A roda de samba filosófica de Rodrigo Campos

Com sutis samples melódicos e inspirações em Albert Camus, “Pagode Novo”, recém-lançado disco do músico paulista, investiga sonoridades e estados de espírito das rodas de samba

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Fotos: Louie Martins

Paulinho da Viola certa vez mirava o horizonte da eternidade ao fazer “um samba sobre o infinito”, em “Para Ver as Meninas”. Mas a transcendência imaginada por Paulinho não estava ligada a uma compreensão completa da realidade e uma atitude reativa diante do mundo. Ao contrário, seu alicerce era uma postura de silenciosa sabedoria que contempla o seu redor com a consciência de sua natureza fugidia e incerta — “as coisas estão no mundo, eu só preciso aprender”, como ele cantou em outra canção.

Décadas depois, o olhar de Paulinho da Viola sobre o samba e a vida ecoa no som do paulista Rodrigo Campos, que acaba de lançar o álbum Pagode Novo, uma investigação de sonoridades e estados de espírito das rodas de samba. Em uma das músicas mais fortes do disco, ele canta uma espécie de manifesto sobre o não-entendimento e o limite do nada: “Não quer meu samba procurar/ Na claridade que não há de se ter/ Na qualidade de esquecer/ Meu samba quer se dissolver e acabar/ Tão leve assim no ar sem dor”.

Em entrevista por videochamada, Rodrigo conta que a música reflete muito de sua ligação espiritual com o budismo. “A gente vive numa sociedade que quer entender tudo. E quer entender tudo através do pensamento. Enquanto na sociedade oriental eles entram no pensamento através da prática, aqui a gente pensa e depois faz. Lá eles fazem, depois pensam. Quando canto ‘não quer meu samba procurar a claridade que não há de se ter’, é porque eu não vou compreender tudo. ‘Meu samba quer se dissolver e acabar’, ou seja, não quero pensar mais tanto. Acho que a nossa sociedade está saturada de tanto pensamento e tantas bifurcações de pensamento que às vezes não estão dando realmente em lugar nenhum”, pontua.

“Meu Samba Quer Se Dissolver” é a síntese da aproximação que o álbum Pagode Novo busca fazer em torno do que o seu autor chama de linha filosófica do samba. Muito desse processo foi despertado em Sambas do Absurdo (2017), álbum feito por Rodrigo em trabalho coletivo com Juçara Marçal e Gui Amabis sob inspiração dos escritos existencialistas do escritor franco-argelino Albert Camus.

Campos explica que, para Camus, o tempo histórico é o período em que as ações humanas ocorrem, com os conflitos e interesses entre grupos e indivíduos moldando a história. Já a condição humana diz respeito à existência absurda e sem sentido, na qual tentamos constantemente encontrar significado em um mundo essencialmente irracional — como Sísifo eternamente rolando a pedra de mármore montanha acima. E é esta condição humana, que atravessa a história e está entranhada em nós, que Rodrigo Campos busca examinar em seus novos pagodes.

“A filosofia que acontece no samba é quase a filosofia do Brasil. Durante muito tempo a filosofia brasileira foi estudar a filosofia europeia. O filósofo brasileiro era um estudante de filosofia. E em paralelo a isso, a canção estava pensando o que acontecia aqui. O pensamento brasileiro está muito na canção brasileira. É a filosofia sendo feita”, explica o músico.

“Quando faço esse encontro imaginário do Camus com o samba, é porque eu realmente acho que tem um quê de filosofia no Paulinho da Viola, Nelson Cavaquinho, Cartola, Gilberto Gil… Você os vê pensando a existência, procurando refúgio na condição humana. Já que o tempo histórico sempre foi tão duro com essas pessoas, elas estão sempre procurando a abertura, a catarse na condição humana”.

“Quando faço esse encontro imaginário do Camus com o samba, é porque realmente acho que tem um quê de filosofia no Paulinho da Viola, Nelson Cavaquinho, Cartola, Gilberto Gil… Você os vê pensando a existência, procurando refúgio na condição humana”

Essa é uma abordagem que gerou uma forma de escrita um tanto nova nas suas letras. Em seus três primeiros álbuns — os aclamados São Mateus Não é um Lugar Assim Tão Longe (2009), Bahia Fantástica (2012) e Conversas com Toshiro (2015) —, o músico ganhou destaque por construir universos temáticos bem delineados. Às vezes, ia para um ambiente mais concreto, como a vida na quebrada de São Mateus, no extremo Leste de São Paulo. Em outras ocasiões, trilhava pistas de um caminho onírico, inconsciente e mitológico, como em Conversas com Toshiro. Mas sempre havia uma temática que estruturava a narrativa do álbum, com personagens, cenários e situações descritas com riqueza de detalhes ao ponto de soarem como crônicas (basta ouvir Califórnia Azul ou “Jardim Japão). Mas com 9 Sambas (2019) e Pagode Novo, sua poética caminhou de vez pela trilha da opacidade, com tinturas cada vez mais impressionistas e abstratas.

