Como se canta uma revolução: Sandinismo e música nicaraguense

Uma viagem pelas ruas de Manágua no Dia da Revolução Sandinista mostrou como os caminhos da arte no país expressam resistência anti-imperialista e celebração das raízes latino-americanas

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Fotos: Leo Gimenes/Aminta Zea

O dia 19 de julho de 2023 marcou o 44º ano da Revolução Popular Sandinista, e eu tive o enorme prazer e honra de acompanhar de perto, junto a grandes companheiros, companheiras e companheires, as celebrações relativas a essa data tão importante na cidade de Manágua, capital do país onde se concentraram milhares de apoiadores da FSLN (Frente Sandinista de la Liberación Nacional). O dia é importante para o povo nicaraguense, que em 1979 tomou a capital depois de muitos anos de guerrilha contra a Guarda Nacional, exército financiado pelo governo dos Estados Unidos que defendia os interesses do então ditador Anastasio Somoza Debayle. Ao longo das comemorações deste ano, foi possível perceber que há uma playlist fixada na boca do povo: um conjunto de canções que ecoam dos alto-falantes de carros e casas e são cantadas pelas ruas da cidade por jovens, adultos e idosos. Há uma irmandade em prol do socialismo e da soberania de um povo que há quase 50 anos tomou sua decisão de dizer ao imperialismo em alto e bom tom: “¡patria libre o morir!”. Aqui, faremos uma breve introdução ao sandinismo, à música popular nicaraguense, além de destacar alguns hits sandinistas que marcaram gerações, bem como outros fazem sucesso atualmente, organizados em uma playlist.

Bolívar, Zapata, Sandino: por uma soberania pinolera

Maior país da América Central, a Nicarágua está entre as fronteiras da Costa Rica, de Honduras e El Salvador, com uma população majoritariamente rural de pouco mais de seis milhões de habitantes. Pouco se fala a respeito dessa fascinante nação para além de críticas infundadas e raivosas da extrema-direita brasileira, então é necessário esclarecer algumas coisas sobre o país, o sandinismo e sua relação com a cultura musical “pinolera” – termo que se refere a pessoas ou coisas originárias da Nicarágua e tem relação com o pinol, bebida feita à base de pó de milho com cacau comumente diluído em água ou leite (e tido como bebida nacional).

O sandinismo é uma filosofia política revolucionária inspirada na figura de Augusto César Sandino, líder popular comunista e anti-imperialista que organizou revoltas contra o intervencionismo estadunidense no país entre os anos de 1927 e 1934. Nascido em 1895, ele foi contemporâneo de Emiliano Zapata, e inclusive esteve no México trabalhando como mecânico durante a explosão das rebeliões mexicanas em Tampico. Essa experiência com anarco-sindicalistas e comunistas mexicanos, assim como o contato com o pensamento de Simón Bolívar, José de San Martín e Benito Juárez moldaram os fundamentos do que vieram a ser as ideias revolucionárias de Sandino.

Voltando ao país em 1926, Sandino organiza trabalhadores de uma mina de ouro nas montanhas de Segovias. Sua capacidade de articulação e respeito crescente dentre a classe trabalhadora culminaram na formação do Ejército Defensor de la Soberania Nacional de Nicaragua. Isso atraiu atenção internacional – e, inclusive, apoio da União Soviética, por exemplo. No entanto, num golpe de covardia em 1934, ele foi brutalmente assassinado pela Guardia Nacional sob as ordens do sanguinário ditador nicaraguense Anastasio Somoza García em Manágua. A família Somoza dominava o país há décadas com violência, nepotismo e a manutenção das estruturas aristocráticas no país, sempre contando com apoio dos Estados Unidos. Após a morte de Sandino, Somoza García, que havia sido presidente alguns anos antes, retorna ao poder tirando o então presidente Juan Bautista Sacasa, repetindo a dinâmica política de alternância entre presidentes liberais e conservadores. Com amorte de Somoza García e seu filho mais velho Luis Somoza Debayle, quem assume o poder é o filho mais novo Anastasio Somoza Debayle, que governa entre 1967 e 1979.

