Cronixta propagando sinais e vínculos

Após um processo de autoconhecimento e de resgate às origens de sua cidade natal, o artista paraense lança “Wi-Fi da Floresta”, disco que une referências latino-americanas ao fervor musical de Belém

Loading

Fotos: Rafa Rocha

Em algum momento da história, soltaram aos ventos de que “saudade não tem remédio”. E, de fato, não parece ter mesmo. Na psicanálise, a saudade pode ser lida como uma forma de luto que ocorre não apenas quando perdemos alguém, mas também quando perdemos objetos de amor ou desejos reprimidos. O ponto positivo é que essa inquietação que pinica no peito pode ser uma oportunidade de explorarmos as profundezas da nossa psique e compreender melhor os desejos, necessidades e vínculos emocionais. Para Willy Franca, o Cronixta, foi por meio da música que ele pôde explorar as nuances da própria saudade, que deixou de ser um vazio, para se transformar em uma profunda fonte de inspiração que lhe rendeu dois discos até aqui: Maiandeua (2020) e Wi-Fi da Floresta (2023).

O segundo, responsável por nos ligar ao momento presente, chegou às plataformas digitais no dia 19 de setembro e conta com participações de Bixarte, Felipe Cordeiro, DJ Cleiton Rasta, Thiago Elniño e Chico Correa. “A saudade e o amor são as conexões que regem esse disco”, define o rapper paraense em entrevista ao Monkeybuzz. Cronixta foi impactado pela música antes mesmo de completar 10 anos, mas teve a atenção interrompida após a mãe abandonar Belém, cidade natal do artista. Naquele momento, ele foi morar na casa de uma tia, onde na esquina, havia uma placa que indicava o nome da Rua Recife.

“Eu e a placa tínhamos um combinado: todas as vezes em que eu acertasse uma pedra nela, seria uma possibilidade da minha mãe voltar”, descreve o artista em trecho de um vídeo. A placa sofreu danos, mas a reconexão com a música — quase inevitável em Belém — foi fundamental para que aquele sentimento pudesse cicatrizar. “Foi um processo muito doloroso no início, porque são muitos traumas que a gente precisa lidar, é um enfrentamento. É como se você caísse do avião sem paraquedas”, elabora Cronixta a respeito de transformar suas experiências em canções.

“A saudade e o amor são as conexões que regem esse disco”

A divisão de espaço e aconchego com a tia também proporcionou ao artista o acesso à literatura, já que ela tinha uma biblioteca. “Esse movimento todo de saudade e ter acesso [aos livros] me fez começar a pensar um pouco mais nessas histórias e como eu poderia desenvolver esse lugar da escrita”. Aos 13 anos, se apaixonou pela pichação, curvas e linhas e passou a atender pelo codinome “dimenor”. Em pouco tempo, seus pixos estavam em boa parte da cidade, o que o trouxe à cultura do hip hop e às canções de Sabotage, Racionais e RZO.

Em um dos almoços dominicais com o tio, ator e poeta, foi questionado sobre as intervenções artísticas: “Você tem muito mais a dizer do que pintar”. A provocação o rodeou diversas vezes: “Será mesmo que eu tenho mais a dizer do que pintar?”. Com a morte do tio, a movimentação tornou-se necessária. Em 2013, Cronixta montou o primeiro grupo de rap: Cronistas da Rua. Também com Alonso Nugoli (beat box), o grupo desenvolveu um diálogo entre rap, funk, reggae, dub e rock. A experiência de outro colega DJ, o Pro.efx, acrescentou ainda mais ao projeto ao propor a fusão de ritmos eletrônicos inspirados na cultura jamaicana.

