Barra por Barra: bem-vindo a Detroit

A bizarra, hilária e interessante importação do som da Motor City para o Brasil

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Fotos: Mariana Poppovic

 

Barra por Barra é o espaço no qual o João aparece por aqui às sextas-feiras para falar de hip hop e de tantas outras coisas que vêm junto com a (enganosamente simples e definitivamente sedutora) ideia de “falar de hip hop”. Ritmo, poesia e opinião – com o João. 

 

 

Eu tô bem feliz que os rappers brasileiros descobriram (o) Detroit. Ainda que a cidade mais famosa (e mais populosa) do estado de Michigan sempre tenha exportado grandes e plurais talentos no hip hop — de Eminem a J. Dilla, passando por Danny Brown e Big Sean, foi somente no final da década passada que o som do underground da cidade se estabeleceu como subgênero do trap e conseguiu ultrapassar a sua bolha regional do centro-oeste americano.

Grupos como Doughboyz Cashout e Team Eastside serviram como embrião da sonoridade de Detroit no início dos anos 2010. Mas foi em meados de 2018 que a estética da cidade conquistou o restante dos Estados Unidos, com “First Day Out” de Tee Grizzley, e “Bloxk Party”, de Sada Baby e Drego, com 239 e 99 milhões de visualizações no YouTube, respectivamente. A essa altura você deve estar se perguntando: “ok, mas do que se trata o som de Detroit?”.

O som de Detroit começa com a produção: é fundamental ter um balanço nos timbres da bateria, algo semelhante a sensação do “beat bolha” no funk brasileiro (fica a dica, produtores de Detroit no Brasil!), um baixo bem presente na mixagem e, quase sempre, um piano que guia os demais elementos. Apesar da sonoridade peculiar e interessante, o Detroit triunfa mesmo é na escrita: suas músicas não têm estrutura e refrãos complexos, então fazer um verso minimamente cativante é essencial. Salteadas com sarcasmo e flows propositalmente atrasados em relação à batida, são composições fundadas em punchlines obcecadas por apelidos para armas, usar drogas importadas de países que não são conhecidos por terem boas drogas e transar com meninas de bairro nobre, muitas vezes filhas de policiais. Essa receita bizarra não somente permite como sugere que rappers se levem menos a sério — o que é muito positivo para o que se convencionou chamar de “rap nacional”, um gênero (?) no qual não raro impera a lei 171: é proibido ser feliz.

Sendo um subgênero do trap, o Detroit teve sua linguagem facilmente assimilada aqui no Brasil, com sua explosão em 2021. Nesse pouco tempo, já houve inúmeras tretas, sempre pelo título de pioneiro em exportação, algo que, sinceramente, não entendo o brilho e o mérito. Até porque, não importa quem fez primeiro, importa quem fez melhor e quem ousou empurrar os limites da música com originalidade. O Detroit sofre do mesmo problema do trap: ele parece fácil de fazer e, por isso, muita molecada se aventura sem reunir as habilidades que fazem um bom MC. No seu pior, o Detroit brasileiro gera músicas péssimas, de rappers que rimam fora do beat não por que querem, mas porque são ruins; mas, no seu melhor, já foi responsável por alguns dos projetos mais interessantes no rap nacional recente, com uma molecada que precisa urgentemente oferecer um workshop de punchlines para alguns rappers de proporção nacional.

Aqui vão algumas músicas e projetos interessantes do gênero importado para o Brasil e que tem tudo para se expandir em 2023:

PutodiParis – PutodiParis EP

Principal nome do Detroit no Brasil e cabeça do selo Carga Nova Entretenimento, PutodiParis é pivô na treta sobre o pioneirismo da importação. E ele tem suas razões. Em 2021, ele lançou um EP autointitulado que foi um dos melhores projetos de rap no Brasil naquele ano, ainda que tenha passado batido nas premiações. Na minha opinião, ele é o melhor artista a assimilar o subgênero, seja em sonoridade, seja em lírica. Um dos trunfos do carioca é também ser beatmaker. Sob o heterônimo de Julio Sosa, PutodiParis sampleia de bossa nova (“PUTARIA”) a Notoroius B.I.G (“RAUL GIL”) e é dele a autoria de “Chico Buarque Interlúdio”, releitura proibidão de “Construção”, que começa com a inesquecível frase: “trafiquei daquela vez como se fosse a última”. Entre inúmeras rimas sobre comer patricinhas de bairros nobres do Rio de Janeiro e usar drogas importadas, a linha que me fisgou foi: “Baby glock tá aqui, tô na Operação Babá”.

