Cinco discos fundamentais da Habibi Funk Records

Uma viagem pelo catálogo do selo que remasteriza gravações Lo-Fi de artistas do Mundo Árabe – com abrangência sonora que vai da disco ao reggae, do funk ao jazz

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Fotos: Reprodução

A Habibi Funk Records é uma gravadora criada em Berlim que lança ou relança gravações Lo-Fi remasterizadas de artistas do Mundo Árabe, que por vezes passaram despercebidos nos momentos históricos e lugares em que foram produzidas. Em geral, são faixas dos anos 1960 e 1970, quando o funk estadunidense invadiu as rádios do Oeste Asiático e Norte da África, influenciando profundamente as criações locais. Hoje a gravadora trabalha com vários gêneros além do funk, que vão da disco ao reggae, passando pelo jazz e o folk, pelas clássicas baladas românticas árabes e mais recentemente também lançando artistas contemporâneos.

O projeto é encabeçado pelo DJ e produtor alemão Jannis Stürtz, que desde 2002 viaja para países como Líbano, Egito, Marrocos, dentre outros onde encontrou lojas de discos e antiguidades nas quais se dispôs a investigar histórias da música árabe. Além de encontrar os discos, a gravadora teve a responsabilidade de contatar os artistas, familiares ou pessoas que os conhecessem, com o objetivo de obterem autorização para relançar seus trabalhos. Isso por vezes levou a mais de três anos de busca, múltiplas viagens e milhares de telefonemas.

Além do som, a arte das capas dos discos é riquíssima, e envolve um trabalho estético profundo com a caligrafia árabe que definitivamente tomou como inspiração projetos de designers locais. O uso cuidadoso de fotografias de arquivo também é muito interessante, e resulta de uma pesquisa séria; de um mergulho na vida e na história de cada um dos artistas. Apesar de europeia, a Habibi Funk é bastante responsável e se preocupa com remunerar os artistas e/ou suas famílias sem reproduzir os mesmos padrões econômicos de exploração historicamente construídos pelo colonialismo, além de não reforçar estereótipos orientalistas.

Ao ouvir esses discos, é importante compreender que esses artistas não estavam simplesmente copiando gêneros estadunidenses, mas sim criando algo autêntico e potente, por meio de muitas outras referências também. No mais, o prazer de ouvir essas remasterizações feitas a partir de fitas cassetes e vinis escondidos nas caixas empoeiradas de um souk – o tradicional mercado árabe – é incomparável, e nos transporta para mundos e momentos já distantes, numa nostalgia daquilo que nunca pudemos viver. Ao compor essa lista, tentamos não apenas trazer os discos e artistas que consideramos indispensáveis, mas também abarcar o maior número de países possível, numa tentativa de mostrar a abrangência, multiplicidade e pulsão criativa daquilo que genericamente chamamos “música árabe”. Agora: yalla! ou “vamos!”.

 

Rogér Fakhr – Fine Anyway (gravado no final da década de 1970, lançado em 2021)

O cantor, compositor e guitarrista Roger Fakhr é uma lenda até então não reconhecida da música libanesa. Além de ter colaborado com ícones nacionais como Fairouz, Issam Hajali e Ziad Rahbani, ele traduziu em suas canções a sonoridade de uma geração. As 18 faixas de Fine Aniway foram gravadas ao longo de oito horas seguidas de estúdio na década de 1970, em gravadores de fita cassete. Ouvimos em cada canção influências de folk estadunidense, acid jazz, soul, funk, rock psicodélico e da própria música tradicional árabe –  referências que Fakhr incorporou ao seu repertório ao longo da vida.

Por serem quase todas cantadas em inglês, o formato e as melodias das canções lembram Bob Dylan e Nick Drake. Mas quando ouvimos o derbake – instrumento de percussão árabe – em “Gone Away Again” ou o alaúde em “Sitting in the Sun”, a autenticidade de Fakhr fica evidente. Algumas canções têm um tom particularmente melancólico, como nos lamentos acompanhados de um dedilhado de violão em “Sad Sad Songs” ou em “Fine Away”, que dá o título ao álbum. “Keep Going”, por exemplo, fala sobre enfrentar realidades difíceis de cabeça erguida, e ao final contém sons de tiros e sirenes, talvez captados durante a Guerra Civil Libanesa de 1975.

Ahmed Ben Ali – Subhana (gravado em 2008, lançado em 2021)

Você nunca pensou que ouviria reggae da Líbia, mas aqui vai: o produtor musical Ahmed Ben Ali, nascido em 1971 em Benghazi, gravou em casa as faixas que compõem Subhana. Ele viveu no Canadá e na Inglaterra, onde tinha a música como hobby. No entanto, em 2003 lançou seu primeiro disco, e a partir daí soltou mais de 40 faixas, além de outros dois álbuns.