Em 2016, o grupo foi convidado para tocar em São Paulo, o que ampliou a perspectiva mercadológica do artista. “Me ajudou a entender como eu preciso me posicionar dentro do mercado e como eu posso fazer com que a minha música chegue, de fato, em mais lugares”. Em 2020, mais maduro, se reuniu com KL Jay, Pedro Luis, Japa System (Baiana System), Macedo (Afrocidade) e Manoel Cordeiro para colaborar em sua estreia solo em Maiandeua. O título do disco faz menção a uma ilha brasileira localizada no estado do Pará, cuja origem vem do tupi e significa “Mãe da Terra”. Com oito faixas, o repertório passeia pelos gêneros latino-brasileiros e sonoridades amazônicas, como o carimbó, zouk, guitarrada e tecnobrega, mas sempre estabelecendo vínculos com o rap, referência onipresente em suas canções. No ano seguinte, se preparou para o lançamento com o parceiro Djonga, “Deus é Mãe”. O músico relata que a composição foi um preparo importante para revistar a própria criança interior, lhe rendendo memórias profundas. “Aquele sentimento de saudade que tive pela minha mãe naturalmente me trouxe algumas letras e melodias”.

“Já tinha escrito todas as músicas de ‘Wi-Fi da Floresta’, mas elas estavam guardadas. Precisei revisitar para amadurecer e atualizar as ideias”

A partir disso, o rapper chegou ao estúdio com confiança para trabalhar em um novo material que viria a ser Wi-Fi da Floresta. “Já tinha escrito todas as músicas, mas elas estavam guardadas. Precisei revisitar para amadurecer e atualizar as ideias”. Como Cronixta remonta, o disco captura essencialmente os sinais rítmicos vindos da América Central para a América do Sul. “Entender um pouco sobre a frequência do que vem de lá foi fundamental para a sonoridade do disco”, explica.

Ao longo dessa jornada de autoconhecimento e imersão nas raízes culturais de sua cidade natal, o artista encontrou inspiração em sua própria história e nas influências musicais que o cercavam: rap, samba, funk e tecnobrega. Ao compreender a importância de se reconectar com suas origens e explorar a herança cultural de Belém, Cronixta percebeu que esse movimento era essencial para trazer originalidade à sua música. A cidade, que outrora foi um importante centro portuário, desempenhou papel significativo na formação da identidade cultural local e na evolução dos ritmos musicais na região. Por isso, ele busca canalizar essa herança cultural como um repetidor de sinal — assim como um roteador de Wi-Fi — com o desejo de marcar seu nome na música brasileira, trazendo a pluralidade latina, amazônica e dos ritmos do norte.

Wi-Fi da Floresta chega com oito faixas distribuídas ao longo de 17 minutos, como um dia para lá de quente no verão, e nos conduz para a celebração das conexões emocionais que permeiam a vida de Cronixta – em que a saudade e o amor se entrelaçam e dançam conosco. Assim como no primeiro disco, o artista passeia por referências latino-americanas impulsionadas pelo fervor musical de Belém. O álbum foi produzido por Matheus Padoca e conta com a identidade visual dirigida por Rafa Rocha em parceria com o artista. Para esse processo, a dupla se inspirou em Hélio Oiticica, figura basilar da Tropicália.

Ao estudá-lo, Cronixta notou um ponto de convergência importante entre o trabalho de Hélio e sua própria música: a ideia de que ambos dependem do movimento e da diversidade para se manifestar. Quando retornou a Belém para capturar elementos visuais que evocassem memórias de sua cidade natal, ele compartilhou com Rafa um detalhe especial: quando criança, o artista costumava observar minuciosamente os pequenos detalhes nas ruas como uma maneira de se integrar ao ambiente e preservar a memória de que já havia percorrido aqueles lugares.

Esses detalhes foram registrados em fotografias e, mais tarde, transformados em pinturas em acrílico para representar as faixas do disco, com intuições claras, sendo o verde da floresta Amazônica; o amarelo e laranja que trazem a naturalidade da luz do sol; o branco da luz natural; o vermelho com o sangue, suor e o suingue de um povo e, por fim, o preto, como a sombra. Esse processo imersivo resultou em uma composição única para a capa, que incorpora elementos de sua própria memória, movimentos contemporâneos e referências culturais, oferecendo uma representação visual profundamente significativa. Tudo isso somado às batidas contagiantes e harmonias alegres, que evocam a sensação de festa à beira-mar durante todo o disco.

