Gabriel Milliet e as tantas formas de ser um

Entre Amsterdã e São Paulo, o compositor traz, na estreia “UM”, a introspecção do folk-de-nylon para refletir sobre a noção de identidade

Loading

Fotos: Biel Basile

O desenrolar do autoconhecimento é uma das concepções de UM, primeiro disco solo de Gabriel Milliet, lançado em setembro. “Acho que essa pretensão estava desde o começo, de que certa solidão, que está na poesia, estivesse presente na sensação de escuta, como estar entrando no quarto de quem fez”, reflete o artista. O exercício introspectivo às vezes se resume a elementos simples, como meramente ser UM — “cantautor, brasileiro, paulistano, solitário”. Partindo de sua experiência como estrangeiro durante cinco anos em Amsterdã, Gabriel traz no álbum um paulistano encontrando sua identidade, refletindo sobre o imaginário cosmopolita da sua cidade. “Estando lá, de frente com: ‘Você é brasileiro!’, em algum lugar eu sentia que grande parte da minha identidade tinha a ver com o fato de que eu sou de São Paulo”.

Na expressão desses sentimentos, o músico carrega uma performance na qual a proposta do indivíduo em descobrimento abraça as vibrações do violão de nylon. “Eu acho que tive uma coisa de perceber o quanto o violão de nylon é uma coisa muito forte da nossa identidade sonora, aqui do Brasil. Eu percebi isso durante esses anos na Holanda. Pra gente, é natural, todo mundo toca violão de nylon, tem em qualquer lugar. A partir disso eu senti uma necessidade de me relacionar mais com a minha própria cultura.”, conta. Durante o processo de produção autônoma, Gabriel contou com a colaboração de amigos de longa data, como João Barisbe (ex-parceiro de banda na Grand Bazaar), coautor em duas músicas, e Biel Basile (baterista d’O Terno), coprodutor em quatro faixas. Nos 37 minutos ao longo das nove músicas, a relação das canções apresenta um som que em cordas, sopros e vozes abre um prisma singular de folk urbano minimalista.

“Sinto que muitas das melodias, harmonias ou citações não são voltadas àquele estereótipo da música brasileira. Como se eu dissesse: sou esse cara aqui e me relaciono com esse universo estético para além dessa canção mais imediata do Brasil. Mas parto de uma perspectiva – sou daqui, sou de São Paulo, toco violão de nylon”

A trajetória de Gabriel Milliet na música pode parecer breve se resumida a trabalhos solos, mas na verdade foi o que o levou para os Países Baixos em 2016, onde estudou Composição para Cinema no Conservatorium van Amsterdam. Junto das realizações, como trilhas sonoras com o compositor Beto Villares, veio também um estranhamento às suas origens, resultante da distância de 9.800 km entre a capital holandesa e sua cidade natal. “Eu acho que esse é o terreno existencial afetivo da onde o disco nasceu. Tem um lado muito idealizado e afetivo que tem a ver com a minha identificação com a cidade, mas, claro, São Paulo não é única”, lembra Milliet.

No meio da percepção pessoal em construção, a inspiração do compositor tomou forma nas gravações caseiras em fita, captadas entre 2019 e 2021, ainda na Europa. “Gravei todas as canções num gravador de fita cassete (voz e violão) depois digitalizei e aí sim fiz algumas coberturas. Mas não teve isso de gravar as vozes ou o violão separado e depois juntar. Foi voz e violão sempre”. Dentre os muitos percursos do disco, o distanciamento foi um meio para que essa aparente indefinição de identidade se transformasse em música evidentemente folk, com traços setentistas da estética norte-americana. Assim, singer-songwriters clássicos como Bob Dylan e Paul Simon são aludidos no som de UM junto a referências mais atuais como Big Red Machine (de Justin Vernon e Aaron Dessner) e Big Thief (de Adrienne Lenker).

A sonoridade multifacetada acusticamente encontra o elemento mínimo da lírica, que parte da autoafirmação de Gabriel em se entender como um. Isto é: não “O” um, como o primeiro de todos, mas aquele momentaneamente distante de todos. “Acho válido lembrar que apesar de ser meio biográfico, é arte. Sou eu, mas não só eu ali. É um personagem solitário, olhando para o que há de individual nesse todo”. Assim, o artigo indefinido sintetiza não só o título do álbum, como a forma e o conteúdo. Porém, na busca de respostas sobre si mesmo em período pandêmico, Gabriel Milliet não se viu como o unus conceitual, desvinculado de qualquer coisa, mas, sim, como fruto do movimento de lugares e pessoas diversas que formam São Paulo e, consequentemente, suas origens. “E é claro que rolou uma confusão de identidade. A gente é inserido num contexto de que somos brasileiros, com pluralidade de tudo. E em São Paulo a gente fica assim, tentando entender como é isso de ser uma cidade cosmopolita, que fala com o mundo, mas também tem sua coisa provinciana”.

“Identifico um lado meio cronista no que escrevo, de influências como Maurício Pereira, da vanguarda paulista também. Junto tem essa coisa de cultura colonizada que eu acho que eu tive. Por exemplo: crescer ouvindo Beatles, achando que eu fazia parte daquilo. Lá [na Europa], aprendi que a gente não é ocidental. Me deparei com isso, de que não somos vistos como do mesmo lugar”

As experiências de ser um músico brasileiro na Europa formaram a identidade de UM, que por sua vez é peça fundamental na formação de identidade de Milliet. Nessa tabelinha de formação de um álbum-nove músicas, o futebol foi um dos poucos estereótipos que ficaram de fora da ocorrente generalização do público holandês, que viu as primeiras performances ao vivo do álbum (à época, ainda não lançado). “É engraçado isso porque olha, quando eu me apresentava lá, podia ser uma música como Silêncio Brutal, bem folk pop, mas quando eu abria minha boca e cantava em português os comentários eram algo como: — Nossa, parece João Gilberto! — É curioso ver que eles olham de tão longe, que aquela canção é parecida com João Gilberto para eles”.