A história é a de que, em 2008, um de seus amigos criou uma conta no YouTube, na qual postou duas músicas, passando a conta para Ahmed que, depois de postar mais duas, perdeu a senha de acesso. Essa conta ficou intocada por quase 11 anos, até que duas canções começaram a ganhar visibilidade: “Subhana”, um reggae muito dançante e alto astral com vocais impressionantes e instrumentais envolventes; e “Dameek Majeb”, uma mistura de reggaeton com influências de electro, sintetizadores e sons de derbake e rhaita – flauta comum no norte da África. Nesse EP é possível também escutar as versões instrumentais dessas duas canções.

Maha – Orkos (gravado em 1979, lançado em 2022)

Vocalista da Salah Ragab Jazz Band, Maha lançou esse disco solo de sete faixas pela Sout El-Hob Records em fita cassete. Apesar de não ter feito sucesso na época, o disco tem uma estonteante abrangência gêneros. Ela passa por baladas românticas regadas a sintetizadores eletrônicos em direção ao jazz, funk e até salsa, além de fazer jus à tradição vocal egípcia das hipnotizantes vozes de Umm Kulthum, Dalida e Leila Mourad. Os artistas da época criaram uma nova música egípcia, dado que as canções de mais de meia hora de duração da música clássica nacional perderam apelo entre gerações mais jovens. No entanto, Maha confessou ter abandonado a carreira nos anos 1980, e relatou as dificuldades de ser uma mulher na indústria musical.

O relançamento dessa pérola perdida no túnel do tempo tem uma evidente inspiração na música latina em “Orkos”, com um ritmo bastante frenético e dançante, lembrando as salsas do porto-riquenho Héctor Levoe ou do dominicano Johnny Pacheco. Há também baladas melancólicas como “Kabl Ma Nessalem We Nemshy”, e mesmo sem compreendermos as letras sentimos a dor em cada verso. Já nos riffs de guitarra e nas baterias groovadas de “Law Laffeina El Ard”, a fusão com violinos e órgão torna a canção épica.

Kamal Keila – Muslims and Christians (gravado em 1992, lançado em 2018)

O sudanês Kamal Keila nasceu em Cartum por volta dos anos 1940 e começou sua carreira como músico nos anos 1960. Muslims and Christians é o resultado da remasterização de duas fitas cassete mofadas que Keila encontrou em sua casa e que surpreendentemente ainda tocavam muito bem. Elas foram gravadas em 1992 durante um programa de rádio. No Sudão dessa época, por questões políticas, as estações de rádio não podiam tocar gravações produzidas pelas gravadoras. Assim, tinham seus próprios estúdios e convidavam músicos para gravar em seus programas. Em geral os instrumentistas não recebiam cópias das gravações por medo de que eles próprios lançassem a música, mas por sorte o caso de Keila foi diferente.

É por isso que hoje apreciamos suas canções com influências que vão do jazz ao blues, do reggae ao funk e o soul. Dito isso, Kamal Keila no Sudão é considerado um músico de jazz, ainda que seu estilo não corresponda a qualquer concepção mais purista do gênero. Nas letras das primeiras cinco canções em inglês, Keila aborda assuntos extremamente políticos e de tom revolucionário, como a divisão das comunidades religiosas no país em “Muslims and Christians”, além de temas como a fome e a necessidade da reforma agrária em “Agricultural Revolution”, o pan-africanismo, o amor à África e o desejo de unificação e fraternidade entre os africanos.

Fadoul – Al Zman Saib (gravado em 1970, lançado em 2015)

Se alguém merece o título de “James Brown do Marrocos” esse alguém não poderia ser ninguém além de Fadoul: primeiro, porque ao ouvirmos Al Zman Saib notamos que o vocalista tinha uma presença de palco elétrica e uma atitude um tanto punk, repleta de gritos e de uma energia sensualmente rebelde. Segundo, porque a música que abre o disco relançado pela Habibi Funk é um cover cantado em árabe da música “Papa’s Got a Brand New Bag”, um clássico do rei do soul, intitulado “Sid Redad”. Se você conhece a versão original estadunidense, com certeza vai cantar enquanto ouve.

A voz um pouco rouca, numa língua bastante gutural como é a língua árabe, pode soar estranha aos ouvidos num primeiro momento. Mas os solos de guitarra, o contrabaixo vibrante e as levadas de bateria são conquistadoras. Uma coisa é certa: o disco define o conceito de “funk árabe” e não existe nenhuma música que não vá te fazer bater o pézinho e começar a rebolar.

Por fim, vale aqui também uma menção honrosa ao último lançamento da gravadora, que agora começa a se aventurar pelos caminhos da música árabe contemporânea, com as três faixas que compõem o EP Tayyara Warak, do músico e compositor libanês Charif Megarbane. O lançamento é de dezembro de 2022 e tem duas músicas instrumentais bastante melódicas que lembram as composições de Marcel Khalife, além de “Commencer La-Bas”, cantada em francês.

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