A história dos musicais contada por musicais que fizeram história

Selecionamos as peças mais simbólicas e revolucionárias para contar a história do gênero que fez da Broadway o seu cenário mais rico e permanente

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Fotos: Joan Marcus/The Lion King

The Beggar’s Opera (1728)

Nossa história começa, na verdade, em Londres, muito antes do West End se tornar o celebrado “bairro dos musicais” da capital inglesa. Em 1728, o autor John Gay decidiu fazer uma sátira da ópera italiana que, na época, fazia muito sucesso entre as elites da metrópole. Falando sobre corrupção em diferentes camadas de uma sociedade quebrada, ele escreveu uma anti-ópera: ao mesmo tempo em que a estrutura de três atos foi respeitada, ao invés das clássicas canções operísticas – sempre cantadas, inclusive, em italiano, ainda que fora da Itália – ele colocou os atores para performar músicas que já tinham caído no gosto popular, só que com novas letras – neste caso, adaptadas para desenvolver o enredo. A estratégia deu certo: o musical teve 62 performances seguidas (um recorde para a época) e foi chamada de “a peça mais popular no século 18”. Curiosidade: a Ópera do Malandro (1978), de Chico Buarque, é uma releitura de The Beggar’s Opera.

The Black Crook (1866)

Mais de um século depois, o formato de teatro musical no formato como o que conhecemos hoje ainda não tinha encontrado um sucessor para The Beggar’s Opera. Tanto na Inglaterra, quanto nos Estados Unidos, diferentes tipos de espetáculos no limiar entre o teatro, o musical e o circo tiveram seu lugar ao sol. The Black Crook surge, portanto, em meio a uma cena teatral norte-americana em que ou a música ou a história estavam em foco sobre o palco. E essa é uma das suas grandes contribuições para a história dos musicais: é aqui que a dança, a música, o canto e a atuação se combinam no intuito de desenvolver um enredo. Incorporando elementos de Fausto (1829), do escritor alemão Goethe, o roteiro era pautado pelos traços estilísticos do romantismo. Com impressionantes 474 apresentações em sua primeira versão, The Black Crook também ficou conhecido por seus efeitos especiais e figurino exagerado – uma característica que, até hoje, aparece nas produções de sucesso.

Shuffle Along (1921)

Com libreto de Flournoy Miller e Aubrey Lyles e músicas de Noble Sissle e Eubie Blake, Shuffle Along foi pioneiro em muitos aspectos. Primeiro porque toda a equipe – nos palcos e nas coxias – era preta. Depois, porque o musical foi o responsável por finalmente trazer o efervescente jazz das ruas para a Broadway. Contando a história de dois donos de mercearia que queriam se tornar prefeitos, a peça ficou conhecida por músicas como “Love Will Find a Way” e “I’m Just Wild About Harry” – ambas sobre o romance que ocorre no fundo da narrativa. Em 2016, inclusive, estreou na Broadway o musical Shuffle Along, or, the Making of the Musical Sensation and All That Followed com Audra McDonald e Billy Porter no elenco, contando a história de como foi levantar esse musical em 1921, em um período em que, para estar nos palcos, os artistas pretos tinham que obrigatoriamente estar em blackface. Foram muitas as concessões abertas pela equipe do Shuffle Along original para conseguir apelar para os públicos brancos. Ainda assim, a peça mostrou pessoas pretas em papéis que antes não eram designados a elas: donos de empresas, prefeitos, homens e mulheres da alta sociedade, etc. De quebra, Shuffle Along ficou em cartaz por mais de um ano e ainda fez uma tour se apresentando pelos Estados Unidos.

Show Boat (1927)

Florenz Ziegfeld era um dos maiores produtores de teatro na Broadway naquele período. Inspirado pelos espetáculos de vedetes da Folies Begère de Paris, ele criou a Ziegfeld Follies nos Estados Unidos com a mesma pegada. Conhecido por esse tipo de show, Edna Ferber achou bem estranho que ele queria fazer um musical a partir de seu livro Show Boat, lançado em 1926. O romance em questão contava a história de três diferentes gerações de artistas que trabalharam no Cotton Blossom, um teatro flutuante que viajou pelo Rio Mississipi e se apresentou em diferentes cidades entre as décadas de 1880 e 1920. Entre os temas do livro estão o preconceito racial e o poder do amor verdadeiro frente à tragédia – assuntos que em nada tinham a ver com a Ziegfeld Follies. Ainda assim, com letras de Oscar Hammerstein II e música de Jerome Kern, o musical Show Boat estreou em 1927 e trouxe à Broadway uma nova profundidade, um novo peso teatral e dramático. Em 1951, inclusive, surgiu o filme de Show Boat – vale assistir!

