Etab, a primeira voz saudita: 25 anos de “Jani Al-Asmar”

Uma breve retrospectiva da artista saudita que enfrentou o conservadorismo e ganhou os palcos do Mundo Árabe por meio de um de seus mais aclamados discos

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Fotos: Reprodução

Etab [عتاب] foi o nome artístico de Tarouf Abdulkhair Adam Muhammad al-Talal Hawsawi, uma cantora, compositora e atriz afro-saudita de origem Hausa, grupo étnico beduíno nativo da África Central e Oriental. Ela recebeu a alcunha de “primeira cantora saudita “por ser a primeira a performar publicamente – uma pioneira e praticamente embaixadora da música saudita mundo afora, tornando-se uma verdadeira estrela pop internacional. A cantora escancarou as portas do conservadorismo para que pudessem emergir outras vozes femininas na região do Golfo, como Ahlam Al-Shamsi, dos Emirados Árabes Unidos, e a kuwaitiana Nawal. Seu ativismo envolveu principalmente a inserção das mulheres na música, o que a fez inclusive a ser parte do Sindicato de Artistas Árabes e do Sindicato dos Músicos do Egito. O dia 13 de maio marca 25 anos do lançamento do EP Jani Al-Asmar [جاني الاسمر], celebrado nessa breve retrospectiva.

 

Uma nova voz em um novo reino

Nascida em 1947 na cidade de Riad, Etab cresceu na capital do jovem Reino da Arábia Saudita, unificado havia pouco mais de uma década, o que, somado à descoberta das reservas de petróleo em 1938, determinou os rumos do país. O início de sua carreira ainda na infância nos anos 1960 é marcado por um momento de transição de governo no país, com o Rei Saud bin Abdulaziz Al Saud assumindo o trono em 1953 e estabelecendo novas políticas que mudaram a vida das mulheres: um exemplo disso foi a construção da primeira escola para mulheres nessa época. Ainda assim, Saud levou a um aumento considerável da inflação e gerou instabilidade política, além de seguir reproduzindo a mentalidade saudita conservadora, que tinha uma abordagem bastante extremista da sharia.

A sharia é a jurisprudência islâmica: basicamente um conjunto de normas de comportamento inspiradas nos ensinamentos e na vida do Profeta Muhammad que foram posteriormente inseridas em códigos legais. Apesar da interpretação da legislação islâmica não ser necessariamente conservadora, ela não é homogênea, e as interpretações wahabitas da monarquia saudita defendem, dentre outras práticas, proibir as mulheres de se colocarem no âmbito público, lhes reprimindo o direito de serem agentes políticos, sociais e criadores. Em 1964, entretanto, Saud é tirado do trono por seu próprio irmão Faisal bin Abdulaziz Al Saud, que ainda na condição de príncipe realizou a histórica abolição da escravidão no país em 1962.

Esse panorama político foi onde se deu boa parte da vida de Etab, que chegou a lançar mais de 15 discos e atuar em três filmes, fazendo sucesso em todo o Mundo Árabe. Sua carreira e vida abalaram as estruturas em que se fincavam as raízes das convenções sociais da época, que não reconheciam as mulheres como seres modificadores da realidade e não admitiam uma personalidade tão carismática e a figura de uma mulher independente enquanto estrela dos palcos. Em 1966, ela apresentou sua primeira canção, chamada “Ya Bent”, composta por Fawzi Al-Simoni. Na época, ela tinha o cantor Talal Maddah como mentor. Etab logo percebe que sua cidade não lhe ofereceria todas as oportunidades de desenvolvimento de carreira, de modo que também cantou ao lado de Haidar Fekri quando decidiu se mudar para o Kuwait e começou a ter relevância na região do Golfo.

No entanto, ela só obteve fama e reconhecimento de fato a partir do ano de 1972, no Egito, quando o renomado músico egípcio Abdel Halim Hafez a chama para o palco para cantar músicas folclóricas sauditas acompanhada de uma banda feminina. A partir desse acontecimento, bem como o casamento com seu segundo marido Farouk Farouq em 1978, ela se estabelece no Egito, onde viveu por cerca de 20 anos e obteve sua cidadania egípcia em 1983. Há historiadores da música que afirmam, porém, que ela teria sido perseguida e obrigada a sair da Arábia Saudita nessa época por ordens do próprio Rei Khalid bin Abdulaziz Al Saud, que ficou conhecido por seu autoritarismo, desrespeito aos direitos humanos e pouca relevância para a história do país. Alega-se que ele considerou suas canções e apresentações ao vivo impróprias e subversivas, ameaçando a “segurança nacional”.

