Eu não sou daqui

Oito expoentes do Jazz contemporâneo provam que o gênero ainda tem fôlego ao contarem a história de suas diásporas por meio dele

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De acordo com o Spotify, 40% dos ouvintes de Jazz na plataforma de streaming tem menos de 30 anos, e essa porcentagem se mantém desde 2015. O Deezer viu crescer em 15% a frequência de plays, em um período de um ano, nessa mesma faixa etária. Seja na forma de trio ambicioso ou big band clássica, o gênero vem chamando atenção de uma nova audiência, o que também significou ganhar mais espaço nos festivais de música do mundo – só em 2019, o Brasil foi palco de eventos como o Festival Jazz&Blues (CE), Rio Montreux Jazz Festival (RJ) e o recente Mastercard Jazz (SP); o Glastonbury, na Inglaterra, contou com bandas como The Comet Is Coming / Sons of Kemet e Ezra Collective. 

A capital inglesa é lotada de bons exemplos que, curiosamente, em sua maioria, são imigrantes ou filhos de imigrantes. O que os guia pela música são suas diásporas, e, ao mesclar essas raízes com o Jazz clássico, ou o Free Jazz, eles tornaram-se os grandes responsáveis pela revitalização dessa sonoridade que, para muitos, já fazia parte do passado. Nomes como Shabaka Hutchings, Kamaal Williams e Sheila Maurice-Grey, do coletivo KOKOROKO, são apenas alguns dos artistas que, além de serem instrumentistas de alta qualidade, também sabem onde procurar por inspiração. Aqui, 8 artistas dessa nova geração que está injetando novo fôlego ao Jazz contemporâneo.

Ezra Collective

Depois de dois EPs de sucesso – e uma participação no álbum We Out Here (2018), uma coletânea de peso organizada pelo DJ Gilles Peterson –, o quinteto lançou seu primeiro disco, You Can’t Steal My Joy (2019), no início deste ano. O trunfo do grupo está na sua mistura única e moderna de Pós-Bop, Afrobeat, Soul e Hip Hop – uma ótima representação do caldeirão de culturas em Londres. Todos os membros do coletivo são improvisadores de primeira. Não à toa, suas apresentações são energéticas e foram elas que pavimentaram a trajetória da banda até seu primeiro registro formal. O trabalho é quase todo instrumental, a não ser por duas participações de Jorja Smith – com quem o líder o grupo, o baterista Femi Koleoso, toca paralelamente – e Loyle Carner. Uma das faixas, “São Paulo”, é uma swingada homenagem ao Brasil, inspirada no quanto o Ezra Collective amou o país quando visitaram. Eles representam o front que quer se livrar das amarras e rótulos do gênero, mas que, de certa forma, ainda permanecem fiéis ao espírito e à qualidade da história que os trouxe até aqui. 

KOKOROKO

Em Urrubos, idioma originário de uma tribo homônima na Nigéria, a palavra “Kokoroko” quer dizer “seja forte” – e o grupo londrino assim intitulado faz jus ao seu nome e suas raízes. Juntos desde 2014, eles inicialmente se dedicaram a tocar clássicos do Afrobeat como Fela Kuti e Ebo Taylor. O EP de estreia, KOKOROKO (2019), só veio 5 anos depois, mas chegou com força total. A sonoridade da banda existe exatamente na intersecção entre as big bands de Jazz, o Afrobeat e gêneros mais pesados, típicos de uma megalópole como Londres, como o Grime. Mas o grande diferencial do KOKOROKO está em sua formação: além de contar com bateria, piano, percussão e guitarra, o trio de sopros (trompete, saxofone e trombone) é composto por três mulheres. Uma delas, inclusive, é a líder da banda Sheila Maurice-Grey. Manter a veia africana pulsando dentro do Jazz britânico é um dos objetivos do grupo – e é também o que está transformando não só o gênero, mas a música inglesa como um todo. A pluralidade é a liga do KOKOROKO. O coletivo também apareceu na coletânea “We Out Here” do DJ Gilles Peterson com o single “Abusey Junction”, um destaque importante para seu trabalho autoral. 

Kamaal Williams

Em parceria com o baterista Yussef Dayes, no duo Yussef Kamaal, Kamaal Williams lançou Black Focus (2016), um dos discos mais hypados dentro do Jazz britânico da década. Trata-se de uma complexa fusão de Jazz, Funk, Afrobeat e Hip Hop e que conseguiu compilar vários distritos sonoros de Londres. Dois anos depois, Williams voltou solo com The Return (2018), uma viagem ainda mais profunda e diversa nesse conglomerado de influências que resultam na sonoridade única do novo Jazz que vem sendo feito na terra da Rainha. Ele próprio, de ascendência inglesa e chinesa, afirma que, com tantos elementos diferentes na jogada, é impossível chamar esse som apenas de Jazz. Em recente entrevista, o artista disse que gosta do título “música de Londres”, porque é esse o resultado dessa grande mistura. Seja qual for o nome escolhido para essa nova era, Williams é parte ativa dela desde quando fazia House Music influenciada por Jazz Fusion dos anos 1970, em 2015. Ele também afirma que é esse background da música eletrônica que o ajuda a explorar ainda mais sonoridades que, normalmente, não funcionariam tão bem lado a lado. 

