Festa Tempestade quer ver o que os espera lá

Equilibrando os momentos de festa e de tempestade da vida, duo paulistano lança disco de estreia que bebe de Bee Gees a Clube da Esquina

Loading

Fotos: Naira Mattia

Quem chegar ao disco Festa Tempestade encontrará harmonias vocais de produção cristalina envelopadas por uma mistura particular de referências que vão de Bee Gees e America a Cassiano, Clube da Esquina e Secos e Molhados, passando ainda por algo de Kings of Convenience. São inspirações que transbordam a música e preenchem também o contexto visual que acompanha a dupla homônima ao disco. Tudo parece que sempre esteve ali, mas é o produto recente de um longo processo interno de elaboração de identidades individuais e coletivas dos amigos de longa data Guilherme Tieppo e Zé Ferraz.

Ambos compõem desde cedo, são guitarristas de formação (apesar do disco não conter guitarras) e já tocaram outros projetos juntos e separados. Ferraz passou a ser vocalista do Gram desde a volta da banda em 2014 e Tieppo rodava junto com A Balsa. Além de bandas de colégio e outros projetos que sempre os mantiveram ativos, há cinco anos também chegaram a montar outra banda com amigos em que tentavam compor coletivamente a partir de sessões de filmes que assistiam juntos. Foi dessa época que saíram as primeiras faíscas consistentes que viriam a formar o duo Festa Tempestade no final de 2019 – que se consolidou pra valer durante a pandemia.

“Acho que foi um momento que clareou a vida de todo mundo num sentido de saber o que é essencial e o que é gordura. O que é realmente uma parada que é real e faz sentido”, descreve Ferraz. No final de 2020, os dois acabaram se contaminando ao mesmo tempo com o coronavirus e decidiram se isolar juntos no interior de São Paulo por 15 dias e formular a base conceitual do projeto. “‘Ar’ foi a primeira música que eu compus na pandemia e foi muito sobre eu achar que estava com Covid, achei inclusive que eu era o paciente zero. A Vigilância Sanitária me ligava todo dia porque realmente parecia que eu estava com Covid. E ‘Ar’ veio dessa questão de trazer ar, de estar com um esgotamento tão forte dentro de você que só precisa sair”, conta Tieppo.

Mas a impressão é que o isolamento apenas facilitou o entendimento de processos internos de ambos como compositores. “Eu fiquei me perguntando se caso não houvesse a pandemia, se a gente teria chegado nessa mesma parada e eu acho que sim. Porque chegou em um ponto de vida mesmo, que é o final dos 20 anos, em que você já passou por um monte de coisa”, analisa Ferraz. “Acho que é um processo natural do ser humano, de olhar para trás e falar ‘Porra, beleza, tô chegando nos 30, fiquei 10 anos aqui, trabalhando, tentando fazer coisas, me jogando, batendo cabeça, descobrindo quem eu sou, lapidando quem eu sou e a minha visão de mundo até chegar nos 30′”.

Tieppo completa: “Uma coisa muito clara que nos influenciou é o ritmo com que a gente leva a vida. De trabalho, de pressão e das coisas que a gente considera importantes, de como a gente associa o sucesso à felicidade e muitas das composições vêm dessa frustração com essa linha de pensamento.” Foi dessas reflexões também que veio o conceito de dualidade que acompanha o nome do projeto, conta Tieppo. “Foi esse momento de aceitação em que existem festas, existem tempestades e que a vida é isso e ela sempre vai ser isso e você tem que saber curtir as tempestades e a festa”.

Toda essa elaboração fica evidente na separação entre faixas mais introspectivas como “Ar”, “Ai Se Eu Pudesse”, “Daqui Pra Frente” e “Céu”, e as mais festivas, encabeçadas principalmente pelos singles “Vale” e “Mexe”. Essa última, segundo Ferraz, quando foi enviada por Tieppo, resgatou nele uma vontade de fazer música que talvez estivesse adormecida. Não à toa, a faixa retrata esse processo de revirar um passado inconsciente. “Cara, eu sentava na mesa sozinho, tomava uma garrafa inteira de vinho e ficava escrevendo coisas da minha vida, traumas, coisas que eu lembrava, coisas que estavam na minha cabeça. Escrevia páginas e páginas. Guardo isso até hoje”, relembra Tieppo. “E era muito doido porque eu estava ao mesmo tempo me descobrindo e vendo as coisas que eu fiz, o porquê de eu ter feito e se tinham alguma relação, tentando me aprofundar e chegando em inconclusões e conclusões também. Foi tudo muito doido, muito misturado. E aí veio ‘Mexe’, que fala desse momento de estar aprendendo, estar mudando, se transformando”.

“Uma coisa que nos influenciou é o ritmo com que a gente leva a vida. De trabalho, de pressão e do que a gente considera importante, de como a gente associa o sucesso à felicidade e muitas das composições vêm dessa frustração. Foi esse momento de aceitação em que existem festas e tempestades e que a vida é isso e ela sempre vai ser isso e você tem que saber curtir as duas” – Tieppo

Apesar das letras mais enigmáticas, o disco representa um momento de exposição inédito para o dois. “No final das contas, é uma hipérbole de uma parte nossa que a gente nunca conseguiu botar no mundo. Talvez a gente nunca tenha olhado tanto para dentro como a gente olhou no Festa Tempestade, mas ao mesmo tempo tivemos um resultado tão para fora como esse. Antes eu ficava tentando achar caminhos, tendências e fui me frustrando ao longo da vida porque acabava fazendo um trabalho que não era nem originalmente da minha essência e nem tinha relevância suficiente para surfar alguma onda do momento”, reflete Ferraz.

“No final das contas, [o disco] é uma hipérbole de uma parte nossa que a gente nunca conseguiu botar no mundo. Talvez a gente nunca tenha olhado tanto para dentro como a gente olhou no Festa Tempestade” – Ferraz

Somam-se às referências já citadas outros nomes das antigas, nacionais e internacionais, como o duo Hall & Oates, Carole King, Marcos Valle e Gilberto Gil. Logo depois da finalização do disco, a dupla ainda ficou contente de olhar outras produções contemporâneas e se enxergar podendo fazer parte de um movimento maior de artistas buscando nova identidade a partir de resgates do passado. “Adoro ouvir Tim Bernardes, Bruno Berle, Bala Desejo, curto ver essa galera que está fazendo a música de hoje, que tem mais ou menos a minha idade, e que está construindo um lugar em que eu quero estar inserido”, diz Ferraz.

Em um pequeno livro que todo estudante que passou perto das ciências humanas deve ter lido, o sociólogo britânico-jamaicano Stuart Hall, refletindo sobre a formação de nossas identidades na pós-modernidade, argumenta que “dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas.” Festa Tempestade parece ser a manifestação dessa percepção em Guilherme Tieppo e Zé Ferraz. “Eu encontrei muito na música uma identidade. Eu já era o moleque que tocava violão e cantava e isso me ajudou em todas as esferas da minha vida. A me socializar melhor e a entender que talvez minha vida fosse um pouco mais especial do que eu achava que ela fosse e isso me deu uma confiança fudida, me deu um amor por fazer as coisas e por estar vivo”, desabafa Ferraz. O duo parece já ter um projeto de pelo menos três discos em processo avançado de composição, fica a curiosidade em sabermos para qual direção apontarão os próximos ventos.

Loading

Autor:

Nerd de música e fundador do Monkeybuzz.