Canções e causos: a história de Najib Hankash

A trajetória de um parodista libanês que, da cidade de Zahle ao centro de São Paulo, criou uma obra singular misturando música, poesia e comédia

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Imigrar, para muitos, é a perda de algo irrecuperável, especialmente quando deixar sua terra é uma decisão motivada pela necessidade ao invés da escolha. As razões pelas quais alguém decide deixar sua família e migrar são muitas: guerra, fome, crise econômica e política, perseguição étnico-religiosa – a lista é longa. Cada imigrante que deixa algo para trás carrega consigo um pedaço de onde veio e, em última instância, um pedaço de si: seja na língua, num saco de terra, num objeto ou ainda num prato típico da terra natal, esse fragmento pode ser uma memória poderosa; fonte de poesia, pode-se dizer. Najib Hankash foi um dos milhares de jovens que migraram do que ainda nem era o Líbano para a época recente Primeira República Brasileira. Ele cruza o Oceano Atlântico para entrelaçar sua vida e história com o Brasil em 1922, quando entra num navio e aporta em Santos, dirigindo-se logo em seguida a São Paulo, onde se tornou uma figura do entretenimento que voltaria ao seu país para lá ser uma personalidade nacional. O seu legado une tanto o Líbano do Mar Mediterrâneo, repleto de cedros e oliveiras, quanto o Líbano tropical da América do Sul: o Brasil.

Najib ibn Assaad ibn Shaheen ibn Butros Hankash ou somente Najib Hankash (نجيب حنكش) foi um ator, cantor, comediante, escritor e parodista nascido em 1904 na cidade de Zahle, no que ainda nem era o Líbano, mas, sim, o Mutasarrifato do Monte Líbano, uma subdivisão do Império Otomano. Na época em que ele decide imigrar ao Brasil, no entanto, seu país já era o Estado do Grande Líbano, um território colonial controlado pela França com uma população total que nem chegava a um milhão de habitantes. Isso já diz bastante sobre a instabilidade política ainda vigente nesse pequeno país do Oriente Médio. Por aqui, ele fez sucesso em eventos da comunidade sírio-libanesa de São Paulo, em espaços como o Clube Zahle e o Clube Homs, os chamados “clubes étnicos”, que depois cairiam em desuso com o tempo, mas que tiveram a honra de receber suas apresentações. Frequentemente brincando de maneira interativa com o público e ovacionado pelo carisma e a capacidade de guiar uma audiência ao riso, Hankash, com apenas 18 anos, já fazia história.

A imigração libanesa para o Brasil foi de suma importância enquanto possibilidade de construção de uma nova arte libanesa. São Paulo, naqueles anos 1920, foi palco de uma espécie de renascimento da cultura libanesa – já que a recentemente proclamada e moderada república nas terras brasileiras foi solo fértil, permitindo uma liberdade política e econômica que esses imigrantes não tinham na sua terra natal. Na época, o Líbano vivia um processo doloroso de subsequentes guerras, conflitos sociais, étnicos e religiosos, bem como crises econômicas. Aqui os “brimos” se organizaram: pronunciavam-se contra a colonização francesa, reivindicavam independência para o país e até criavam revistas e publicações escritas em árabe que circulavam por São Paulo e chegavam clandestinamente até o Líbano. Dessa forma, os imigrantes que chegaram por aqui – em sua maioria homens jovens e solteiros –, além do sucesso que obtiveram no comércio ao se estabelecerem pela 25 de Março desde meados de 1885, produziram muita literatura e poesia. O termo dado a esse tipo de literatura foi shir al-mahjar ou “poesia da imigração”. Esse movimento sofre um recesso após os anos 1950, quando o cenário político brasileiro começa a mudar drasticamente. No entanto, isso não muda o fato de que, em sua terra natal, muitos escritores foram inspirados pelo mahjar, o “lugar de imigração” que foi o Brasil e tantos outros territórios na América.

Hankash foi um dos expoentes desse tipo de poesia, já que viveu a experiência da imigração enquanto um artista: era uma pessoa muito conectada ao riso e sempre demonstrou grande preocupação com a graça e o piadesco, caminhos por onde expressava sua humanidade, bem como entregava sua origem libanesa, da qual se orgulhava. Ele performou não apenas cenas cômicas teatrais e canções paródicas, mas também registrou em verso, prosa e música a vida dos imigrantes sírio-libaneses na América Latina, em especial no Brasil, de forma bem-humorada e utilizando os costumes libaneses enquanto forma de construir situações cômicas. Apesar de não ter a voz mais impressionante, seu modo de contar histórias e transitar entre canção e humor era o que de fato cativava a audiência.

