Aguidavi do Jêje: educação, tradição e invenção

Há 20 anos na ativa, a orquestra percussiva de Salvador coloca os atabaques do terreiro em contato com múltiplas possibilidades em seu primeiro álbum

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Fotos: Diego Bresani

Considerado o maior levante de escravizados da história do Brasil, a Revolta dos Malês enfrentou o Império na luta pela liberdade religiosa e pelo fim da escravidão em 1835. Um local essencial para a revolta foi o Terreiro do Bogum, onde os revoltosos esconderam munições e dinheiro destinados à sua rebelião.

Quase dois séculos depois, o Bogum, no bairro do Engelho Velho da Federação, em Salvador, permanece sendo um polo de resistência e invenção da cultura afro-brasileira, onde os saberes ancestrais pulsam na força dos cruzamentos entre música e religiosidade. É neste território que nasce o Aguidavi do Jêje, uma orquestra percussiva fundamentada na educação através dos atabaques do terreiro e que acaba de lançar seu primeiro álbum.

O Aguidavi do Jêje foi criado em 2004 pelo músico e compositor Luizinho do Jêje. Nascido e criado no Bogum, desde cedo ele esteve imerso na cultura do candomblé de tradição jêje mahi — que possui diferenças dos demais candomblés da Bahia, pois, como no Benin, cultua os voduns em vez dos orixás. No terreiro, Luizinho foi se desenvolvendo com os ogãs, que nas religiões de matriz africana são os responsáveis pelo canto e pelos toques. “Meu primeiro contato com os atabaques da minha religião, a nação jêje do Bogum, foi aos sete anos”, conta ele.

Iniciado na música pelos ogãs, Luizinho entendia a importância de dar continuidade à transmissão daquela sabedoria musical ancestral. Estimulado pela grande concentração de talentos na sua área, ele começou a dar aula para alguns sobrinhos da comunidade. “Os meninos tinham uns sete, oito anos. Aos poucos eles foram trazendo os amigos deles para tocar também. E eles traziam outros amigos… Quando eu olhei, já tinham uns 10 ou 16 meninos aprendendo a tocar comigo e eles foram crescendo dentro do terreiro. Ali a gente viu que o negócio tava ficando sério”, diverte-se Luizinho.

Aquele era o início da Escola Aguidavi do Jêje. E a coisa estava ficando séria mesmo. A Escola virou um verdadeiro núcleo formativo para uma nova geração de músicos, como Kainã do Jêje (que fez parte da banda de Caetano Veloso na tour de Meu Coco), Tiago Nunes (que toca com Bell Marques), Icaro Sá (no Baiana System) e Lucas Maciel (com Baco Exu do Blues) além do próprio Luizinho, que já tocou com Olodum, Margareth Menezes, Gilberto Gil e Maria Bethânia.

“Esse contato veio através do Letieres Leite, que fazia a direção musical do show Claros Breus, de Bethânia. Foi uma experiência maravilhosa. É o sonho de todo músico, né? E ela é do axé, eu também sou do candomblé”, diz Luizinho. Em 2019, o Aguidavi fez uma série de shows no Rio de Janeiro, sendo estas as suas primeiras apresentações fora da Bahia. De cara contaram com a participação de Gilberto Gil em uma noite memorável em Niterói.

“Costumo dizer que os atabaques do Aguidavi não são uma coisa do ritual da nação jêje. Eles representam todos os voduns, os orixás e os inquices. Nossos tambores são uma energia que carrega todas essas entidades. A gente passeia pelos ritmos do candomblé ketu, jêje e angola”

– Luizinho do Jêje

Espiral rítmica hipnotizante

Desde sua fundação, o Aguidavi do Jêje divide-se (ou melhor, complementa-se) em duas frentes. A primeira é a Escola, que é o trabalho educativo voltado especialmente para as crianças e a juventude em torno do terreiro. O outro é o grupo musical, que desde o início vinha trabalhando em composições próprias. “A gente passou a gravar as levadas, criar os ritmos. Eu escutava os ritmos que a gente gravava e comecei a criar as levadas de violão em cima. Os meninos foram se interessando e esse projeto foi tomando uma forma interessante”, contextualiza Luizinho.

