É grande a fé de dadá Joãozinho

“tds bem Global”, disco de estreia do cantor niteroiense radicado em São Paulo, une influências globais para tensionar o pop e manifestar desejos; ele destrincha o projeto faixa por faixa

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Fotos: João Victor Medeiros

tds bem Global (2023). O título do disco de estreia de dadá Joãozinho é um desejo, mas também uma chave para adentrar as diferentes portas que o som do niteroiense radicado em São Paulo oferta.

Sem limites de gênero, o cantor e compositor passeia por reggae setentista, hip hop experimental nova-iorquino, punk, canção brasileira… E é por meio do potente laço da música pop que ele faz com que toda essa mistura funcione e transite harmonicamente. “Esse disco tem uma ambiguidade, uma coisa que é meio pop demais para alguns, experimental demais para outros, sabe? Vai ser um caminho interessante de trilhar”, ele conta. “Teve um momento que eu mergulhei completamente nesse universo do Bob Marley, Fela Kuti, tanto musical como corporal. Arnaldo Antunes também”.

Se sozinho o “bem Global” abarca a sonoridade, quando unido ao “tds”, pronome indefinido plural, João manifesta um desejo de expansão e conquistas universais para um tema muito caro em seu primeiro trabalho: sua comunidade. “Meus amigos que me ensinam tanta vida/ Banho neles, um banho de todo amor”, ele canta em “Banho”. Apesar do sonho de fazer um disco solo (ele já havia estreado em 2019 com a banda ROSABEGE), ele reflete, com alegria na voz, que tds bem Global talvez não seja exatamente um disco solo: “Eu consigo imprimir a minha narrativa em primeiro lugar — só que eu também abro espaço para que outras narrativas sejam colocadas […] O disco foi ficando cada vez mais interessante quando as pessoas vinham e traziam as suas histórias para dentro dele”.

Além do som, dadá Joãozinho realiza o desejo de atuar, escrever roteiros e dirigir no intrigante universo visual de seus videoclipes — artifício que julga fundamental para criar um “senso de acontecimento pop”. “Vou usando minhas músicas para aprender a lidar com a vida também”.

O Monkeybuzz bateu um papo exclusivo com o músico, que contou os detalhes e processos de seu disco de estreia, além de montar um faixa a faixa.

  1. “Ô Lulu”

A diferença nas músicas deixa claro um pouco sobre o processo de feitura delas. Tem umas músicas que eu fiz voz e violão, e aí depois produzi com banda, outras eu já fiz em cima de algum instrumental que produzi ou um sample…

Essa foi uma que eu compus no violão. Tem até outras versões e outras vibes, mas, com o amadurecimento do processo, da estética e do universo sonoro, eu quis levar ela pra essa direção, que tem uma influência de um rock nigeriano dos anos 1970, tem um toque de reggae, tem uma coisa de música brasileira também no violão…

“O disco tem uma ambiguidade, uma coisa que é meio pop demais para alguns, experimental demais para outros, sabe? Vai ser um caminho interessante de trilhar”

Qual é a paisagem que você sente mais falta da sua cidade?

A vista do mar é muito forte, né? Mas quando eu compus essa música eu não morava perto do mar. Eu morava perto de uma montanha e a vista era umas copas de umas árvores assim, muito lindas, no alto de uma montanha.

  1. “Cuidado!”

Tem essa urgência na música. De perceber coisas que eu precisava fazer para além do que eu estava entregando afetivamente, sabe? Acho que eu fiz essa música para me lembrar disso. Que no meio daquela loucura toda, dessa corrida toda da vida, eu precisava me lembrar de ter mais cuidado.

Nesse disco eu toquei muita guitarra, mas não compus nenhuma, improvisei no estúdio e recortava e colava o que achava mais interessante. Tem essa dimensão de colagem em quase todas as faixas.

  1. “VEJA”

Eu fiz a partir de um sample. Depois a gente refez os arranjos de sopros, de guitarra e tal. Quando fui pro estúdio com JOCA, ele veio com uma ideia do verso [de rap] mais no estilo que a gente conhece, e eu disse: “acho que é menos, menos”. É uma coisa mais pontual, é um mantra, de alguma forma. Ele é muito foda na caneta, e muito sensível também, então foi muito rápido. Essa foi uma das músicas mais rápidas e eu deixei que fosse assim. As coisas vieram e eu não julguei muito. Eu aceitei as coisas como elas eram.

Você se sente um cara espontâneo?

Eu estou me sentindo muito chato ultimamente. Tudo eu tô revendo mil vezes. Pode ser uma coisa gerada a partir desse primeiro passo [de lançar um disco], talvez insegurança que vem desse momento, mas agora eu tô tentando abraçar de novo essa espontaneidade.

  1. “Minha Droga”

O disco é um disco apaixonado. É uma paixão com muito fogo. E essa música é a primeira dessa paixão, o disco inteiro é alimentado por isso e pela energia que essa relação me trouxe.

É uma questão de intimidade. Por mais que o disco muitas vezes soe expansivo, e muito movimentado, porque era uma coisa que eu queria também, que fosse uma música que fosse boa de ouvir junto, uma coisa que talvez a gente pudesse dançar junto e curtir, também é muito íntimo.

“Vou usando minhas músicas para aprender a lidar com a vida também”

  1. “Outro Momento”

O órgão (nesse som) foi orgânico [risos]. Por acaso tinha esse órgão maravilhoso, acho que era dos anos 1960 ou 1970, estava lá no estúdio, alguém tinha deixado lá. Ele era horrível porque tinha um ruído absurdo. Só que o som dele era esse som aí que está no álbum, um som muito peculiar.