Caso isso seja verdade, o ativismo sindical em prol da inserção das mulheres na música e no circuito das artes provavelmente gerou motivação no governo para obrigá-la ao exílio. Essa militância a levou a ser parte do Sindicato de Artistas Árabes, criado em 1986 com o objetivo de assegurar a liberdade de expressão dos artistas de todo o Mundo Árabe, oferecer oportunidades reais de realização profissional e cooperar para a disseminação e o desenvolvimento das artes árabes. Etab também incorporou o Sindicato dos Músicos do Egito nos anos 1980, uma organização que buscava defender os interesses da classe trabalhadora artística. É importante recordar que a artista era uma mulher afro-árabe, o que à época tinha representatividade nula dentro do cenário musical, até que Etab incorpora um pioneirismo em favor do enegrecimento da cultura árabe. A  contribuição cultural histórica de muitos povos afro-árabes para a cultura e a humanidade é inegável, como os núbios, alguns grupos beduínos, dentre outros grupos afro-árabes espalhados por Comores, Etiópia, Eritreia, Iêmen, Iraque, Mauritânia, Omã e Sudão.

“O moreno que de mim se aproximou”: Jani Al-Asmar e a cultura afro-árabe em voga

É no Cairo, em 1988, que Etab gravou o EP Jani Al-Asmar. São cinco faixas com a maioria cantada em sotaque saudita, algo do qual Etab jamais abriu mão, ainda que o desenvolvimento da sua carreira pudesse ter sido facilitado caso ela tivesse decidido canta, por exemplo, em sotaque egípcio, muito mais popular e difundido na época. As faixas misturam cantos tradicionais sauditas e músicas folclóricas árabes do Levante e do Norte da África com elementos da música de orquestra árabe – o chamado tarab – alimentando os ápices das cordas acompanhados da potente voz da cantora. Fica evidente o caráter incessante e até repetitivo das canções que as fazem hipnoticamente irresistíveis, e Etab navega com sua voz pelas batidas sincopadas, os impactantes violinos e os velozes teclados sintetizadores, demonstrando uma forma brilhante de fundir música clássica e canções contemporâneas através de uma linguagem própria.

A canção “Jani Al-Asmar” é inspirada num antigo canto iraquiano, mas foi escrita por Thuraya Qabil com arranjos de Fawsi Mahosun, além de dar nome ao disco. O título pode ser traduzido como “o moreno que de mim se aproximou”, referindo-se a um homem de pele escura, já que o substantivo “Al-Asmar” significa literalmente “o marrom”. O termo no Ocidente costuma referir-se grosseiramente às populações não apenas do Oeste Asiático e Norte da África, mas também da Ásia Meridional (Índia, Paquistão e Afeganistão) e inclusive latino-americanos de origens indígenas. Aqui, o termo parece contextualmente se referir a alguém não-branco de maneira afetuosa, e os versos na boca de Etab dão forma a uma relação amorosa entre duas pessoas não-brancas. A narrativa é a de uma mulher que sente o peso da separação de seu amado, o que a deixa nostálgica. Ao mesmo tempo, os versos também contam que ele teria feito algo imperdoável e que seu sofrimento com os jogos de seu amado a deixavam em dúvida sobre reatar ou não. Em comparação ao que era autorizado cantar-se na Arábia Saudita e mesmo em outros países do Mundo Árabe, as letras possuem um teor mais erótico e sensual.

Em relação à capa do disco, a arte gráfica bebe muito das tendências do design gráfico dos anos 1980, como o uso de fontes sem serifa e letras distorcidas e divertidas, além da estética new wave repleta de cores e formas que aludem à tridimensionalidade, como as bolhas que surgem do fundo em que se encontra o rosto de Etab. É notável também a adesão a elementos de moda Ocidental da época, voltados para o uso de cores vibrantes, penteados de permanentes capilares, blazers de ombreira e estampas de animais.

Que fim levou Tarouf?

Após um primeiro casamento mais breve e o nascimento de seu primeiro filho, além de anos de um segundo casamento que gerou outros dois filhos, Etab decide se divorciar de seu segundo marido, que se recusa a assinar o divórcio, ainda que seja reconhecido pela própria sharia o direito das mulheres muçulmanas a se divorciarem. Sendo assim, ela deixa o Egito para viver nos Emirados Árabes Unidos. Lá, em 1997, é diagnosticada com câncer. Após uma longa batalha de 10 anos contra a doença, a cantora faleceu em 19 de Agosto de 2007, aos 59 anos de idade na cidade do Cairo. É importante conhecer o seu legado enquanto uma voz de esperança e mudança, um canto e uma personalidade que inspiraram profundamente a vida de gerações e que trouxeram para o centro das atenções uma artista que não era apenas mulher nem apenas negra, mas uma poeta de sensibilidade singular, capaz de trazer à tona suas fragilidades e momentos de dor e desespero, além de profundas declarações de amores inabaláveis. Ela inclusive recebeu uma homenagem da Google, que publicou um doodle na aba de busca do site em 2017 para comemorar o que teriam sido seus 70 anos de idade. Etab será para sempre a primeira cantora saudita, além de uma ativista política que mudou a história da música na Árabia Saudita e em todo o Mundo Árabe.

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ARTISTA: Etab

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