Durante a pandemia, o Aguidavi do Jêje foi contemplado com o edital Natura Musical para um projeto de três meses da Escola Aguidavi; em fevereiro, eles iniciaram mais uma série de atividades, desta vez online. Em paralelo, o grupo também trabalhou em seu álbum de estreia, lançado pelo selo Rocinante em formato digital e vinil.

“Eu ficava o dia todo ouvindo essas levadas que a gente gravava no terreiro. Botava meu fone e ficava ouvindo, imaginava uma levada de violão dentro daquilo. A ideia do processo foi fazer algo diferente mesmo, muito pessoal, e ver como as levadas de violão se encaixavam com cada ritmo para ter essa ideia hipnótica”

– Luizinho do Jêje

O álbum Aguidavi do Jêje combina os atabaques, agogôs, caxixis, berimbaus, pandeiros e outros instrumentos percussivos com o violão e a viola de cabaça de Luizinho, que bebe das influências do samba duro e da chula baiana em seus movimentos cíclicos, dando vazão a uma espiral rítmica hipnotizante, como em “Violão de Cabaça”, faixa que fala sobre a capoeira e que conta com a participação de Gilberto Gil, sussurrando entre vigorosos solos de surdo.

O violão é um elemento importante da assinatura sonora do grupo. “A ideia era exatamente fazer essa coisa hipnótica”, atesta Luizinho, que aponta também para a abordagem rítmica do instrumento de cordas. “Eu ficava o dia todo ouvindo essas levadas que a gente gravava no terreiro. Botava meu fone e ficava ouvindo, imaginava uma levada de violão dentro daquilo. A ideia do processo foi fazer algo diferente mesmo, muito pessoal, e ver como as levadas de violão se encaixavam com cada ritmo pra ter essa ideia hipnótica”.

Partindo das tradições para inseminar novas experimentações, a musicalidade do grupo emana das experiências e da sabedoria ancestral do Terreiro do Bogum. Em “Na Palha do Dendê”, reverenciam a planta que é parte fundamental das obrigações religiosas de matriz africana, sendo ingrediente fundamental do acarajé e vatapá, por exemplo. “Dizem que na palha do dendê/ Tá todo o movimento/ Sai movimento”, cantam eles, apontando para um universo inteiro de entidades que estão em volta do dendezeiro.

No entanto, Luizinho ressalta que as músicas do Aguidavi não são cantadas nos ritos do candomblé e também não estão limitadas às tradições de origem jêje do Terreiro do Bogum. Ao contrário, a proposta é abordar esse complexo cultural afrodiaspórico em sua diversidade, celebrando entidades de todas as nações. “Costumo dizer que os atabaques do Aguidavi não são uma coisa do ritual da nação jêje. Eles representam todos os voduns, os orixás e os inquices. Nossos tambores são uma energia que carrega todas essas entidades. A gente passeia pelos ritmos do candomblé ketu, jêje e angola”, enfatiza.

A faixa “Salve os caboclos” ainda vai além e saúda os espíritos indígenas do chamado Candomblé de Caboclo. Já “Couro no Tempero” — uma odisseia percussiva, que vai transformando as suas estruturas rítmicas ao longo de seus oito minutos — faz uma evocação da alquimia dos instrumentos do candomblé, desde a madeira do pé de araçá usada para fazer a baqueta dos tambores, passando pelo fogo que dilata o couro dos atabaques para afiná-los, até o pé que pisa as folhas e conduz ao barravento, o estado de transe que precede a posse de um filho de santo pelo orixá.

Reconhecendo as diferenças e complexidades da cosmologia das religiões afro, a música do Aguidavi do Jêje abre uma roda em que todas as entidades são celebradas em uma festa que expressa a potência desse universo musical afro-baiano por inteiro. O Aguidavi dá corpo às possibilidades da diáspora fincadas no chão da Bahia, moduladas a partir da inventividade das novas gerações do terreiro.

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