ÀIYÉ entre tambores e sintetizadores

“Cada ritmo é um sigilo sonoro”; a compositora, cantora e baterista Larissa Conforto coloca sua pesquisa percussiva em um passeio por passado e futuro em ‘TRANSES’, lançado pela Balaclava Records

Loading

Fotos: Hannah Carvalho

No momento em que imergia seus pés nas águas cristalinas do mar de Salvador (BA), durante a festa de Iemanjá no ano passado, Larissa Conforto entendeu que deveria seguir novos caminhos no próximo projeto musical. Assumindo a identidade de ÀIYÉ desde 2018, quando se apresentou em todas as segundas-feiras do mês de novembro, no Centro da Terra, em São Paulo, Conforto divulgou no último dia 20 de abril o álbum TRANSES (2023), pelo selo paulistano Balaclava Records. Sucessor do EP de estreia Gratitrevas (2020), o registro, coproduzido e gravado em parceria primorosa com Diego Poloni, tem 13 faixas inéditas e se ilumina em uma integração entre sintetizadores futuristas e composições percussivas que saúdam os orixás e a vida espiritual de ÀIYÉ

O processo de gravação, realizado na casa da artista na Barra Funda, durou 11 meses e foi desenvolvido apenas a partir de uma placa de áudio de dois canais, sem pré-analógicos. “Gravei as vozes com calma. Como não gravo a voz em pé, gravei sentada no meu banco de bateria, que é um lugar de conforto, mas ficou nesse lugar de guerrilha. Eu tenho placas acústicas para abafar o som, que eram do estúdio, que se desfez, dos meninos do Dead Fish. Mas muita coisa eu gravei no meu quarto mesmo. Se você for ver, a estrutura é muito simples: uma placa de dois canais que não tem pré-analógicos e dois microfones. Uma forma muito simples e caseira”. Entraves financeiros, sempre presentes na hora de soltar um projeto do mundo alternativo no mercado, foram superados para o lançamento de seus dois discos – sem patrocínios e sem editais. Mas ÀIYÉ sente que, daqui para frente, possa ser o momento de engatar formas de coletivização. “Já falei em outros lugares e outras vezes: quero fazer um disco com um projeto patrocinado, porém não vou deixar de fazer por causa disso. O primeiro disco foi feito desta forma também. Mas pensando no hoje, eu devo lançar uma campanha de ‘Apoia-se’, porque é muito difícil para a gente se autofinanciar”, reflete.

“A minha pesquisa parte desta vontade de trazer as histórias que esses tambores contam, porque, para mim, cada ritmo é um sigilo sonoro. O que eu queria fazer era pegar o ritmo como ele era, como ele começou e levar para um futuro”

Agrupando referências distantes que vão de Clara Nunes, Djavan e Alcione a Arca, Bjork e Britney Spears, o repertório é conciso, guiando ouvinte por uma relação espiritual entre passado, presente e futuro. Para chegar ao resultado final, a artista teve que entender sua maneira de produzir canções que fossem ligadas à espiritualidade da Umbanda, sua atual religião, sendo uma pessoa branca. Acatando o compromisso ao qual foi incumbida por seus orixás, Conforto buscou a conexão com o divino nos elementos mais singelos do seu cotidiano e caminhou pelo projeto enquanto curtia seu desenvolvimento.

“A proposta do disco nunca é aonde você chega. O que é mais bonito, para mim, é me deixar levar nesse processo, e eu acho que tem a ver com isso, de como eu encontrei o meu jeito de falar de santo, sem ferir ninguém, sem que eu ocupe o espaço de outras pessoas. Eu, sendo uma pessoa branca. E sem me agredir também. A minha pesquisa parte desta vontade de trazer ritmos ancestrais, as histórias que esses tambores contam, porque, para mim, cada ritmo é um sigilo sonoro. O que eu queria fazer era pegar o ritmo como ele era, como ele começou e levar para um futuro”, define.

“Não sei bombar no algoritmo, eu sei fazer meu show e me conectar com as pessoas. Estou doida para mostrar o disco e viajar à beça. Eu preciso estar na estrada, preciso estar olhando as pessoas”

Além das motivações espirituais, o segundo projeto de ÀIYÉ também vem de seu gosto por fazer shows, o que não foi possível em Gratitrevas (2020), lançado no mês em que foi decretado o lockdown em São Paulo. “Eu não consegui trabalhar com o meu primeiro disco, por exemplo, fazendo shows. Se eu quisesse continuar com a carreira solo, deveria lançar algo novo. Meu retorno [aos palcos] está sendo muito bom, o que me alimenta é estar na estrada. Tem músicos que podem ficar satisfeitos compondo, mas eu não. Eu preciso estar na estrada, preciso estar olhando as pessoas e, no fundo, é isso que eu sei fazer”. Ela, vale dizer, também é baterista das bandas de Paulinho Moska e Duda Brack.

As colaborações presentes no álbum não ficaram apenas no campo musical, como a da produtora Alejandra Luciani na faixa “Flui”, e da artista portuguesa Sús em “Oração”, e se manifestam pela capa do disco, com colagens e um ar sincrético que preenche a estética do disco.

Diversa em muitos sentidos, a capa exibe uma pintura original do PAES, foto editorial por Caike Molina, ilustrações digitais por Vallada, fotos e prints por Conforto e design final por Rafa Rocha.

“A capa ficou pronta um dia antes do prazo para enviar o disco. Foi feita por muitas mãos. Quando cheguei para o Rocha, eu já tinha tentado três ou quatro capas, porém ele me salvou e passou uma madrugada, entendendo e conhecendo cada composição. A concepção eu não sei se é minha, porque é algo que eu vou perseguindo e que vem para mim também, mas, sim, por isso eu botei no crédito que a direção artística é minha”.

No final de maio, ÁIYÉ segue com a turnê do disco por países da América Latina, com shows no Uruguai e Chile, após passar pela Argentina na última sexta-feira (19). “É um desafio falar em outra língua, ainda estou afinando como vai ser o show, porque tem muita instrumentação e eu tenho que ver o que tenho que tirar e o que tenho que manter. Às vezes você também quer fazer tudo e a performance fica travada, mas por enquanto eu estou curtindo muito. Eu não sei bombar no algoritmo, eu sei fazer meu show e me conectar com as pessoas. Estou doida para mostrar o disco e viajar à beça”.

Loading

ARTISTA: ÀIYÉ