Ele compôs a melodia, se utilizando da letra do escritor Gibran Khalil Gibran, para a canção “Aatini Anaiya”, eternizada na voz da icônica Fairuz. Gibran representava um sopro de ar fresco sobre a literatura árabe, visto que sua imaginação e capacidade artística o fizeram ter uma das obras mais traduzidas da história: o livro O Profeta, que marca um movimento do autor contra os estilos mais tradicionais, mas que ainda assim preserva alguns temas e formas de expressão da literatura árabe clássica. Ele também escreveu um poema com o nome da canção entoada por aquela que leva a fama de “a alma do Líbano”, na qual os versos tratam de uma flauta ney, popular na música árabe e feita com cana-de-açúcar. Esse tipo de flauta é muito presente na tradição sufista do islam, sendo utilizada para tocar músicas que induzem os participantes a entrarem em estado de transe por meio do som. Os versos dizem algo como “Me dê a ney e cante, que o som dessa ney dura mais do que a eternidade. Seu gemido permanecerá após o fim dos tempos”. Hankash trabalhou na composição com ajuda do músico brasileiro e também compositor Gabriel Migliori. É interessante, entretanto, que parte da canção soe como um tango uruguaio chamado “La Cumparsita”. Ele a registrou no Brasil com a gravadora Continental, e quando chegou pela voz de Fairuz se tornou um hit nacional.

O sucesso conquistado no Brasil o levou inclusive a retornar ao seu país para fazer parte da construção de uma nova cena artística que ficou conhecida como A Era de Ouro do Líbano, momento importante da história da música no país. Foi em 1947 que Hankash voltou ao Líbano, onde viveu pelo resto de sua vida, ainda que realizando uma breve viagem ao Brasil anos depois. Em sua terra natal, ele virou uma celebridade da comédia libanesa, tornando-se apresentador de um programa de televisão chamado Hankachiat ou “No Hankash”. Nele, o cantor recebeu e entrevistou os mais nobres nomes da música libanesa: de Fairuz, Hoda Haddad, Majida Al-Roumi e Sabah aos irmãos Elias e Assi Rahbani, Halim El Roumi, Wadhi El Safi, além de outras figuras musicais importantes do Mundo Árabe como Farid Al-Atrash e Sayed Khalifa.

Outros grandes sucessos se popularizaram entre os libaneses radicados por aqui, e foram levados por Hankash do Brasil ao Líbano, onde foram regravados com o devido investimento, já que sua voz foi acompanhada de uma grande orquestra com sonoridade moderna, ao estilo Rahbani. Há inclusive um disco lançado em 1997 disponível em plataformas de streaming que leva o mesmo nome do seu programa de televisão: Hankachiat contém gravações ao vivo e foi produzido pela gravadora libanesa Voix de L’Orient. O disco conta com algumas canções de Hankash que marcaram gerações. Nelas, podemos ouvir trechos de canções seguidos de piadas – as chamadas kossat ou causos – com aplausos e gostosas gargalhadas ao fundo de cada faixa. Dentre as 26 faixas do disco, as faixas de fato contendo canções são apenas oito : “Al Moukadima”, Ya Marhaba Bel Kamar”, “Makdarch Anam Makdarch”, “Dar El Wafaa”, “Wayli Min El Gharam”, “Hakini Al Telefone” e “Hal Tara Naoud Ya Lebnan”. Também inclui a versão de Hankash de “Aatini Anaiya”, mencionada anteriormente.

Najib Hankash faleceu em 1977, e ao que as informações difusas indicam, sua morte esteve relacionada a uma perda de memória (provavelmente associada a alguma doença degenerativa, mas da qual não se tem confirmação) e uma profunda depressão, provavelmente porque o Líbano vivia a Guerra Civil que começou cinco anos antes e durou até 1990. A biografia de Hankash é bastante escassa e merece ser aprofundada. A importância da história desse fascinante personagem está no fato de como a imigração é um processo muito doloroso – já que milhares de pessoas deixam suas famílias para adentrar um futuro incerto em um lugar desconhecido – e, ao mesmo tempo, embrionário de artes singulares. No caso de Najib, os caminhos e descaminhos fizeram nascer um piadista, um músico e, sobretudo, um artista de mão cheia.

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ARTISTA: Najib Hankash

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