Ianaê Régia e as reações químicas de “AFROGLOW”

Um papo profundo sobre ambição, exaustão e os processos criativos que levaram ao primeiro álbum da artista gaúcha

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Fotos: Afrovulto

A artista gaúcha Ianaê Régia, 25, nasceu no município de Arroio do Tigre, localizado na região Centro-Serra do estado, a pouco mais de 20 km de Gramado – que você pode já ter ouvido falar por seu destaque na rota turística do país. De lá, guarda lembranças ruins. “Eu não sabia o que era racismo com sete anos de idade. Mas sabia o que era me sentir desconfortável em um espaço em que ficavam olhando para mim, pra minha mãe, que é uma mulher indígena, e pro meu pai, um homem negro. Era terrível”, resume.

O nome “Arroio do Tigre” surge de um causo interessante que aconteceu em meados do século 19 naquele território: o aparecimento de um animal selvagem que perturbou a paz local ao estraçalhar vários animais domésticos. Um grupo de homens decidiu resolver a situação preparando uma tocaia pra abatê-lo. O animal era uma onça, mas eles acharam que era um tigre. E o equívoco vingou.

Equívocos que distorcem ou encobrem realidades parecem sustentar a história oficial exportada pelo Rio Grande do Sul. A história de que o chimarrão é do gaúcho hétero branco tradicionalista, e não do povo indígena Guarani que habitava o território há séculos. A imagem de um estado à moda europeia povoado apenas por pessoas brancas e loiras de olhos claros, e não um estado que invisibiliza suas populações negras e indígenas.

Hoje em dia, cada vez mais, onças fogem da tocaia e fazem questão de dizer que não são tigres coisa nenhuma. Essa autoafirmação se dá de diversas formas – e a arte uma das mais latentes. No caso de Ianaê, pelo disco de estreia AFROGLOW, lançado em setembro deste ano. O registro tem o R&B alternativo como fio condutor e navega por estilos como neo soul, neo jazz, trap e blues, conduzidos pela cantora e compositora ao lado da produtora musical Bianca Rhoden. O projeto foi apoiado pelo edital da Natura Musical via lei estadual de incentivo à cultura do RS (Pró-Cultura).

O abre-alas com “Umbigo” – entre as grandes faixas de abertura do ano – soa como um aviso, ou justamente uma autoafirmação. “Rotina”, um soltar de ombros que contrasta com “Diss”, track ideal pra cantar apontando pro alto. “Meio do Céu em Leão”, um manifesto em nome da plenitude, seguido da delicada “Ponto Sensível”. E o desabar estrondoso de “Lina e o Oceano” que dá a senha para a agridoce “Colore”.

São menos de 30 minutos de duração que demonstram o refinamento e capacidade de síntese de Ianaê enquanto diretora criativa de um projeto marcado pela sensibilidade. Uma jornada em busca do autocuidado enquanto ferramenta de militância para si e sua comunidade. A ambiguidade desse processo ancestral e subjetivo já se expressa na capa, na qual a artista nos encara na presença de um espelho, em uma composição que pende entre a vulnerabilidade e o empoderamento.

Para vencer os bloqueios criativos de um material tão visceral, Ianaê conta no texto de apresentação do álbum que passou a sair de casa com “três itens, no mínimo: caneta, caderninho e um celular com gravador”. Foi equipada exatamente com esses três que saí de casa pra encontrá-la e bater o papo que você lê agora.

Teu nome artístico é o teu nome de certidão. “Ianaê Régia” soa mesmo como nome de artista. Qual é a história por trás da escolha dele?

[Risos]. Minha mãe conta que o meu nome era para ser Débora. Mas que meu pai tinha um primo que tinha ou uma amiga ou outra parente que se chamava Ianaê. Ele gravou esse nome e sugeriu pra minha mãe.

Mas depois de me registrar no cartório, ele falou pra minha mãe que só “Ianaê tava muito fraco” e que colocou “Ianaê Régia, de “Vitória-régia” [risos]. Ele uma vez falou que eu seria famosa por causa do meu nome, e eu sempre me lembro disso.

Bom, tu  também tem uma trajetória migratória: nasceu em Arroio do Tigre e veio pra Porto Alegre. Cresceu na zona norte e agora mora no centro. Como esses deslocamentos interior>capital, periferia>centro afetam tua produção artística?

Eu morava na “Faixa de Gaza”, que é como chamam a rua que divide dois bairros [em alusão à violência armada/guerra de facção naquele território] da zona norte: o [Jardim Dona] Leopoldina e o Rubem Berta. Eu cresci com muita influência da cultura preta, e me sentia pertencente naquele espaço.

Sinto que a rua onde moro aqui no Centro Histórico me passa uma sensação de núcleo. Foi quando vim pra cá que comecei a estudar música e trabalhar com composição. Então, sinto que, como boa geminiana, trocar de local me faz aflorar. Embora esse período tenha sido atravessado pela melancolia e a solidão da pandemia [de Covid-19].

