A breve e histórica saga da Black Swan Records

No centenário da declaração de falência da primeira gravadora fundada por e focada em pessoas pretas nos Estados Unidos, revisitamos a história de artistas de seu catálogo e de Harry Pace – o pioneiro por trás deste projeto revolucionário

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Fotos: Arquivo Ethel Waters

Antes de entrarmos, de fato, na vida de Harry Pace e na sua imensurável contribuição para o mundo da música – além da sua feroz participação no movimento antirracista –, é preciso gastar algumas linhas sobre o modus operandi do racismo como um sistema intrincado de violências contra a população preta. Além dos ataques físicos, incontestáveis, institucionalizados pela polícia, além da marginalização, da segregação, há um componente metafísico no racismo. Ao apagar da história personagens como o próprio Harry Pace, o racismo tira do preto a memória da glória e reafirma o falso posto do branco como agente único dela.

O podcast The Vanishing of Harry Pace (em tradução livre, “O desaparecimento de Harry Pace”) criado pelos jornalistas e radialistas estadunidenses Jad Abumrad e Shima Oliaee – ambos radicados em Nova York – se esforça em materializar a antítese do título do programa. Em uma série de seis episódios, a dupla vai fundo na história do homem que, em 1921, criou a Black Swan – a primeira gravadora fundada por e focada em pessoas pretas nos Estados Unidos.

Formado em Direito pela Universidade de Atlanta, Pace mudou-se para Nova York ao lado de seu grande amigo W. C. Handy (autodeclarado o “Pai do Blues”, mas também merecedor do título, já que é dele o primeiro hit do gênero – “Memphis Blues” – nas paradas do país). Juntos, criaram a Pace & Handy Music Co., uma empresa dedicada à impressão e comercialização de partituras escritas por compositores pretos. O que funcionou muito bem até o momento em que “Crazy Blues”, de Mamie Smith – uma das poucas canções criadas e performadas por artistas pretos que chegaram a ser gravadas na época –, explodiu em 1920 pela Okeh Records, uma gravadora branca. No ano seguinte, já surgia a Black Swan com o seguinte slogan: “Os únicos discos que usam exclusivamente vozes e músicos negros”.

Um brinde à música

E foi ali, na efervescente cena jazzística do bairro do Harlem – transbordando em talentos quase nunca capturados por estúdios – que eles encontraram a voz que levou a Black Swan para o topo. O registro de “Down Home Blues”, da cantora Ethel Waters, vendeu mais de 100 mil cópias no mesmo ano e no mesmo país em que aconteceu o massacre racial de Tulsa – um levante racista que assassinou mais de 300 pessoas no bairro de Greenwood, da cidade do oeste de Oklahoma. Mesmo nesse cenário, Ethel embarcou em uma tour pelos Estados Unidos que passou por 53 cidades – inclusive algumas no Sul, onde o racismo era ainda mais gritante, declarado e sanguinário.

Vale dizer que nem só de jazz e blues, gêneros que já naquele primeiro momento foram rotulados como ritmos pretos, preenchiam o catálogo da Black Swan. William Grant Still, que era um compositor clássico, e Revella Hughes, uma soprano operística, também estavam filiados à gravadora. Harry Pace foi um discípulo de W.E.B. Du Bois – sociólogo e historiador socialista e pan-africanista – que levou para sua vida os ensinamentos de seu mentor. A Black Swan surgiu para estimular a produção de música por artistas pretos e para delimitar um novo espaço dentro do mercado fonográfico – independente do ritmo ou do gênero.

Entre outros destaques da contribuição da Black Swan para a música norte-americana está a gravação de Shuffle Along (1921), um musical da Broadway criado, desenvolvido e estrelado exclusivamente por artistas pretos que fez história ao incluir danças afro-americanas pela primeira vez nos palcos da rua considerada o berço do teatro musical estadunidense. Vale lembrar também da faixa “Lift Every Voice and Singer”, de John & James Weldon Johnson – que ficou conhecida popularmente como “o hino preto dos EUA”.

Turbulência e desaparecimento

Conforme os anos foram se passando, a pressão pelo crescimento da Black Swan fez com que Pace desse um passo em falso: ele comprou a empresa onde gravava e prensava os discos do selo – o que o chafurdou em dívidas. Fora isso, o surgimento da rádio dificultou a situação de quem vivia exclusivamente de vender discos. O golpe mais fatal, contudo, veio quando as gravadoras brancas – com mais tempo de mercado, mais dinheiro e mais estrutura – finalmente passaram a investir em talentos pretos. A competição era injusta e a Black Swan não conseguiu segurar as pontas. Em 1923, a gravadora fecha as portas e, no ano seguinte, ela é vendida para a Paramount.

Apesar de ter divulgado e apoiado amplamente a cultura preta nos Estados Unidos – Pace teve papel fundamental no processo de dessegregação do bairro de Woodlawn, em Chicago, e ainda fundou as revistas Ebony e Jet, dedicadas ao público preto –, o advogado e empresário morreu como um homem branco. Descendente de escravos e de um dono de escravos, ele tinha a pele clara e, cansado da perseguição, decidiu terminar a vida “passando” por branco. O podcast de Abumrad e Oliaee esboça algumas possibilidades de justificativas para essa decisão: ele viveu em um bairro muito hostil com pessoas pretas no fim da vida, queria que os filhos pudessem casar com brancos e, por fim, ser visto como branco ajudava nos negócios.

O apagamento de Harry Pace, portanto, começou enquanto ele ainda estava vivo, tal era o contexto do racismo nos Estados Unidos na época. Por aqui, celebramos o centenário da falência da Black Swan relembrando a sua história, a sua relevância e a sua contribuição para a música. Abaixo, um giro por alguns dos artistas da Black Swan que merecem a atenção dos seus ouvidos.

Ethel Waters

Sem dúvida, Ethel foi o nome mais proeminente da Black Swan. Entre os seus hits estão canções como “Stormy Weather”, “Taking a Chance on Love” e “Supper Time”. Em entrevista à NPR, Emmett Price III – editor da Enciclopédia de Música Afro-americana – disse que a voz dela é como o oxigênio de um recinto.

Trixie Smith

Foi cantando uma de suas composições originais (“Trixie’s Blues”) que Trixie Smith venceu uma importante competição de cantoras de Blues. Antes de filiar-se à Black Swan e gravar músicas como “My Man Rocks Me”, ela também foi atriz, comediante e dançarina de Vaudeville. Isso sem falar em sua passagem pela Broadway, sob o pseudônimo Bessie Lee.

Alberta Hunter

Cantar talvez fosse o eixo central da carreira de Alberta Hunter, mas ela também compunha e até chegou a atuar na produção londrina de Show Boat – um dos mais importantes e revolucionários musicais da Broadway. No começo de sua carreira, ela trabalhava de dia e ficava procurando, pela noite, os donos dos bares onde as cantoras podiam se apresentar. A determinação foi tamanha que ela não apenas explodiu nos EUA como ainda fez uma celebrada tour pela Europa.

Florence Cole Talbert

Nascida em Detroit, ela foi uma das primeiras mulheres pretas a ganhar o amor do público e da crítica especializada na ópera. Entre seus maiores feitos está o de ter desempenhado o cobiçado papel titular de Aida, do histórico compositor italiano Giuseppe Verdi. Na comunidade preta estadunidense, ela era conhecida como “Primeira Dama da Ópera”, “Nossa Divina Florença” e “Rainha dos Palcos”.

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