“Silvia e o Medo” oferece uma mostra dessa sua escrita que permanece muito imagética (por influência do cinema, que é o seu “principal meio de entender a vida”), mas que mergulha de vez em associações surrealistas. “Silvia caída no canto esquerdo do medo/ O segredo era um dedo boiando no sol/ Na piscina de sangue no meio da pia”, dizem os versos cantados por Romulo Fróes, coautor da música, que opera uma montagem de atração sensorial, entre o evidente e o invisível, tematizando os medos e dogmas morais da esquerda progressista de forma não linear.

“No rap, você usa o sample para criar uma canção em cima. No meu caso, já chego com canção, harmonia, com violão. O sample vai ter de encaixar na base de outro jeito. Eles fazem alguns contrapontos, fazendo a vez de violinos ou pianos… De coisas que teriam um papel mais orquestral. A ideia é criar texturas que sejam mais melódicas do que rítmicas”

Um dos motivadores dessa transição na forma de escrita, diz Rodrigo, foi uma compreensão errada de “Katsumi”, música do álbum Conversas com Toshiro (2015). Os versos “Katsumi não tem pelos pubianos/ Já tem incompletos dezoito anos” foram criticados nas redes sociais acusados de fazer uma “ode à pedofilia”, quando na verdade eram uma metáfora do inconsciente que estava alicerçado nos mangás e mitologias japonesas. “Como a galera atacou, eu comecei a me sentir meio tolhido quando voltei a compor. Então dessa vez eu comecei a compor de outro jeito, mais filosófico, mais interno, mexendo com meus próprios sentimentos. Tem que trabalhar com essa censura também, né? Acho que eu levei as músicas pra um lado mais subjetivo. Tirei um pouco os personagens, pra não acharem o personagem sou eu”, explica.

Além dessa transformação nas letras, Pagode Novo também é marcado por uma nova sonoridade na carreira do músico, que se aprofunda numa pesquisa de timbres e texturas eletrônicas. O álbum foi sendo criado durante a pandemia no aplicativo Garage Band, no iPhone de Rodrigo. “Eu fiquei com vontade de gravar umas coisas, experimentar. Eu comecei gravando no celular mesmo. Não tinha nem uma placa de som. Eu fiquei fuçando, brincando com essas coisas, fazendo algumas músicas instrumentais”, conta ele. Essas músicas foram virando singles sem muita pretensão. “Meu Samba Quer Se Dissolver”, por exemplo, já havia sido lançada em 2020.

“Do ponto de vista mais filosófico, acho que samba é um gênero. E o pagode é um movimento, sabe? O Pagode é Tropicália, o Pagode é Bossa Nova, o Pagode é Cinema Novo. Porque o Pagode começa a transformar trazendo elementos externos de uma maneira tropicalista”

A chave mudou quando o músico percebeu que havia ali uma “ambiência sonora diferente” que sinalizava a unidade para um novo álbum. Uma marca desse som é o uso de samples, mas em uma lógica diferente dos samples de rap, por exemplo. “No rap você usa o sample para criar uma canção em cima, né? No meu caso eu já chego com uma canção, com harmonia, com violão. Então o sample vai ter de encaixar na base de outro jeito. No meu caso, os samples estão fazendo alguns contrapontos, fazendo a vez de violinos ou pianos… De coisas que teriam um papel mais orquestral. A ideia é criar texturas que sejam mais melódicas do que rítmicas, como o hip hop faz”. Rodrigo também usava o Garage Band para transformar o som dos instrumentos com efeitos filtros e sampleá-los. “Eu gravava as percussões, por exemplo, e botava som de amplificador. É como se eu tivesse ligado o agogô no amplificador de guitarra, sabe? Então é outro som”.

Todos esses experimentos fazem parte do ímpeto exploratório do pagode, uma música experimental que reformulou o Brasil. “Do ponto de vista mais filosófico, eu acho que samba é um gênero. E o pagode é um movimento, sabe? O Pagode é Tropicália, o Pagode é Bossa Nova, o Pagode é Cinema Novo. Porque o Pagode começa a transformar trazendo elementos externos de uma maneira tropicalista”, defende. “O tantã é um instrumento do bolero que o Sereno (do Fundo de Quintal) trouxe. Não chamava tantã. Ele trouxe pro samba, deu o nome e inventou uma levada. O repique de mão o Ubirany pegou lá o tom-tom da batera, depois o repinique, tirou uma pele e inventou um instrumento e uma levada. O banjo é um instrumento norte-americano, o pessoal aqui trocou o braço. Você vai ouvir os cantores de pagode de hoje e eles são cantores de R&B, soul music, né? E eu acho lindo em muitos casos, o Ferrugem, o Péricles… Então tudo isso é pra mim um movimento, um manifesto estético, Junto com todas essas inovações que trazem, apropriando-se do samba, da Bossa Nova, do R&B e da música pop. Então é o tropicalismo acontecendo, inventando instrumentos, trazendo sons gringos”. Assim é também o pagode novo de Rodrigo Campos: entre a história, continuidades e rupturas.

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