  1. “Pai e Mãe”

Por muito tempo eu tinha um pouco de receio de mostrar essa música para meus pais, achando que iria gerar algum tipo de desconforto. Mas é isso, a vida é desconfortável às vezes.

Ela surge também nessa leva das músicas que eu compus, na voz e violão. E ela teve algumas versões até chegar nessa versão. Ela era mais lenta, ela era mais melancólica. Acabou que eu fiquei muito feliz com o resultado dela, porque ela ficou leve de alguma forma, sabe?

Estava eu e o Chabudé sentados no sofá do estúdio, já tínhamos acabado o dia de trabalho, aí daqui a pouco começamos a tocar essa música. Aí começou a acelerar, a acelerar, meio que numa vibe pra puxar um samba-enredo, sabe? Ficamos maravilhados com como ficou, voltamos para o estúdio e aceleramos a música, tipo, literalmente aumentamos o BPM de tudo que estava gravado.

  1. “Habitual”

Eu estava morando com o Popoto, da banda RAÇA. Em algum momento a gente estava ali na pandemia, preso dentro de casa, começamos a fazer umas músicas que depois eu perdi o HD. Eu perdi a porra toda, mas a gente queria fazer um álbum ou uma banda, mas não decidíamos se a banda ia ser de samba ou ia ser de punk. “Habitual” veio dessa leva, que eu estava animado para compor essas coisas. E ela nasceu com o ritmo meio de axé, acredita? Tem essa vibe também do estúdio e das colagens do estúdio, as guitarras, tudo muito rasgado.

Suas composições são muito imagéticas, muito sugestivas.

Às vezes eu me desligo um pouco do formato das coisas, tipo: “Como é que essas palavras podem provocar alguma coisa em mim, primeiro?” Algo que me instigue.

  1. “Sem Limitessss”

Eu me debrucei pacarai sobre isso na construção desse álbum, que foi me colocar como intérprete, como um cantor, foi uma pesquisa muito louca para me permitir chegar em alguns lugares.

Quais seus intérpretes favoritos?

Eu gosto muito de Marisa Monte, gosto muito de King Krule. Cara, é difícil essa pergunta. Um cara que me inspirou muito nesse álbum foi H.R. que é o vocalista do Bad Brains. O próprio Playboi Carti também. Eu lembro de estar um dia no apartamento da Luísa (uma amiga próxima), ficar brisando na vista do centro de São Paulo e achar que eu deveria encontrar um novo limite, que os limites que eu tinha eram muito fechados. Aí ela disse: “não cara, é sem limites”.

  1. “CURA”

Nessa eu fiz tudo, é o sample marretando, fui gravando os sintetizadores ao redor disso. Ela tinha uma dimensão de súplica interessante que complementava bem a vibe do álbum. O lado B é muito mais abstrato do que o lado A. Primeiro álbum, né? Eu também pensava muito nessa dimensão do convite. A primeira parte é um grande convite para entrar nesse universo, que é um pouco intenso, mas ele é mais pop. O lado B é mais dentro dessa mente. Para mim, essas coisas abstratas super fluem em um meio pop.

  1. “na Brisa”

O Lessa tinha mandado uma pasta com vários instrumentais, eu escolhi os dois e decidi botar os dois na mesma música. Ela é a mais abstrata do álbum.

  1. “BANHO” / “Banho 2”

“Banho” é uma homenagem aos amigos, a esse carinho, a esse afeto todo. Não existia “Banho 2”, foi Gabriel Miranda (produtor executivo) que me passou essa visão. Tinha outro arranjo, estava muito inspirado naquele álbum da Solange, When I Get Home (2019), de baterias programadas e os pianos. Ela nasceu no violão , mas aí transportei ela pra produção dentro dessa estética. Senti que não era o astral que eu queria, estava ficando muito melancólico. Aí trouxe essa influência do reggae. “Banho 2” era um pedacinho dessa música, um finalzinho, aí o Gabriel falou “essa parte é a parte, você tem que fazer uma música com isso aqui”, isso com o álbum já pronto. A intuição dele estava certa.

“Exaustão! É Grande a Minha fé”

“Exaustão” tem a ver com esse clima que eu tava falando agora mesmo, de como eu estava lidando com a vida meio sem resposta. Eu não tenho resposta para nada, mas estava completamente no desespero de não saber qual que ia ser, buscando me fortalecer nessas coisas que eu vejo valor de fato.

O dinheiro é importante, tá nesse álbum a necessidade da moeda, mas essa música fala bastante sobre esse estado, ao mesmo tempo tentando manter a mente alerta e calma para pra vencer essa loucura.

E mais uma vez, eu acho que foi um disco de fé. O movimento das músicas, o andamento delas, a intenção me traz esse sentimento também. Fiz esse tipo de música porque eu precisava que meu corpo estivesse se sentindo muito vivo, sabe?

De tudo isso que a gente falou, seu disco é então um disco de música pop? O que é música pop para você?

O pop está muito fundamentado nos códigos que a gente usa para comunicar, não necessariamente sobre o que é fundamentalmente aquela música, mas os códigos que ela usa como artifício. Tipo Thriller ou Andy Warhol. Música pop para mim é uma música que se comunica com pessoas em diversos âmbitos. A minha música, apesar de ter várias coisas que não são habituais no universo pop brasileiro, vamos dizer assim, tem uma coisa na forma que eu conto as histórias que é. Eu sou um artista pop. A conversa é: o que pode ser o pop dentro desse momento? 2023, pô! Eu e Rosalía estamos no mesmo time.

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