Desde 1961, estudantes da Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua e da Universidade de León se empenhavam em estudos marxistas num retorno às ideias de Sandino. A partir disso, surge a Frente Sandinista de Libertação Nacional ou FSLN, fundada por Carlos Fonseca, Tomás Borge e outros grandes líderes revolucionários tidos por muitos como heróis nacionais da Nicarágua. O movimento ficou conhecido na história como o primeiro a unir, de maneira vitoriosa e pragmática, teoria marxista e teologia da libertação. Nessa época, também começam a se estruturar as guerrilhas nas montanhas do norte do país, numa cooperação entre estudantes e camponeses preparando militantes através de treinamento com armas e explosivos, mas também com educação política. Em meados da década de 1970 formam-se as guerrilhas e grupos militares organizados da Frente, se espalhando por todo o país, tanto no campo quanto nas cidades, levando a mobilizações nacionais para a remoção de Somoza Debayle da presidência. Em 1974 a FSLN se torna internacionalmente reconhecida e passa a receber apoio diplomático de Cuba e da União Soviética. Já em 1979, ocorre a ofensiva final do exército popular sandinista, que obriga o último dos Somoza a fugir do país amedrontado pela mobilização popular que ameaçava o imperialismo estadunidense.

Desde então, o país passou por várias eleições presidenciais, dentre elas algumas que elegeram inclusive opositores à FSLN com medidas bastante neoliberais – que levaram a inúmeros retrocessos sociais. Alternância que contraria a falsa afirmação de que o país é uma ditadura ou de que não existem eleições democráticas na Nicarágua. Essas mentiras não são fruto da ignorância, mas, sim, de uma decisão consciente e estratégica de difamação de um país que se recusa a abaixar a cabeça para os EUA. Acompanhado de uma imagem midiática artificialmente construída a fim de desestabilizar o governo, vieram também sanções políticas impostas ao país, na tentativa de minar sua soberania política e econômica. Novas sanções foram, inclusive, aprovadas no dia das celebrações deste ano. Essas tentativas, no entanto, vêm se mostrando insuficientes, visto que o presidente Daniel Ortega segue como líder extremamente popular e respeitado no país. Além disso, a criação e fomento da Associação de Trabalhadores do Campo (ATC), bem como a reforma agrária e a formação de cooperativas com enfoque agroecológico fortaleceram o país, que hoje produz cerca 90% de todo o alimento que consome, protegendo-se através de soberania alimentar.

Abril en Managua e histórias da música sandinista no século 20

A cultura musical nicaraguense é muito marcada pela mescla entre ritmos espanhóis e indígenas, além de influências afro-caribenhas, especialmente na costa atlântica do país. Canções folclóricas sobre causos, fábulas e narrativas históricas são bem populares nesta que é chamada de “a terra dos poetas”. Além disso, o uso da marimba – instrumento de origem africana que se assemelha ao xilofone, porém com lamelas em madeira – é marca registrada de muitas músicas populares na Nicarágua. Também existem influências de gêneros musicais de países próximos, como as rancheras e norteñas mexicanas, a salsa cubana e as bachatas dominicanas, bem como o merengue e a cumbia, ambos amplamente ouvidos na América Latina.

Antes desta que foi minha segunda viagem para a Nicarágua, eu já havia sido introduzido à coletânea Abril en Managua, uma apresentação ao vivo na Plaza de La Revolución lançada em 1983. O disco de dois volumes tem participações de grandes nomes da música latino-americana, como o uruguaio Daniel Viglietti, a argentina Mercedes Sosa, os brasileiros Chico Buarque e Fagner, o venezuelano Alí Primera, a mexicana Amparo Ochoa e o cubano Sílvio Rodriguez, além dos nicaraguenses Carlos Mejía Godoy, seu irmão Luis Mejía Godoy e o grupo Los de Palacagüina. Esse concerto histórico faz parte de uma grande onda de apresentações e discos resultantes de processos de redemocratização na América Latina após os anos 1970, reunindo artistas latino-americanos politizados que acreditavam num continente unido contra as ameaças imperialistas e ataques à soberania nacional dos países do bloco. Um exemplo foi o disco Corazón Americano, também uma apresentação ao vivo com participação de Milton Nascimento, Mercedes Sosa e León Gieco.

Quem me introduziu às composições do ilustre compositor e instrumentista Carlos Mejía Godoy foi sua própria sobrinha, Aminta, que por acaso é também minha parceira de vida. Carlos nasceu em Somoto e vem de uma tradição familiar de músicos que segue viva até hoje em San Isidro, com novas gerações da família Mejía Godoy que seguem trabalhando com música de diferentes formas. Ele, que apoiou a revolução e a FSLN, foi responsável por grandes hits que reivindicam soberania nacional, anti-imperialismo e principalmente paz na Nicarágua, que vinha de uma sucessão de conflitos armados, golpes de estado e governos tirânicos. Pude observar em primeira mão saindo das bocas de todo tipo de pessoas pela cidade os versos e melodias criados pelo artista, como “Comandante Carlos Fonseca”, “Nicarágua, Nicarágüita”, “No Pasarán”, “Viviras Monimbo” e outras belas composições. Além dessas, vale destacar “La Consigna”, uma marcha militar anti-imperialista que depois se converte em música folclórica e declara a união do povo contra um inimigo comum.