Pois é, te ouvir falar em melancolia me fez lembrar do texto de apresentação de AFROGLOW, em que tu diz que o projeto surge de um momento de profunda tristeza. E isso contrasta com o título e a identidade visual do álbum. No seu momento atual de vida, como o conceito de AFROGLOW tem reverberado?

Essa pergunta é muito boa. Eu gosto desse jogo entre contrários. A gente coloca muito a tristeza e a alegria em lugares opostos, mas quem sabe elas sejam complementares? AFROGLOW vem desse lugar. Toda a vez que consigo sair de casa pra patinar, eu encontro o afroglow, tá ligado? Toda vez que consigo sair de casa pra comprar alguma coisa pra comer, eu vivo o afroglow.

Eu passo por momentos de profunda tristeza, em que eu me sinto sozinha, incapaz, insuficiente. Só que no momento em que consigo aceitar a ajuda de alguém, aceitar afeto ou dar passos fora do meu quarto, eu sinto o afroglow. Não é só um título bonito. Ele é uma realidade para mim. Uma vivência. O meu brilho é encontrado a partir do momento em que consigo compreender quais são minhas emoções negativas, o entendimento de qual é o meu comportamento e como mudá-lo. O afroglow passa por esses lugares de tristeza, de luto. Mas também pela alegria, confiança e brilho. É tudo genuíno.

O afroglow é como um catalisador?

É. É uma reação química [risos].

“A gente coloca muito a tristeza e a alegria em lugares opostos, mas quem sabe elas sejam complementares? AFROGLOW vem desse lugar”

O ímpeto do projeto nasce a partir da abertura do edital Natura Musical de 2022. O que veio primeiro: o conceito ou as composições? E como essa ordem impactou o processo criativo?

Da decisão até a inscrição no edital foram duas semanas. O conceito foi se formando a partir desse tempo. Percebi que precisava criar um ciclo [dentro dele], e que esse ciclo se tratava de nascimento e renascimento. Porque eu não queria falar de morte… isso é uma coisa que a gente, comunidade preta, vive todo o tempo. E eu tô exausta disso.

Na época, a única música que eu tinha era “Umbigo”, uma composição que nem é minha. Mas eu sabia o que queria falar, então, pensei por tópicos. Queria falar sobre o processo de nascer, queria falar sobre esse cotidiano, sobre como é para mim, como mulher preta, viver esse cotidiano. E aí eu precisava sentar e canetar. Pensei sobre bem-estar, fiz “Rotina”. Aí vem o momento sassy, bad bitch, e fiz “Diss”. E decidi finalizar falando sobre colorismo com “Colore”. Foi bem metódico – tenho “tudo” na casa de Virgem [no mapa astral].

Ianaê, ouvir “Colore”, a faixa de encerramento, e emendar em “Umbigo”, a de abertura, deixa evidente um fluxo circular da obra. Entretanto, sinto o percurso de AFROGLOW super sinuoso. “Meio do Céu em Leão” é o apogeu da plenitude, mas está no meio do caminho. E é uma surpresa ter o desabar de “Lina e o Oceano” depois disso. Como a tracklist conduz a narrativa do disco?

O álbum é dividido em duas partes: passa do “eu” pro “nós”. A virada de chave é “Ponto Sensível”, que fala sobre troca. “Meio do Céu em Leão” está no meio por eu perceber muitos contrastes acontecendo. Se eu colocasse “Diss” ou “Ponto Sensível” no lugar, não ia dar liga.

“Meio do Céu em Leão” é esse lugar em que falo sem toda a revolta que eu tava sentindo em “Diss”, sem toda a preocupação que eu tava sentindo em “Rotina”… É um lugar de segurança, de plenitude, de autoconfiança; de consciência de quem eu sou, do meu legado, de onde eu quero chegar, percebendo também as pessoas que estão ao meu redor.

O encaixe com “Ponto Sensível” na sequência não é só pela sonoridade. Se trata também desse lugar de códigos, entrelinhas. Ela fala sobre amor romântico, e não tem forma melhor de amar do que em plenitude. Mas “Ponto Sensível” também trata de violência policial, do desejo de querer proteger um homem preto, cuidar dele, afagar a sua pele para que não mirem nela. “Lina e o Oceano” vem depois porque ter essa plenitude, esse lugar de cuidado, também pode desgastar. Essa é uma música que eu não ouço. Eu só consigo reproduzir ela, e segurando o choro. Escrevi ela em uma canetada só e me orgulho muito porque ela carrega aquele R&B/blues meio sangrento.

E apesar de você se orgulhar, você não consegue ouvi-la. E eu quero te perguntar justamente sobre uma das principais marcas dessa obra: a sensibilidade. Como foi o processo de colocar tanta sensibilidade na ponta da caneta? É algo que te exigiu, que te custou? 

