DDG19 Big Band: Brasil, jazz e emoção em cada compasso

Encabeçado pela conexão familiar e sonora de Debora e Dani Gurgel, registro celebra a sinergia entre piano, voz e 15 virtuosos da música brasileira

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Fotos: Reprodução

Entre a virtuose e a celebração, Debora e Dani Gurgel cristalizaram sua sinergia piano-voz ao lado de 15 grandes músicos do Brasil. O registro marca a celebração dos 10 anos do DDG4, quarteto completo pelo contrabaixo de Sidiel Vieira e a bateria e a produção de Thiago (Big) Rabello. “Ano passado completou 10 anos de quarteto. Fazia tempo que a gente queria fazer um projeto com big band. Acabou que a comemoração foi DDG4 + 15, que virou o DDG19”, explica Dani Gurgel — cantora, fotógrafa, diretora e pesquisadora à frente do projeto. Respectivamente mãe e filha, Debora e Dani, paralelamente ao DDG4, atuam na música de forma ampla, arranjando, lecionando, pesquisando e gerenciando um selo. “Temos um lado polvo, né? A gente se desdobra por todos os lados. São atividades complementares, mas todas super prazerosas”, comenta Debora — pianista, flautista, compositora e arranjadora.

Junto da mãe e do quarteto, Dani Gurgel gerencia a comunicação e as produções audiovisuais do estúdio Da Pá Virada, em São Paulo. O estúdio já recebeu gravações de nomes como João Bosco, Quartabê e Margareth Menezes. “Tem projetos que estamos os três: a Dé faz os arranjos, o Big faz a produção, eu faço a parte de imagem. É difícil chegar um projeto no estúdio que não seja de algum artista que gostamos do som”, complementa Dani. Fazendo jus à trajetória cheia de experiências colaborativas, o quarteto se cercou da virtuose de 15 músicos, desde versáteis da música brasileira contemporânea a participações internacionais. Um dos nomes de destaque do projeto é o do saxofonista Vitor Alcântara, que desde os anos 1980 é reconhecido por produções ao lado do gênio percussionista, Airto Moreira. A trombonista norte-americana Natalie Cressman, que já contribuiu com Phil Lesh (baixista fundador do Grateful Dead), aparece na última peça do registro, “Da Licença”, que funde o scat singing característico de Dani a noções rítmicas e dinâmicas melódicas de dixieland. “Construímos uma Big Band não só baseada em pegar os ‘melhores músicos’, escolhemos aqueles que soariam melhor juntos. Queríamos que a banda soasse como uma coisa só, mas também com personalidades que se complementam”, detalha Dani.

“A palavra jazz entra na nossa música como uma concepção de liberdade de poder usar os recursos que a gente ouve em todos os lugares do mundo”

A gana que ferve entre os contratempos é elemento crucial na vivacidade do álbum. 5 saxofones, 4 trompetes, 4 trombones e 2 flautas são envolvidos na tabelinha entre a mão esquerda do piano de Debora e a precisão sincopada dos vocais de Dani. Ao longo do registro, mais do que qualquer associação esperada com o jazz, os toques de ritmos brasileiros populares é que colore as peças. A abertura com “Três Luas” transita entre o partido alto e o baião, que correm em fraseados e momentos de tensão entre cadências jazzísticas. “O jazz entra na nossa música, e o que a gente faz é música brasileira. A palavra jazz entra na nossa música como uma concepção de liberdade de poder usar os recursos que a gente ouve em todos os lugares do mundo.”, comenta Debora sobre a relação em paralelo. Ao lado de solos e fraseados rompantes de peças mais dinâmicas, o álbum traz momentos de contemplação instrumental, como em “Luz”, composição de 2014, rearranjada para big band, que na nova versão tem seu modal jazz estendido em linearidade harmônica. Nas adições melódicas aos vocais de Dani, seja por saxofones ou flautas, as melodias ambientam linhas características de gêneros da MPB, sem se prender a qualquer purismo jazzístico. “O que a gente faz é música brasileira contemporânea. Esse é o nosso chão”, explica Dani.

(Foto: Marcela Karam)

Ao mesmo tempo em que o trabalho reúne ritmos tradicionais brasileiros sob o pano de fundo do jazz, o quarteto sempre abriu os caminhos do mundo para Debora e Dani, levando-as a um reconhecimento especial no Japão. “Eles pediam os nossos discos na Tratore e o usavam de sumário, para descobrir outros compositores. Eles pegavam quem era o compositor de cada música, e assim chegaram também em artistas como o Dani Black e o Vinicius Calderoni. Era curioso, o pessoal da Tratore contava isso pra gente, eles pediam uma caixa de 100 discos meus, mais 10 discos de cada um dos 10 compositores que estavam naquele disco”, comenta Dani. Com tal receptividade, o quarteto excursiona no país asiático anualmente, desde 2013. As constantes viagens ao país, além da música, também proporcionaram um estudo (publicado na USP) de Dani sobre o espaço para a música brasileira no Japão, em especial quanto a estilos de nicho, como música instrumental. “No Japão, o espaço que a gente ocupa é muito mais da música brasileira do que do jazz. Isso é muito legal, porque nos outros lugares que a gente viaja, a gente faz um circuito do jazz, enquanto no Japão nos reconhecem pelo Brasil”, complementa Dani.