Oklahoma! (1943)

Eis aqui o primeiro musical da icônica dupla Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II. Além de Oklahoma!, eles assinam produções históricas como The King and I (1951), Cinderella (1957) e Sound of Music (1959). Em sua estreia, o duo escolheu adaptar o roteiro da peça Green Grows The Lilacs (1931), de Lynn Rigs, que conta a história de Laurey Williams, uma menina que mora na fazenda e tem sua mão disputada por dois cowboys. Desde o dia 31 de março do ano de seu debut, Oklahoma! foi apresentado impressionantes 2212 vezes e impressionou por duas inovações em particular: não existem mais as “cigarrette songs” (músicas que não contribuem para o plot) e são introduzidos os “motivos” (frases musicais que se repetem durante a peça e dão a ela uma amarração melódica que contribui para a coesão da trama).

West Side Story (1957)

Esta é a estreia do genial Stephen Sondheim na Broadway. O letrista e compositor escreveu toda a poesia de West Side Story: um musical que adapta o clássico shakespeariano Romeu e Julieta (1597) ao cenário das ruas de um bairro nova-iorquino dividido entre duas gangues: os Jets (brancos) e os Sharks (latinos). Tony – um membro respeitado da gangue dos Jets – se apaixona por Maria, a irmã de Bernardo, o líder dos Sharks. Com música de Leonard Bernstein, a trágica história é contada por sobre um fundo sonoro que mistura diferentes ritmos latinos com jazz em um entorno sinfônico que surpreendeu o público na época. E, claro, impossível não mencionar a coreografia de West Side Story: até aqui, musicais como Oklahoma! tinham um momento separado para a dança. Em WSS, a dança permeia toda a peça que exige de seu elenco voz, corpo e atuação simultaneamente.

Nota: este é um dos musicais favoritos do autor do texto. Ouça: “Something’s Coming”, “Tonight (Quintet)”, “America”, “I Feel Pretty” e “Somewhere”.

Hair (1968)

Em 1964, os atores Gerome Ragni e James Rado começaram a escrever um musical quase autobiográfico que serviria para registrar o importante momento histórico que atravessavam. Os Estados Unidos estavam em guerra contra o Vietnã e emergia dentro da nação norte-americana o movimento hippie, a contracultura e a revolução sexual. Hair estreou Off-Broadway (em teatros menores, de 100 a 499 lugares) em 1967, com música de Galt MacDermot e estreou o gênero musical-rock que, até então, não havia sido explorado. Além da música, a peça também chocou por sua representação do uso de drogas, por falar tão abertamente sobre sexo, por ter uma cena de nudez, por ter escolhido um casting com diversidade racial e por ter um grand finale que convocava o público para viver uma superexperiência hippie em cima do palco, como em um festival.

Company (1970)

São vários os componentes revolucionários deste musical com letras e composições de Stephen Sondheim e livro de George Furth. Para começar, ele subverte a ideia da música desenvolver o enredo da peça: Company é, na verdade, uma sequência de vinhetas cômicas que, em certa medida, dissertam a partir de diferentes pontos de vista sobre assuntos como encontros, namoros, casamentos, divórcios, términos e, claro, a contraposição entre companheirismo e solidão. Na trama, acompanhamos o aniversário de 35 anos de Bobby, um solteirão convicto que tem suas convicções postas em xeque pelas relações que ele observa ao seu redor. O novo formato garantiu à produção 14 indicações ao Tony Awards (principal premiação do teatro norte-americano) das quais eles vencerem seis. Destaque para a versão londrina de 2018 em que Bobby é uma mulher e para a sempre extraordinária atuação de Patti LuPone como Joanne.

Nota: este é também um dos preferidos do autor do texto que, ao escrever, está se percebendo mais fã de Sondheim do que esperava. Ouça: “The Little Things You Do Together”, “Getting Married Today”, “The Ladies Who Lunch” e “Being Alive”. Impossível não se apaixonar por Company depois disso.

Evita (1979)

Finalmente chegamos em uma peça que leva a assinatura musical do maior dos britânicos do gênero, Andrew Lloyd Webber. Ele também é o criador de hits como Phantom of the Opera (1986) – o musical mais longevo da história da Broadway –, Cats (1981) e Sunset Boulevard (1993). Evita, já no final dos anos 1970, dá o start em uma era em que os musicais ingleses dominavam o mundo. Nas duas décadas seguintes, as megaproduções de Lloyd Webber se tornaram sucesso na Broadway, mas também no mundo todo. Com Patti LuPone no papel de Eva Perón (a carismática segunda esposa do presidente argentino Juan Perón), esta peça é mais uma da série de obras do autor dedicadas à história de diferentes personagens públicos. Antes dela, o José (do livro de Gênesis, da Bíblia, já tinha ganhado seu musical – Joseph and the Amazing Technicolor Dreamcoat, de 1968), tal como o próprio Jesus Cristo (na ópera-rock Jesus Christ Superstar, de 1970).

