de espaços como o Estádio Yankee, em Nova York. Mais tarde, a trupe viajou a locais como o Japão e a África, onde também gravou discos ao vivo para plateias que chegaram a reunir de uma só vez mais de 80 mil pessoas.

Sob a regência de nomes como Celia Cruz, Ismael Quintana, Cheo Feliciano, Pete “El Conde” Rodríguez e Santos Colón, entre outros que aparecem em uma de suas mais icônicas fotografias, a banda gerou uma infinidade de registros igualmente irregulares e interessantes, uma vez que se apresentam como registro de uma época. A Band And Their Music: Campeones, compilação editada em 2008, funciona como fotografia dessa época ao resgatar 20 faixas que sintetizam essa febre ao despertar, entre a magia do ao vivo e a polidez do estúdio, fragmentos de uma indústria em formação.

Cabe mencionar os registros de “Bemba Colorá” e “El Ratón”, ambos gravados ao vivo em Nova York; bem como de “El Rey de la Puntualidad”, um dos vários êxitos de Héctor Lavoe que, com sua voz aguda, empresta à faixa uma atmosfera pungente, digna das noites elegantes de salsa e terno branco que experimentou a América. O registro de “Juan Pachanga”, com Rubén Blades, também lança luz sobre a diversidade de estilos adotada pelos criadores do Fania All-Stars, de modo a preservar, ainda que dentro de um produto, as naturezas de cada convidado.

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