(Foto: Tsuneo Koga)

“No Japão, o espaço que a gente ocupa é muito mais da música brasileira do que do jazz. Isso é muito legal, porque nos outros lugares que a gente viaja, a gente faz um circuito do jazz, enquanto no Japão nos reconhecem pelo Brasil”

As 11 composições que formam o trabalho são pontos importantes da trajetória de ambas, sendo selecionadas para reconfiguração em big band não só pelas características musicais, mas também pelos significados pessoais. “Acho que foi um processo de duas coisas paralelas. Primeiro, selecionamos músicas que são muito importantes para a história do quarteto. Segundo, músicas fariam sentido com big band”, conta Dani. Das histórias por trás das composições, se destaca “Quiet Little Lady”, fruto do encontro de Debora com Chick Corea. Na ocasião, Debora fez parte de uma classe especial do pianista. “Em 2012, eu fui fazer um workshop com ele, acho que foi a única vez que ele fez um curso presencial, perto de Boston. Era um trio — ele, John Patitucci (baixista),e o Antonio Sánchez (bateria). E éramos mais ou menos 25 alunos, a maior parte jovens. Eu era a mais velha e não falo muito bem inglês, então a gente se comunicou mesmo quando toquei uma composição minha com eles – e foi um estouro! Não era algo muito brasileiro, mas também não era nativo do jazz, era uma música no meio do caminho, como um cha-cha, e a gente se encontrou ali. Desde então, ele passou a me chamar de ‘the quiet little lady from Brazil that blows us away’ — a senhorinha quietinha do Brasil que surpreendeu todo mundo.”, relembra Debora.

Entre canções especiais para a carreira do quarteto, a única composição inédita presente no disco marca a performance em sincronia que permeia a grandeza sônica do conjunto completo. “Veredas” traz a participação do contrabaixista cearense Michael Pipoquinha, que contracena em linhas melódicas com o vocal de Dani, complementando e rotacionando a progressão da música. A parceria veio do encanto de Debora com a performance de Pipoquinha. “Foi muito impactante pra mim, tipo, de perder a respiração. E aí eu falei pra ele: ‘isso mudou o meu caminho, mudou o meu jeito de pensar’. Eu tenho que fazer alguma coisa para você. E aí eu compus essa música especialmente para ele”, relembra Debora. Como 11 composições não são capazes de dar conta de uma longa jornada, Debora trouxe, nas releituras, arranjos com adições em fraseados e licks fazendo referências às outras peças do quarteto que não aparecem em DDG19. “Em vez de citar outro autor, como é comum, na hora do improviso, pensamos em citar nós mesmas, outras composições nossas”, ilustra Debora.

“Se eu tiver que escolher entre o coração e a execução perfeita, vou escolher o coração. A gente estuda para poder tomar decisões com o coração e não ter que se preocupar com a execução, porque a base sempre vai estar lá”

Ao longo de uma hora de música, a fluidez e leveza nos floreios da big band contrabalanceiam a virtuose das linhas melódicas – em meio aos contratempos e às tensões do piano sempre afiado de Debora. De encontro à marcação impetuosa das teclas, o vocal de Dani é o centro pulsante do apelo imagético do disco – relação que define o quarteto desde o começo. “É muito forte, é muito amor envolvido, é uma vida inteira envolvida – e passamos isso pra música. O resultado musical do que a gente faz é quem a gente é e como se relacionamos com as pessoas. Nosso entendimento é muito fácil, Ela (Dani) sempre entende o que estou pensando e qual sentimento quero passar numa composição”, define Debora.

Em timbres e texturas, DDG19 é um álbum instrumental que fala por meio da ardência instintiva de músicos que colocam paixão em cada nota, entre a performance e a improvisação. “Fazer música não é só receber uma partitura e tocar. Começa ao juntar as pessoas, no café, no almoço… E essa conexão transparece naturalmente no som. Quando a gente toca, estamos felizes um com o outro, também por causa das conversas que temos fora do estúdio, a música vem desses momentos”, ressalta Dani. Expressivo e diverso, o material celebra a criatividade livre sem se rotular como “free jazz”, e redireciona sons brasileiros sem, entretanto, colocar um ponto final na sua musicalidade. “Se eu tiver que escolher entre o coração e a execução perfeita, vou escolher o coração. A gente estuda para poder tomar decisões com o coração e não ter que se preocupar com a execução, porque a base sempre vai estar lá”.

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