Dreamgirls (1981)

O elenco de Dreamgirls fala por si só: temos Sheryl Lee Ralph como Deena Jones, Loretta Devine como Lorrell Robinson e, claro, Jennifer Holliday como Effie White. O musical conta a história de um suposto trio de cantoras de Chicago com uma história muito parecida com a das Supremes (grupo do qual Diana Ross fez parte antes de embarcar em uma estelar carreira solo). O papel de Jennifer, na verdade, é coadjuvante. Ainda assim, sua interpretação da canção “And I Am Telling You I Am Not Going” marcou para sempre a história da Broadway e, não à toa, ficou em primeiro lugar nas paradas de R&B do ano seguinte ao da estreia da peça. De quebra, vale dizer que o espetáculo foi dirigido, produzido e coreografado por Michael Bennett, o responsável por A Chorus Line – um sucesso da Broadway metalinguístico que narrava a vida de dançarinos aspirantes. Em Dreamgirls, ele abandona o minimalismo de seu musical hit e cria não apenas elaboradas sequências de passos para o elenco, mas também lança mão de um cenário dançante.

Rent (1996)

Ao escrever Rent, Jonathan Larson queria “trazer o teatro musical para a geração MTV”. Curiosamente, foi com uma releitura bastante livre da ópera La Bohème (1896), de Giacomo Puccini, que ele conseguiu realizar essa missão. Contando a história de um grupo de artistas pobretões do bairro de East Village, em Nova York, o primeiro e único hit de Larson estreou Off-Broadway um dia depois de sua morte. A vida do autor – igualmente interessante – está registrada no filme da Netflix Tick, Tick… Boom! (2021) e era cercada de uma diversidade cultural, sexual e de gênero que, até então, tinha pouca representatividade na Broadway. Uma stripper com HIV, uma drag queen baterista, um professor de filosofia gay, uma advogada lésbica… Rent ficou 12 anos em cartaz e, em 2005, ganhou um filme com boa parte do elenco original escalado. Vale assistir!

The Lion King (1997)

Ainda que The Lion King não tenha sido o primeiro grande musical organizado pela Disney – Beauty and the Beast é que detém esse lugar – ele tem um perfil inovador que justifica o seu espaço na lista. A começo de conversa, essa é uma história que se passa no meio da natureza selvagem, os personagens são bichos e, ainda assim, a caracterização (tanto na maquiagem quanto no figurino) conseguiram encontrar soluções refinadas – o que não acontece tão bem em Cats (tanto no teatro quanto no cinema). Depois, ninguém menos que Elton John assina a música desta peça baseada no filme – que já tinha atingido enorme sucesso – lançado três anos antes. A título de curiosidade, quando The Lion King veio ao Brasil, as letras da versão brasileira do espetáculo foram traduzidas/adaptadas por Gilberto Gil.

Spring Awakening (2006)

O sucesso de Spring Awakening é bastante surpreendente porque, naquela época, um musical de rock que tocasse em tantos temas tabu ao mesmo tempo, em geral, estava destinado a uma curta vida Off-Broadway. Baseado na peça alemã Frühlings Erwachen (1906), o espetáculo – que contava com os hoje astros Jonathan Groff e Lea Michele em seu elenco – transportava o público para as turbulências que aconteciam dentro da mente de uma série de adolescentes alunos de um colégio luterano da Alemanha do século 19. Sadomasoquismo, masturbação, gravidez na adolescência, aborto, homossexualidade, abuso sexual e suicídio são algumas das questões abordadas por Spring Awakening. O documentário sobre o musical feito pela HBO Max (Spring Awakeining: Those You’ve Known, de 2022) conta mais sobre as inovações e o sucesso inesperado do show.

Nota: Mais um preferido do autor do texto. Ouça: “Mama Who Bore Me”, “Don’t Do Sadness/ Blue Wind”, “Totally Fucked” e “The Song Of Purple Summer”.

In the Heights (2008)

Antes do sucesso esmagador de Hamilton (2015), o primeiro musical a levar o hip hop para a Broadway, na verdade, foi In the Heights. Também idealizado por Lin-Manuel Miranda – com livro de Quiara Alegría Hudes –, o espetáculo narra a jornada de Usnavi, um filho de imigrantes dominicanos nos Estados Unidos que sonha em morar na terra natal de seus pais. A peça é uma belíssima celebração da vida estrangeira, dos embates internos frente a essa circunstância, e uma homenagem ao bairro de Washington Heights, em Nova York, famoso por sua população majoritariamente oriunda da República Dominicana. Na Broadway, In the Heights durou três anos em cartaz e, em 2021, o musical ganhou um filme.

A Strange Loop (2022)

A Strange Loop é um musical sobre um homem preto e queer escrevendo um musical sobre um homem preto e queer escrevendo um musical. É nessa atmosfera altamente metalinguística que conhecemos Usher – uma versão para os palcos do próprio autor da peça, Michael R. Jackson – e as seis vozes em sua cabeça que ficam brigando o tempo todo. Cada uma delas é representada por um ator em cena e elas repetem para o protagonista o imbróglio em que ele está metido: a mãe conservadora e ultra-religiosa, o pai alcoólico, as dívidas da faculdade. Por seu formato, ponto de vista e música inovadores, A Strange Loop venceu o Tony de Melhor Musical em junho do ano passado. Infelizmente, ele não está mais em cartaz, mas o impacto na história da Broadway fica para a posteridade.

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