 

Hermano, dame tu mano
Y unidos marchemos ya
Hacia el Sol de la victoria
Trayectoria de la libertad

Hermano de la montaña
Hermano de la ciudad
Juntos unidos lucharemos
Y unidos lograremos llegar al final

Ya nadie detiene la avalancha
De un pueblo que tomó su decisión
Esta es la guerra desatada
La guerra prolongada contra el opresor

Irmão, me dê sua mão
E unidos marchemos já
Até o sol da vitória
Trajetória da liberdade
Irmão da montanha
Irmão da cidade
Juntos unidos lutaremos
E unidos chegaremos ao final
Ninguém mais detém a avalanche
De um povo que tomou sua decisão
Esta é a guerra desencadeada
A guerra prolongada contra o opressor

Todas essas canções seguem vivas na memória do povo, e é impressionante que hoje, mais de 40 anos depois, elas sejam passadas para as novas gerações. Outros nomes importantes da música nicaraguense também merecem destaque e foram inclusive incorporados na playlist referente a esse texto, como Los Guaraguao, Cutumay Camones e o Duo Guardabarranco, cujas obras merecem uma viagem profunda.

A música sandinista hoje

No dia 18 de julho, dia imediatamente anterior à data oficial da revolução, realiza-se a chamada vigília, na qual apoiadores da FSLN vão para as ruas e ali permanecem até a meia-noite, quando se soltam fogos de artifício que dão início oficialmente as comemorações. Dentre as novas estrelas da música nicaraguense sandinista vale mencionar o grupo Los Rústicos del Norte e a carismática figura da cantora Maria Alfonsina, que nessa celebração do dia 19 de Julho esteve em vários palcos cantando a canção “Soberanía”, cujo refrão diz o seguinte:

Afuera, afuera
Pueden decir lo que quieran
Pero si estás en tierra nica
Respeta mi bandera
La bandera azul y blanco
que no tiene ni una estrella
Por la que un día Sandino
Enarboló la roja y negra

Afora, afora
Podem dizer o que quiserem
Mas se estiver em terra “nica”
Respeite minha bandeira
A bandeira azul e branca
que não tem nenhuma estrela
Pela qual um dia Sandino
Içou o vermelho e o preto

A letra trata um pouco da já mencionada da “má fama” do país mundo afora, reiterando que nenhum nicaraguense pretende mudar a cabeça preconceituosa de quem diz o que quer fora dali, mas que ainda assim os nicaraguenses devem ter sua pátria e soberania respeitadas. Há também um verso em que se fala da bandeira azul e branca sem estrelas do país, talvez como forma de se diferenciar da bandeira de Honduras, mas também se distanciando da bandeira estadunidense. Os últimos versos mencionam Sandino, responsável pela segunda bandeira do país hoje ser vermelha e preta, em referência à FSLN e aos milhões de militantes e guerrilheiros que contribuíram para a construção desse modo de vida socialista. É importante mencionar aqui que durante a tentativa de golpe de estado em 2018 houve uma cooptação da bandeira nacional do país pela extrema direita.

Outra canção que vale a pena ser comentada aqui se chama “Trabajo y Paz” e, assim como outras músicas sandinistas, é atribuída diretamente à FSLN, garantindo um caráter de autoria coletiva e de propriedade popular. Essa faixa é performada pela Juventud Sandinista e tem uma melodia inspirada em “Give Peace a Chance” de John Lennon, inclusive tendo como tema comum a paz.

Apesar das inúmeras tentativas de boicotes e sabotagens à revolução, a Nicarágua segue sandinista porque o povo escolhe isso todos os dias. Ainda que seja o país com o segundo menor PIB da América Latina, podemos atestar aqui, enfim, que a revolução vem sendo mantida não apenas através das forças militares e das disputas políticas do país contra interferências estrangeiras, mas principalmente por meio de programas de educação, moradia, saúde e muito incentivo e fomento à cultura, especialmente no campo da música, da dança e outras manifestações criativas que permitem conectar as pessoas de uma forma única enquanto um só povo. Espera-se que, depois dessa breve introdução ao contexto nicaraguense e à sua bela cultura musical, a empatia por esse país hermano cresça em nós, brasileiros, que, distantes de um sentimento autocentrado, possam saborear a arte da Nicarágua.

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