Barra por Barra: é um terror acordar e não saber o que ouvir

Abandonei o Spotify e sou mais feliz

Loading

 

Barra por Barra é o espaço no qual o João aparece por aqui às sextas-feiras para falar de hip hop e de tantas outras coisas que vêm junto com a (enganosamente simples e definitivamente sedutora) ideia de “falar de hip hop”. Ritmo, poesia e opinião – com o João.

 

 

Em algum momento de 2022 acordei e não sabia que música eu queria escutar. Medo instantâneo. Como assim? Eu sempre soube! Coloquei a primeira playlist que apareceu no meu Spotify. A plataforma estava me dominando como Venom dominou Peter Parker. Eu não era mais um ouvinte ativo.

Neste artigo da Pitchfork o jornalista Jeremy D. Larson define três tipos de ouvinte: o passivo, o auxiliar (que aqui vamos chamar de “funcional”) e o intencional. O primeiro é aquela pessoa que geralmente responde “eu sou eclético, ouço de tudo” quando perguntado sobre o gosto musical. O que toca na rádio – no caso do Brasil, principalmente sertanejo universitário – em um churrasco, em uma loja de departamento — essa pessoa tá só ouvindo música sem pensar muito sobre.

Já pro ouvinte funcional, a música existe em razão de alguma atividade: música para malhar, para cozinhar, para transar, para tomar banho, etc.. Outro dia uma amiga me pediu recomendação de música para malhar. Nas últimas semanas, eu treinei ouvindo De La Soul, Scaring The Hoes (2023), um set de funk do VHOOR na NTS, PinkPanthress, Aphex Twin… Embora eu tenha sentido que o treino rendeu mais ouvindo funk, não necessariamente tenho uma coleção de músicas para malhar – as duas atividades nem sempre estão em função uma da outra.

Por último, o ouvinte intencional: se você está aqui, no Monkeybuzz, lendo esta humilde coluna, há uma grande chance de você se enquadrar nesta categoria. É aquela pessoa que ouve música pelo prazer de ouvir música em si. Curte uma sonzera. Passa horas e horas ouvindo álbuns, DJ sets, playlists, coletâneas, com o som como foco principal e/ou único. Claro, sempre fazendo scrobble e postando semaninha no Twitter. Esse ouvinte, em certo nível, controla e sabe seu comportamento musical antes da coleta invasiva de dados anual do Spotify.

Obs.: não existe necessariamente nada de “superior” em ser um ouvinte intencional. As categorias não são “nem melhor nem pior, apenas diferente”, como diria MC Marcinho.

Para os ouvintes funcionais e passivos, que são maioria, as plataformas de streaming – principalmente o Spotify, a mais popular – fizeram maravilhas. Elas de fato cumprem essa promessa mágica de tornar acessível um catálogo mundial de música em um conveniente aplicativo. Mas para mim, e para outros ouvintes ativos como Tyler, The Creator, por exemplo, o funcionamento algorítmico das plataformas não é exatamente o melhor.

“A maior parte do mundo só tem o que os serviços de streaming têm […] Alguém perguntou se eu uso Spotify ou Apple Music e eu disse ‘nenhum’. Eu mantenho tudo no meu computador e HDs (downloads de verdade), não é para todo mundo porque o streaming é conveniente, mas para aqueles com uma extensa biblioteca, esta é a decisão”.

Desde que comecei a me interessar ativamente por música, ouço como se eu fosse o DJ comandando uma pista de uma pessoa só, que também sou eu. Viciado em baixar sons no Ares e posteriormente no Soulseek, sempre organizei a pasta “Música” na ordem Gênero > Subgênero > Artista > Álbuns. Num geral, o que me guiava era a escolha de um gênero (ainda que esta categoria seja ampla em minha organização): tudo dependia do clima que eu acordasse no dia. Acordei tranquilo? Vamos ver os artistas de samba, ou de reggae. Tô puto? Abro a pasta de Memphis Rap e vamos de mixtapes gravadas com um microfone de papelão confeccionado.

Esse comportamento me fazia visitar muito mais as coisas que eu gosto de verdade, investigar o que eu tô passando a gostar mais ou menos baseado na repetição ou no esquecimento de determinado disco, por exemplo. Ou então, ouvir um artista e, pensando sobre como eu estava me sentindo, colocar outro disco para tocar que fizesse sentido com o anterior, ir passando de ritmo por ritmo, subindo ou abaixando as frequências dessa pista de dança de uma pessoa só.

Assim como Tyler, muita música que eu amo nunca vai estar em streaming. Demos, remixes, mixtapes… Neste último caso, e pensando na música rap, o buraco fica ainda mais embaixo, com artistas enfrentando batalhas cada vez mais rígidas (e caras) para liberação de samples, como foi a extensa batalha do De La Soul. Com funk então, nem se fala. Eu acho que nunca vou ver o catálogo completo do Sorrizo Ronaldo em uma plataforma de streaming. Talvez nem faça sentido.

Minha questão com streaming é, sim, o catálogo, mas não só. O motivo de eu não saber o que eu quero ouvir tem uma resposta óbvia: o algoritmo. O Spotify vende uma ferramenta de descobrimento de música que, na verdade, é apenas um simplificado e extremamente condicionado feedback, quase que escrito por Aldous Huxley. Você gosta de uma música, ele recomenda outra igual – tem cara de “para você”, mas é o que todo mundo tá ouvindo também, que nem no filme Her.

A rádio do Pharrell Williams no Spotify, por exemplo, não leva a nenhuma música do A Tribe Called Quest, mesmo o multi-produtor declarando inúmeras vezes ter Q-Tip como seu ídolo. Nem para músicas do Timbaland, ainda que Pharrell tenha dividido inúmeras premiações com seu conterrâneo de Virginia Beach. Será que o Spotify sabe que o Kanye West pirou na percussão do Psirico? Ou que o Madlib é fissurado em música brasileira e fez um disco só pesquisando nossa música? Ou que Hugh Masekela era amigo íntimo do pai de Earl Sweatshirt, aparecendo em diversos momentos na carreira do rapper? Nas plataformas de streaming, essas associações são raras e fugazes, quando não inexistentes.

Tal qual meu camarada Tyler, The Creator, sigo baixando música e fazendo a manutenção da minha biblioteca pessoal no computador. Ainda não solucionei completamente a questão do streaming – uso o Apple Music que me permite organizar a biblioteca por gênero, mas, sempre que possível, evito.

Para mim, como um jornalista musical, essas conexões únicas, por vezes mais ou menos óbvias, são uma das partes mais divertidas do ofício. Entender como outros ouvintes organizam e conectam as músicas que gostam e pesquisam, por vezes parece íntimo e especial, como adentrar o quarto de alguém. Outro dia minha namorada disse que passou a ouvir mais álbuns inteiros desde que me conheceu e que isso mudou totalmente a forma dela se relacionar com música. Eu me senti amado. Existe carinho nessa frase, assim como existe uma singela confiança quando alguém faz o pedido: “coloca uma música aí para gente”.

Criar um “algoritmo” próprio e verdadeiramente exclusivo dá mais trabalho do que abrir a playlist “Descobertas da Semana”, mas é muito mais recompensador; e pessoas — mais do que aplicativos — que nos apresentam músicas novas são importantes. É quem devemos manter por perto.

Loading