Abaixo, o rapper compartilha o faixa a faixa de Wi-Fi da Floresta:

“Rádio do Caribe” part. Felipe Cordeiro

“Durante muito tempo, nas décadas de 1930 e 1940, não conseguimos conectar as rádios de nosso próprio país. Então, essa música aborda a frequência vinda da América Central que transformou a cultura de minha região. A onda sonora, uma vez emitida, propaga-se eternamente – e eu me considero quase um roteador dessa sonoridade”.

“Que Tal?!”

“Ela vai além do questionamento, é um movimento através do verbo, esse movimento de descer para subir, desse êxodo musical devido ao tamanho do país e à indústria não entender direito a música feita em minha região. Repete-se a máxima dos Racionais: a gente tem que ser algumas vezes melhor para nossa música ser percebida da forma que ela merece”.

“Dejavú”

“Morei por um período na casa de um amigo na zona sul e, um dia, ele me informou que a propriedade estava envolvida em um processo judicial, pois a família de seu pai reivindicava a propriedade, mas isso levaria algum tempo. Eu havia conhecido Gabi, minha companheira, cerca de uma semana antes, e no dia seguinte à conversa que tivemos sobre a casa, às seis da manhã, um oficial e alguns policiais entraram no meu quarto e me acordaram para que eu retirasse meus pertences, pois haveria uma reintegração de posse. Essa história precisava estar de alguma forma neste disco que aborda a conexão, porque isso me fez conviver por anos com uma das pessoas mais especiais que já conheci na vida”.

“Jambú” part. Cleiton Rasta

“Fala sobre essa ginga e o suingue diferenciado lá de cima do nosso país, necessário pra gente ir levando a vida. Quando você toma uma dose de Jambú, naturalmente a boca treme, e essa faixa é igual uma dose, feita para sua boca tremer”. (Para o artista, nenhum DJ de sua cidade tinha o carisma que o Cleiton teve para essa produção).

“Wi-Fi da Floresta” part. Bixarte

“Essa faixa é muito especial porque eu quis muito trazer a Bixarte, uma mulher trans que se conecta com suas naturezas mais profundas para nos presentear com uma mensagem sobre renovação e movimento em busca da nossa conexão”. (Para Cronixta, a artista é uma força da natureza muito avassaladora).

“Sabiá”

“Sempre vejo a figura do passarinho em vários lugares, ele sempre me acompanha e não queria deixá-lo fora do álbum. São Paulo é como uma selva que nos faz imaginar muita liberdade, mas que também nos aprisiona de várias formas. Essa música é um voo até a boca do céu para sentir a liberdade que a arte nos proporciona”.

“De Cima do Mapa” part. Thiago Elniño

“O refrão dessa música surgiu quando eu estava voltando de um banho de rio, e aconteceu algo especial enquanto eu tocava na água ao mesmo tempo em que o sol beijava o rio. Essa música reflete a lei hermética da correspondência, que nos diz: ‘O que está em cima é como o que está embaixo, e o que está embaixo é como o que está em cima”. A colaboração com o artista foi super genuína: ‘[ele] escreveu um verso sobre Belém de uma forma muito carinhosa”.

“Traficante do Amor” part. Felipe Cordeiro e Chico Correa

“A música e o verbo têm essa capacidade de fluir naturalmente e a venda do produto verdinho lá de cima para gringo é mais caro [risos]. Estamos enrolando o amor, abrindo essa banquinha e, hoje em dia, com a facilidade do pix, está barato demais para levar para sua área o suingue, o calor e o amor refinado do norte do Brasil”.

Loading