“Acho que essa pretensão estava desde o começo, de que certa solidão, que está na poesia, estivesse presente na sensação de escuta, como estar entrando no quarto de quem fez”

Vontade de voltar pra casa

Entre os destaques do álbum, o par “Silêncio Brutal” e Da Paz Inevitável” (primeira e última, respectivamente) são algumas das mais definidoras do caráter resplandecente do disco. Na primeira, Gabriel trabalha em cima da sutileza, tocando além do onipresente violão, baixo e sintetizador. Acompanhando-o em igual ornamentação instrumental, estão o pianista holandês Jarno van Es e Biel Basile na bateria. Juntos, nos pouco mais de três minutos, os músicos apontam para uma ambientação que chega a reverberar Andorra (2004), de Caribou. Enquanto na letra, o panorama traz o contraste entre o caos e o distanciamento de São Paulo – vida normal” os ilha com esse “silêncio brutal. Já em Da Paz Inevitável, Milliet encontra Teresa Costa, que, além de tocar flauta, se junta a Biel Basile e às cantoras Sanem Kalfa e Fuensanta, nas vozes — as duas últimas são respectivamente naturais da Turquia e México e tiveram contato com Gabriel por meio da multicultural cena independente de Amsterdã. Na canção que fecha o disco, Milliet encerra com uma deixa de realização, reverenciando a valorização do presente como meio de alcançar a paz momentânea, mas ainda assim paz.  “A primeira talvez seja a menos poética, a mais literal. Ela levanta esse problema de uma solidão, de uma vontade de voltar para casa. E a última para mim é quase um posfácio do disco, em que eu fui refletindo sobre as ressonâncias emocionais que eu senti ao fazer as canções, ligando os pontos ao longo do disco”.

Ao longo dos quase 40 minutos de música, a veia cancioneira do trabalho salta tanto no preciosismo técnico de composição popular quanto no storytelling que constrói o pano de fundo confessional das letras. No entremeio do repertório, o som elementar expande as untadas cordas de nylon do violão paulistano de Gabriel, que puxa para o intercâmbio cultural com o indie folk norte-americano dos anos 2000/2010 de Sufjan Stevens e Fleet Foxes. Assim, músicas como O Sol e o Mar trazem uma aura veraneia para envolver letras tocantes à conexão corpo e ambiente como fator transformador.

“Apesar de ser meio biográfico, é arte. Sou eu, mas não só eu ali. É um personagem solitário, olhando para o que há de individual nesse todo”

Eu não vou parar de cantar

Saindo do quarto frio de Amsterdã, Gabriel levou suas fitas para o sol de Ilhabela (litoral norte de São Paulo) para trabalhar na produção do álbum junto de seu xará, que já acompanhava o desenvolvimento do disco. Nessa etapa, ele e Biel Basile abriram o escopo das músicas em possibilidades de arranjos, esmiuçados no estúdio caseiro de Basile. “O Bielzinho me acompanhou desde o começo, quando eu mandava as demos para ele. Acho que uma grande influência que ele teve foi de tirar coisas, já que cheguei com músicas que tinham mais elementos. Eu gosto muito do critério, da escuta dele nesse sentido, de buscar o essencial de cada canção, sem firula.”, comenta Gabriel. Das ironias que o processo criativo apresenta, Milliet viu na escuta de uma segunda pessoa como forma de lapidar o seu UM. Músicas como Rua Vitória cristalizaram sua essência homogênea nessa troca dos dois produtores. “Em cada estrofe eu vim com uma flauta assim, um teclado assado, aí o Biel chegou e falou: — Não, não, não. Isso é uma canção de você contando uma história. É uma banda simples com você cantando”.

Além de soltar um trabalho solo no mundo, a estreia permitiu que Gabriel entendesse o sentido de fazer música mesmo quando sua cidade, país e identidade parecem nebulosos, incertos. Se no final do processo a realização do trabalho foi de otimismo, a gênese foi de confusa desesperança. “Eu saí do Brasil em 2016, logo depois do golpe, e tinha um clima de não saber o que ia acontecer, mas não parecia muito grave. Eu virei adulto durante os governos Lula, eu tinha uma visão muito positiva, de que as coisas se resolvem logo, que era uma fase a se passar. Com a pandemia veio um choque nesse sentido, de que é outro momento mesmo”.

Por mais que o álbum tenha ganhado vida – e saudades e questionamentos, aliviados –,Gabriel não coloca ponto final no ciclo. “Acho que o Gabriel do passado ficaria muito feliz que o Gabriel do presente lançou o disco. Finalizou… Quer dizer, não finaliza, porque é todo um processo em andamento”. Ao comentar sobre a música Futuro, o artista conecta as aspirações seminais de seu recente trabalho com sua noção atual de pátria e origem. “Eu troquei, não canto mais ‘país’, agora canto ‘raiz’, porque acho que me desapeguei da ideia mais nacional. Até porque, a música fala da minha experiência, de mudança de país, mas também de se distanciar e voltar para sua raiz. Eu acho que o Gabriel do presente está tentando entender qual é essa raiz.”

Em paralelo à desilusão do centro paulistano da Rua Vitória, Milliet encontrou o entusiasmo intrínseco de ser e fazer sua obra. “Nesse contexto, as coisas perdem o sentido de serem feitas, qualquer coisa perde o sentido na urgência. E nessa canção eu tentei encontrar o meu sentido nisso, por isso canto: — Eu não vou parar de cantar”.

Loading

Autor: