A noite nunca tem fim: os 40 anos de “Non-Stop Erotic Cabaret”, do Soft Cell

Em meio aos anos 1980 de Thatcher, Marc Almond e Dave Ball criaram a trilha para uma pista que é divertida e subversiva – e onde os alto-falantes ecoam pérolas que vão muito além do estrondoso hit “Tainted Love”

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Fotos: Arquivo

Em 1981, Margareth Thatcher estava em seu terceiro ano de governo como primeira-ministra do Reino Unido, colocando em prática suas ações de austeridade econômica e desmonte dos benefícios sociais. Ronald Reagan, do partido republicano, eleito no ano anterior, comandava os Estados Unidos pela primeira vez. Politicamente, o conservadorismo ganhava mais espaço no mundo capitalista, processo que se agravaria ao longo da década, também a partir do pânico gerado por uma doença clinicamente diagnosticada naquele ano: a Aids. O vírus, inicialmente apontado como um “câncer gay”, se transformaria em um catalisador de políticas discriminatórias contra a comunidade LGBTQIA+ ao redor do mundo.

Em 27 de novembro daquele ano, Non-Stop Erotic Cabaret, disco de estreia do Soft Cell, chegava às lojas catapultado pelo sucesso inesperado de “Tainted Love”. Como um registro das angústias que pairavam no ar, capturando a angústia e a frustração de uma geração, o trabalho do duo, que até o começo de 1981 estava restrito a uma certa notoriedade no circuito alternativo da Inglaterra, subitamente figurava no topo das paradas de vários países. O sucesso contrastava com a natureza do projeto encabeçado por Marc Almond e Dave Ball, que pensava a pista de dança não só como um espaço de escape e diversão, mas também como território disruptivo.

O Soft Cell foi formado em 1978, quando Marc e Dave se conheceram na universidade Leeds Polytechnic, onde ambos estudavam. Almond queria usar sons eletrônicos em suas performances ousadas, enquanto Ball buscava alguém para cantar em cima das bases que vinha criando em seu sintetizador. Após a troca de ideias inicial, eles começaram a desenvolver canções, inspirados na premissa do Punk do “faça você mesmo” e de que qualquer um pode criar música, mesmo sem o virtuosismo.

Rapidamente eles se inseriram em uma cena cada vez mais fascinada com a música eletrônica e a tecnologia. O primeiro EP, Mutant Moments, foi financiado com um empréstimo feito pela mãe de Ball, o que já ajudou os iniciantes a fazerem burburinho na cena local. O hype aumentou com a inclusão da faixa “The Girl with the Patent Leather Face”, que já mostrava o interesse deles por tipos não convencionais, em Some Bizzare Album, compilação que reuniu, entre outras, bandas como Depeche Mode, Blancmange e The The. A boa receptividade às suas canções nas boates garantiu ao Soft Cell um contrato com a gravadora Some Bizarre e, no começo de 1981, a dupla lançou o single “Memorabilia” que, no entanto, não vingou. O fracasso da música gerou um ultimato para Marc e Dave: se o próximo single não vendesse, eles seriam dispensados.

Diante da pressão, o Soft Cell tomou uma decisão arriscada e inusitada. Ao invés de uma faixa autoral, os músicos apostaram em um cover de “Tainted Love”, faixa originalmente gravada pela cantora americana Gloria Jones em 1964. Apesar de não ter tido repercussão nos Estados Unidos, a canção virou um hit cult na cena clubber Northern Soul da Inglaterra (fascinada com a música negra estadunidense) nos anos 1970. O status cult da faixa fez com que a cantora, incentivada por seu então marido, Marc Bolan, regravasse a canção para o disco “Vixen”, lançado em 1976 – porém, mais uma vez, sem sucesso comercial.

Com sintetizadores pulsantes de Dave Ball, que com sons de alarmes adicionam um estado de emergência à canção, sensação amplificada pela interpretação entre o desejo e desespero de Almond, “Tainted Love” ganhou uma nova (e definitiva) identidade. Para a surpresa da banda e dos executivos da gravadora, a canção começou a ganhar força nas paradas e, depois da apresentação da dupla no programa Top of the Pops, se tornou uma mania nacional, chegando ao primeiro lugar da parada musical da Inglaterra.

“Eu queria causar o mesmo impacto chocante no Top of the Pops que Marc Bolan e David Bowie haviam causado em mim. Então eu me vesti de preto, com pulseiras cravejadas, pulseiras e delineador A gravadora disse: ‘Não apareça assim. Você vai afastar as pessoas’. Painéis de distribuição iluminaram-se com reclamações, mas a maioria das pessoas adorou. Em todo o país, adereços e delineador preto viraram moda”, lembrou Almond em entrevista ao The Guardian.

No final do ano, “Tainted Love” se tornou o single mais vendido de 1981 na Inglaterra, com mais de um milhão de cópias comercializadas. Quase um ano depois, após atingir chegar ao primeiro lugar nas rádios e nas vendas em 17 países, explodiu nos Estados Unidos, onde “Tainted Love” atingiu a oitava posição e ficou 43 semanas na parada da Billboard, um recorde na época.

Ao contrário de outros nomes da cena Synth-Pop daquele momento, o Soft Cell não adotou em suas performances a atitude entre o robótico, fruto da influência do Kraftwerk, e o apático. Marc Almond imprimiu um sentimentalismo boêmio em suas composições e interpretações. Non-Stop Erotic Cabaret é um álbum que exala tesão, tensão e ironia, reflexo também das gravações em uma Nova York fervilhante, com noites regadas a música e drogas. O título faz referência à essência das canções de Almond e Ball, criadas para soarem como trilha sonora de espaços decadentes, onde desajustados sociais encontram refúgio para viverem suas fantasias e desejos sob luzes neon. Este é um álbum que evoca outros sentidos a partir da audição: tem cheiro (de suor e outros fluídos), gosto (bebida barata, provavelmente quente) e pressupõe uma corporalidade. Foi um disco que iniciou a década sob um signo queer sem sequer imaginar o que viria pela frente.

Ainda que “Tainted Love” tenha, de certa forma, definido Non-Stop Erotic Cabaret, o disco é recheado de outras pérolas. Trata-se de uma obra completa, com sonoridade e atmosfera bem definidas. As produções de Dave Ball são relativamente simples e o Soft Cell faz disso um ponto ao seu favor. Há uma espécie de urgência nas músicas, como fica evidente na própria “Tainted Love”, que usa o primeiro take de Almond, que deveria ter sido uma espécie de ensaio. “Frustration” abre o álbum com um grito que não soaria descontextualizado em um disco punk. A canção é marcada pelo olhar irônico da dupla sobre a vida burguesa e heteronormativa que ganhava proeminência na politica britânica, com Thatcher, após a utopia hippie dos anos 1960 e os excessos da Disco Music nos anos 1970.

O erotismo vibrante do disco é como uma polaróide do fim de uma era. “Seedy Films” relata os encontros furtivos em cinemas pornôs e do sexo casual com estranhos, prática que em pouquíssimo tempo seria estigmatizada pelo pânico causado pela Aids. O próprio desejo seria reconfigurado na década de 1980 a partir do vírus – e consequentemente, a leitura de alguns trabalhos, como a própria “Tainted Love” (amor maculado ou infectado, em tradução para o português), ganharia novos contornos. Vista em retrospecto, “Youth” também parece um prenúncio dos horrores que uma geração de jovens sofreria nos anos seguintes – e o tom sombrio da canção enfatiza a atmosfera de terror diante do fim inevitável.

Marc Almond ser um homem gay que, por recomendação da gravadora, matinha sua sexualidade em segredo, adiciona camadas ainda mais complexas às composições de Non-Stop Erotic Cabaret. É o caso de músicas como “Secret Life” ou “Entertain Me”, que pode ser interpretada tanto como uma faixa sobre a relação do artista com o público, quanto como o desabafo de um homem obrigado a esconder sua verdadeira natureza. “Tentar agradar todas essas pessoas ao meu redor é como tentar chegar à lua (…) Eu tento dar a eles meu melhor – e está piorando”, canta Almond.

O álbum é como o som de alguém em uma panela de pressão pronto para explodir. Há um inconformismo latente e um destemor em provocar, como na quase non-sense “Sex Dwarf” (anão do sexo, em português). A música e o clipe causaram polêmica – com o clipe sendo banido da TV. Em entrevista recente ao site The Quietus, Almond explicou que a música é uma ode às manchetes dos tablóides e à cultura underground. “Eu enxergo como um clássico pós-punk. É uma música subversiva e ainda tem relevância atualmente. Eu gosto mais dela hoje do que no passado”, contou.

Canções como “Chips on my Shoulder” e “Bedsitter”, outro hit do disco, são marcadas por êxtase e melancolia e refletem as incertezas da juventude britânica do período, sem perspectivas ou grandes emoções, com exceção das noites fugazes nas pistas de dança nos fins de semana. O disco é encerrado com a delicada “Say Hello, Wave Goodbye”, um raro momento de vulnerabilidade amorosa no álbum. Segundo o colunista Lúcio Ribeiro, da Folha de São Paulo, Renato Russo admitiu ter traduzido diretamente os versos “Take your hands of me/ I don’t belong to you”, presente na faixa, para a abertura da música “Será” (tire suas mãos de mim/ eu não pertenço a você).

Ao completar 40 anos de seu lançamento, Non-Stop Erotic Cabaret continua vibrante. É um álbum que carrega as marcas do seu tempo, mas que não está preso a ele. Entre os altos e baixos do Soft Cell, que chegou ao fim em 1984, após lançar mais dois discos (The Art of Falling Apart e Last Night in Sodom), ambos sem grandes repercussões, a obra continuou permeando a música pPop pelas décadas seguintes, ecoando em nomes como Pet Shop Boys, Erasure, Scissor Sisters, entre outros. “Tainted Love” ganhou versões em diferentes gêneros e o sample do duo foi usado, entre outros, em “SOS”, de Rihanna, primeira faixa da cantora a atingir o topo da parada americana. A faixa também inspirou um dos maiores clássicos do Pop, “…Baby One More Time”, com Britney classificando “Tainted Love” como uma música “sexy”, cuja construção vocal ela queria emular em seu primeiro single.

Para comemorar o legado do álbum, Marc Almond e Dave Ball recentemente fizeram uma curta e aclamada série de shows na Inglaterra. A dupla também lançou duas faixas, “Bruises on my Illusions” e “Heart Like Chernobyl”, que estarão no disco Happiness Not Included, com previsão de lançamento no Brasil em 2022, via BMG. Este será o primeiro álbum de inéditas do Soft Cell desde Cruelty Without Beauty, lançado em 2002.

Ainda na entrevista ao The Quietus refletindo sobre o trabalho, 40 anos depois de seu lançamento, Marc Almond disse conseguir enxergar com mais clareza seu impacto e nuances. “O álbum foi o outro lado da moeda da Grã-Bretanha de Margaret Thatcher: nunca achei que fosse político na época, mas parece que é agora. Non-Stop Erotic Cabaret era a vida secreta e decadente que existia por trás da máscara da Grã-Bretanha conservadora. Conta a história de um cara comum entediado fervendo de raiva de sua vida querendo mais e procurando por emoção e aventura em um mundo (como o bairro) Soho iluminado por néon vermelho de cabarés, prostitutas e anões do sexo, olhando para trás em sua juventude e se perguntando o que aconteceu.”

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ARTISTA: Soft Cell