Resavoir

Assim como os contemporâneos britânicos que fundem o Jazz clássico com gêneros como Afrobeat e Hip Hop, o Resavoir tem um outro elemento adicional (e curioso): o Indie. O grupo é comandado por Will Miller, trompetista do Whitney, de Chicago. Miller convocou quase uma dúzia de colegas músicos para trazerem seus arranjos à vida. O resultado da empreitada é o primeiro disco do coletivo, o homônimo Resavoir (2019). O registro é quase completamente instrumental – salvo pelas duas últimas faixas – e passeia com calma e precisão por diferentes texturas da obra. É um Jazz Fusion ensolarado, classudo e irreverente. A influência da bagagem Indie Rock de Miller é perceptível, mas não gritante – apenas mais um aroma na miscelânea que compõe o disco. O destaque do LP fica para a faixa “Taking Flight”, com a participação da harpista Brandee Younger, que entra na medida certa e cria uma vibe à la Alice Coltrane, mas sem soar como reprise – resumindo bem a estreia do Resavoir.

Daymé Arocena

Não é difícil deduzir de onde Daymé Arocena vem: os sons de Cuba estão presentes em cada “esquina” de sua música. Nascida e criada em Havana, a artista consegue entrelaçar sua herança afro-cubana de balanço caribenho com o Jazz de altíssima qualidade tocado pelos mestres de Cuba e do resto do mundo. E ela vem aperfeiçoando sua arte desde pequena: aos 9 anos de idade, foi aceita em uma prestigiada escola de música da capital. Aos 14, já era a voz principal da Los Primos Big Band, sob a tutela do lendário maestro Joaquín Betancourt. Foi ali que a cantora aprofundou seu conhecimento em Jazz e improviso. Saiu da big band para formar a sua própria, mas essa formada apenas por mulheres, a Alami. Nesse ínterim, deu início a sua parceira com Gilles Peterson: seus primeiros trabalhos – o autoral Nueva Era (2015) e o disco de covers One Takes (2016) – foram lançados pela gravadora do produtor, a Brownswood Recordings. E o primeiro LP “de verdade” também é dessa parceria – Cubafonía, de 2017, é o resultado elegante e contagiante da afinação dessas influências, ora Mambo cubano ora Jazz clássico, por Daymé.

Zara McFarlane

Zara McFarlane é outro nome de respeito dentro do novo Jazz britânico. Ela, assim como Daymé, teve sua estreia impulsionada pela Brownswood Recordings de Gilles Peterson. De origem jamaicana, a cantora é craque em unir Reggae, Jazz, R&B, e um pouco de Folk. Seu álbum debut, Until Tomorrow (2011), é uma representação tão clara desse talento que lhe rendeu um MOBO Awards, premiação em reconhecimento à contribuição à música negra. Além da aptidão, Zara tem a formação teórica: é pós-graduada em Estudos do Jazz na escola de drama Guidhall. Antes disso, aos 14 anos, teve uma pequena carreira no show de talento do extinto canal britânico de televisão ITV. Cresceu ao som de Reggae e Blues, Soul, e sua música é o reflexo afinado disso. Os dois discos subsequentes são mergulhos ambiciosos em fontes diferentes: If You Know Her (2014) experimenta com Dub e Jazz espiritual e Arise (2017), sua co-produção com o baterista Moses Boyd, explora o Jazz britânico e os sons tradicionais da Jamaica. Em março deste ano, lançou uma faixa teaser de seu próximo trabalho: sua versão de “East Of The River Nile”, um clássico do célebre dubman Augustus Pablo, também jamaicano. Produzida pelo colega de gravadora Dennis Powell, a faixa dá um aperitivo de como será a nova imersão musical de Zara McFarlane.

The Comet Is Coming / Sons of Kemet

Os dois experimentos expoentes dentro da nova sonoridade do Jazz vindo da Inglaterra pertencem a mesma mente superlativa: Shabaka Hutchings, saxofonista e clarinetista nascido em Londres, mas criado no país natal de seus pais, Barbados. Voltou para a Inglaterra para se graduar formalmente como clarinetista, instrumento que conheceu aos 9 anos da idade e aprendeu a tocar ouvindo grandes nomes do Hip Hop, como Notorious B.I.G e Tupac, e do Crop Over, um gênero festivo como as marchinhas de Carnaval no Brasil. As parcerias musicais por onde tem desenhando sua carreira são como extensões naturais de seu talento. A primeira delas, o quarteto Sons of Kemet, faz belíssimo proveito da herança africana de seus integrantes e é um encontro entre o Jazz espiritual e os ritmos afro-caribenhos. O grupo está na ativa desde 2013 e tem três discos – o mais recente deles chamado Your Queen Is A Reptile (2019), foi nomeado para a premiação Mercury Prize e é uma compilação de hinos para mulheres negras históricas, como Harriet Tubman, Albertina Sisulu e Angela Davis.

Já o trio The Comet Is Coming, se envereda por outras vertentes sonoras desse mesmo caldeirão. Têm dois álbuns de estúdio de destaque: Channel The Spirits, de 2016 e Trust In The Lifeforce Of The Deep Mistery, de 2019. Aqui, a psicodelia cósmica e o Afrofuturismo se unem em uma fusão experimental e única de Free Jazz, Música Eletrônica, Funk e Afrobeat. Em entrevista ao jornal The Guardian, Hutchings disse que “o caminho para a descolonização da mente é levar em conta os mitos que a cercam” – e é através de sua música e todos seus desdobramentos que ele vai descolonizando sonoridades e moldando novos gêneros.

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