Talvez tenha tido um custo… Eu tô lacrimejando agora. Um custo pelo que veio depois. Falar de saúde mental, falar sobre uma vivência pessoal, e também por um viés político, não é algo que abre muitas portas para ti. O capitalismo quer que a gente esteja ali no Instagram fingindo que a vida é uma perfeição. E não era sobre isso, sobre uma prática falsa de autocuidado, que eu queria falar. Eu queria falar sobre a minha realidade. O que mais me custou foi o quanto eu me dediquei. Estar nesse lugar de não querer ser o estereótipo de mulher guerreira e, ao mesmo tempo, acabar sendo a mulher guerreira que é cantora, compositora, que faz os arranjos, que tá junto de todas as equipes criativas para direcionar, me custou. Ser sensível o suficiente para perceber o que eu queria e conseguir comunicar direito para minha equipe, enquanto diretora criativa, também. Essa sensibilidade pra conversar com uma equipe é muito difícil, são muitas pessoas. E conversar justamente sobre tópicos muito sensíveis.

Em relação ao público, foi bom. Acho que o mais conflituoso foi eu comigo mesma. Me coloquei num lugar que eu não precisava, entrei em burnout. E ao mesmo tempo sentia que precisava fazer aquele sacrifício porque o racismo espera que eu faça isso muitas vezes, que as mulheres façam isso. Falei sobre questões sensíveis sobre mim em um disco que vai ficar para sempre por aí, e tu nunca sabe até onde as pessoas de fato respeitam o que tu faz ou só fantasiam.

Sim, é complicado. Sabe que também me pega muito esse eixo “ambição” x “exaustão” que permeia o disco. O limite e o corre, o esgotamento e a emancipação. Você canta que tem “ambição demais para se ‘acomodar’”. Você tem conseguido nutrir sua ambição sem abrir mão do descanso?

Hoje em dia eu tô conseguindo fazer isso. Quando a tour e as atividades de AFROGLOW deram uma baixada, eu decidi: agora a mãe vai descansar. Eu não quero saber de nada. Eu tô conseguindo ficar em casa tranquila, não almoçar na frente do computador. O que mais tem me ajudado na questão da ambição é desfrutar de coisas que mexem com a minha criança interior, porque esse lugar da exaustão e da ambição é muito da adultez da vida. E eu quero encontrar algumas coisas que me façam ficar meio besta. Hoje em dia eu ando de patins porque me faz muito bem, o senso de comunidade e apoio ao estar com as gurias do patins é muito bom.  Na minha adolescência eu vivi um inferno por conta da saúde mental. Eu tenho 25 anos hoje em dia, mas quero aproveitar os meus 17, meus sete. Eu nunca tinha acessado a brincadeira e a beleza disso. Esse lugar faz eu me sentir completa.

“Percebi que precisava criar um ciclo e que esse ciclo se tratava de nascimento e renascimento. Porque eu não queria falar de morte… Isso é uma coisa que a gente, comunidade preta, vive todo o tempo. E eu tô exausta disso”

Que lindo isso! Ianaê, os arranjos e as melodias de AFROGLOW são muito refinados e fazem do álbum uma super estreia. Você navega com tranquilidade pelo neo jazz, neo soul, R&B e trap. Como se deu a construção da tua identidade musical enquanto artista? E como tu analisa o mercado brasileiro para uma artista que se propõe a esses gêneros?

Eu sempre gostei muito de criar melodias. A minha escola é o jazz e o blues, mas minha construção como vocalista também vem de uma mistura absurda, porque eu fazia shows em bares e cantava [ritmos como] cúmbia, candombe. Isso vai abrindo o teu leque de experiências e repertório. Quando descobri que eu era mezzo-soprano, segui nessa mistura toda, e por isso escolhi o R&B alternativo como meu gênero.

Me chateia perceber que os artistas que eu gosto não estão no mainstream, no máximo, no midstream. E que se eu me esforçar, vou parar no máximo no midstream. Mas esse é o lugar que o capitalismo vai me colocar agora, não significa que o meu trabalho não tem mérito. Nunca esperei que AFROGLOW fosse estourar. Não é um discurso novo. Mas não é batido, ele é atemporal, tá ligado? Eu tô aqui para colaborar com muita gente que já tá falando sobre isso.

Ianaê, em “Meio do Céu em Leão” você diz: “Valeu a pena tentar, mesmo com medo/ Me pergunta em cinco anos”. O que é que tu projeta pra tua carreira daqui a cinco anos?

Cara, daqui a cinco anos… eu espero já ter feito uma turnê dentro e fora do país. Eu quero muito fazer isso, acho que é com o que eu mais sonho. E também lançar um novo álbum, continuar escrevendo.

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ARTISTA: Ianaê Régia

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