Crizin da Z.O. e o caos urbano

“Acelero”, novo álbum da banda, conecta a urgência do funk carioca com o ethos punk e captura a tensão permanente e ambígua de nosso tempo

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Fotos: Reprodução

É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. A famosa frase do autor inglês Mark Fisher sintetiza o fenômeno que ele nomeia como realismo capitalista — isto é, o sentimento disseminado de que este é o único sistema político viável, sendo impossível imaginar uma alternativa a ele. O punk é possivelmente o movimento cultural que melhor ilustra esse quadro paradoxal: surgido de uma revolta anticapitalista, tornou-se um fóssil conservador, um produto turístico inserido em contexto de luxo.

Como retomar as faíscas de energia subversiva de movimentos como o punk no atual mundo conectado, onde as câmeras de vigilância e reconhecimento facial estão entranhadas no cotidiano e a economia dos aplicativos nos conduziu a uma mentalidade neoliberal tão extrema a ponto de fazer o trabalho precarizado ser visto como sinônimo de autonomia, independência e empreendedorismo? Como criar a dissonância quando tudo parece ser engolido pelo capitalismo?

Acelero, novo álbum do Crizin da Z.O., encontra na conexão entre a urgência do funk carioca com o ethos punk um modo de capturar a tensão permanente e ambígua de nosso tempo, na corda bamba entre o colapso do planeta e a festa da carne. Equilibrando-se entre o passinho e os graves do paredão e as balas de uma polícia que extermina a população negra.  Formado pelos cariocas Cris Onofre (voz e letras), Danilo Machado (beats e percussões) e pelo paranaense Marcelo Fiedler (baixo, guitarra e beats), o trio não recorre a Mark Fisher ou qualquer outro intelectual renomado para compor a imagem estilhaçada do caos urbano, mas, sim, a um senso de humor, (auto)ironia e deboche próprios do funk e de quem sobrevive nos subúrbios cariocas.

“Se existe um eu lírico no Crizin da Z.O., sou eu sentado num vagão de trem observando, falando sobre tudo e em nenhum momento dando uma solução. É mais um convite: vem dar uma olhada comigo a doidera que tá”

“Eu já achei que dava pra ser Ian McKaye sendo latino-americano”, cantou Cris em “Ian McKaye”, faixa de abertura de seu álbum anterior, Alma Braba (2022). Em que momento percebeu que era impossível ser esse astro cult como o vocalista do Fugazi? “Foi durante o processo de desenvolvimento de consciência de classe e de posição no mundo”, diz ele em conversa por videochamada. “Não que eu tenha querido ser o Ian McKaye, mas mesmo que eu quisesse não tem como você se comparar com o norte-americano. Pode ser o americano com a melhor das intenções do mundo, mas você é e sempre será um latino-americano”.

“Um fenômeno muito comum do subúrbio do Rio de Janeiro é esse sincretismo de tudo. Quando você é do subúrbio, praticamente não consegue ser de um gênero musical só. Você é punk, mas aí no fim de semana onde você vai? Não vai ter uma casa de show de rock. Vai ter a matinê do funk, o baile. Eu e todos os moleques que eu conheci sempre foi uma mistura gigantesca de gostar de tudo”

O funk fazia parte do universo musical de Cris desde sua infância em Campo Grande, na Zona Oeste do Rio. “Um fenômeno muito comum do subúrbio do Rio de Janeiro é esse sincretismo de tudo. Quando você é do subúrbio, praticamente não consegue ser de um gênero musical só. Você é punk, mas aí no fim de semana onde você vai? Você não vai ter uma casa de show de rock. Você vai ter a matinê do funk, o baile. Eu e todos os moleques que eu conheci sempre foi uma mistura gigantesca de gostar de tudo”, pontua.

No entanto, o funk viria a adquirir uma camada mais profunda e significativa para ele após ter vivido em Curitiba por sete anos. O funk se tornou uma espécie de canal para investigar suas próprias origens de um modo quase psicanalítico. Uma ocasião específica foi especialmente marcante. Após um show do Crizin da Z.O., um playboy branco o abordou perguntando se ele tinha ou sabia de algum canal para comprar droga.

“Ele falou isso pra mim, o único negro no rolê. Eu quase meti a porrada no maluco”, recorda. “Depois isso virou quase uma crise existencial. Esse Cristiano que quer levantar os outros na porrada é o Cristiano do Rio de Janeiro. Por que ele tá voltando à tona? No fim das contas, minha conclusão foi a necessidade de voltar a essa raiz para entender o porquê essa reação existe. Entender o meu local. Por mais que você esteja circulando, você não está sendo aceito como um dos que estão ali. Você tá sendo aceito como alguém que vem de fora trazer uma coisinha pra eles curtirem, quase um agrado. Teu projeto de vida, tua arte, aquilo que você se dedica é quase um agradinho que você tá levando pra essas pessoas”.

(Fotos: @insonia.m)

Acelerado” é uma música que aborda essa busca instável da paz de forma violenta. A faixa narra o caso mencionado por Cris e expressa uma paranoia desencadeada pela violência por um senso de sobrevivência atrelada à masculinidade negra periférica: “Tudo volta pro mesmo papo: ‘Acho que o que eu preciso é de um oitão’ / Esquece o oitão, eu sou artista / talvez no mundo da imaginação / vou te matar entrando pela vista”. A violência surge como uma mina esquecida no subsolo, prestes a explodir no momento de descuido. Metáforas ligadas à explosão e fim dos tempos surgem ao longo de todo o álbum, que é envolto em um delírio distópico. “Eu não vou ficar aqui esperando explodir / Tanto tempo reprimindo o desejo / de ver tudo explodir / só uma bomba nessas horas / localizada no peito”, diz a letra de “Calmo Apesar de Tudo”, que abre o álbum. Mesmo uma música com toques de romance como “Carro de Aplicativo”, que narra o último olhar na despedida de um casal, paira uma névoa de neurose claustrofóbica que parece anular qualquer inclinação sentimental.

Para Cris, o funk foi o caminho para analisar as próprias “raízes sangrentas”. Para o Crizin da Z.O., o funk é um mecanismo de elaboração poética, de construção de letras irônicas e malandras diante de um capitalismo global devorador — que destruiu a lógica de “crítica social” ou “chamada para a ação” do punk. Acelero não oferece nenhuma saída, pois não há. Mas também não dá voltas em um niilismo vazio. No funk-batucada-pós-punk “Pacote de Dados”, por exemplo, a vigilância panóptica das câmeras é desmantelada com uma citação ao insight filosófico de um jogador do Flamengo: “Ainda acho a memória uma ilha / gosto de pensar tipo Bruno Henrique: sempre que eu via esse filme / eu não via”.

“Acho até curioso quando alguém fala que essas letras são meio engraçadas”, analisa Cris. “Eu entendo que é engraçado em algum nível, mas não chega a ser nem uma intenção. É um deboche inerente ao caos que tem aqui mesmo. Acho que o Rio de Janeiro é uma cidade tão falida de esperança que a gente aprendeu a levar tudo na sacanagem de uma forma melancólica, tipo aquele bagulho de mente do palhaço. A gente tá rindo de desgraça o dia inteiro. E na hora de compor eu me coloco no lugar de observador. Se existe um eu lírico no Crizin da Z.O., sou eu sentado num vagão de trem observando, falando sobre tudo e em nenhum momento dando uma solução. É mais um convite: vem dar uma olhada comigo a doidera que tá”.

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