Raffa Moreira – “Fentanyl”

Adivinha com quem é a treta do PutodiParis? Raffa Moreira, obviamente. Quando tudo acabar numa bomba atômica, o trapper de Guarulhos, que clama (também com suas razões) ser o criador do trap BR, vai estar lá. Para quem já fez no melody, plug, drill, já foi emo… o que é mais um subgênero? Tão estudioso do que se propõe a fazer quanto seu rival na treta, em “Fentanyl” Raffa prova mais uma vez porque é alguém para sempre estar de olho. No meio da molecada do Detroit, ele se adaptou de novo e entende a língua portuguesa como poucos rappers no Brasil, e rimando fonemas que usualmente não rimariam, cria um flow que se distingue de seus pares, sendo um dos MCs mais estéticos de sua geração.

Santorvi & Tsunami Santo – Estelionatape

Uma das coisas favoritas da galera do Detroit é dar nomes próprios às músicas. Das seis faixas de Estelionatape, mais da metade segue esse padrão: “KOBE”, “BOB ESPONJA”, “SYLVESTER STALLONE” e minha favorita, “CHICO BENTO”. O título não precisa necessariamente estar relacionado com o tema da faixa, uma linha basta: “Meu plug da roça que eu chamo de Chico Bento”. Geralmente trocando versos de oito linhas nas músicas no estilo bate-e-volta das batalhas de rima, a dupla tem uma vibe meio Kenan & Kel, e “ah, vamo nessa”, bordão de Kel, serve como ad-lib de muitas faixas.

Danike x AçúK – “Tino Freestyle”

Essa é uma das minhas favoritas! Juro. Danike começa o primeiro verso dele dizendo que transou com muitas meninas da época da Cone Crew e termina relatando que suas habilidades sexuais encantaram tanto uma senhora da terceira idade que ela quaaaaaaase passou um imóvel para o nome dele. Um pequeno hit no TikTok e, de quebra, uma diss para Tino Junior, apresentador do Balanço Geral no Rio de Janeiro. “Fumando Tino Junior, me explanou na reportagem/ Vou processar a Record: uso indevido da minha imagem”, enquanto AçúK tem linhas memoráveis como “Meu pente é goiabada e minha glock chama de queijo/ Romeu e Julieta adiantaram seu enterro”. Singles como “ADELE” e “ILLUMINATI” me deixaram bem ansioso para um projeto do Danike.

Akao.47 – MIXTAPE TIJUANA VOL.1

Akao.47 é mais um que já tretou com o PutodiParis, mas diferente do Raffa Moreira, ambos os artistas não trocaram diss, apenas acusações e indiretas no Twitter e Instagram. Goiano e auto apelidado “Chicharito” (ex-jogador mexicano) Akao.47 incorpora influências latinas e, com frequência, sampleia instrumentos de corda dos nossos irmãos de continente, além dos títulos em espanhol para suas músicas — como a divertida “Delícias Brasileñas”. Não tão bem-humorado quanto seus pares de subgênero, ele é um dos melhores a performar o flow off-tempo.

Brocasito – “Tentando sair do gueto” / Brocasito, Akao47 & Yung Nobre – “Gisele B”

Lado oposto das tretas, está Brocasito, que tem música com Akao.47 e também com PutodiParis. Mais conhecido pelo plug, o jovem rapper da Bahia também tem canções de Detroit e é um das surpresas mais autênticas e divertidas da nova geração. Apaixonado por Tony Montana, Brocasito usa sua voz baixa e vagarosa para descrever desilusões amorosas, o uso de drogas como anestésicos emocionais por perder seus manos e sua luta para “sair do gueto”. Entre suas linhas mais divertidas estão “Tеnho um relacionamento sério com a Sig/ Única vadia que eu converso é a Siri” e “Minha Sig Sauer tem contrato com o cemitério”.

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