Iara Rennó indo adiante, radiante

“Orí Okàn”, novo disco da artista paulistana, é um desdobramento do prestigiado “Oríkì”(2022) e celebra sua fé e sua arte em companhia de nomes como Moreno Veloso, Zé Manoel, Karina Buhr e Dona Cici de Oxalá

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Fotos: Jessica Lemos/Sillas H

Iara Rennó apresentou em primeira mão as canções do seu nono álbum no palco do Itaú Cultural, em São Paulo, em maio deste ano. Intitulado Orí Okàn (2023), o disco de aura minimalista é o sucessor – e um desdobramento – de Oríkì (2022), indicado ao Grammy Latino em 2022, e de suas 11 faixas, 10 são de autoria de Iara. No show com ingressos esgotados, a artista reuniu os dois projetos em um só, dando ali um indício do que pode acontecer futuramente em suas apresentações. “A proposta inicial foi levar os dois trabalhos concomitantemente. A gente pode fazer o show do Oríkì ou do Orí Okàn, ou a gente pode fazer o show dos dois. Cada um tem a sua linguagem musical, tem a sua formação de banda, mas a ideia é prolongar a vida destes dois trabalhos que se comunicam e se entrelaçam”.

Em iorubá, Orí Okàn significa cabeça-coração, reafirmando o íntimo vínculo da artista com o candomblé, universo cultural e religioso que ela vive há mais de 20 anos. No projeto, a interpretação de Rennó coloca sua personalidade em marcante contato com o terreiro, em canções guiadas, majoritariamente, por violão e tambores. Partindo do zero para construir o novo álbum, a paulistana superou adversidades para a conclusão da empreitada – como, por exemplo, o curto prazo para entregar o disco, viabilizado pelo edital do ProAC. “Enquanto com o Oríki eu tive 13 anos de maturação, com o Orí Okàn foi ao contrário. Eu tinha colocado os dois discos juntos no mesmo projeto do ProAC, porém eu imaginei que o Oríki seria muito mais rápido e fácil, mas não foi. É complexo quando se trata de um mercado independente, porque o tempo de lançamento, a energia que vai para você fazer tudo, desde todo o material visual requerido hoje e toda a estratégia de divulgação. O disco ainda foi indicado ao Grammy Latino neste tempo, então foi um grande desafio mudar o foco da minha cabeça para sair de uma produção e mergulhar em outra”, conta.

Lançado pelo selo dobra discos com distribuição da Altafonte Brasil, Orí Okàn – gravado entre as cidades de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo – abre com “Iemanjá”, composição de Serena Assumpção (1977-2016) presente no álbum póstumo Ascensão (2016). Na faixa, a artista saúda com os vocais suaves a mãe das águas, enquanto toca piano e violão, e constrói uma ponte que se interliga com o trabalho da amiga. Na sequência, abre espaço para os versos “Morrer e renascer para ir adiante / Radiante se revelar / Eu vim saudar o meu orixá”, apresentados na canção “Orí Axé”, que conta com o coro do Trio Negresko Sis, formado por Anelis Assumpção, Céu e Thalma de Freitas.

“É tanta coisa que eu vejo, que preciso fazer algo com isso. Preciso fazer alguma coisa com a minha experiência no mundo. Compor vem disso: do que eu quero dizer, sobre o que quero falar, o que quero comunicar para as pessoas. O que eu preciso botar para fora dos meus processos pessoais, sociais, psíquicos, emocionais. Ser artista é buscar se expressar através de linguagens”

Com mais 400 composições de sua autoria, a prolífica artista afirma que a motivação para escrever é a sua inquietude e a necessidade de se expressar pelo mundo: “É tanta coisa que eu vejo, que preciso fazer algo com isso. Preciso fazer alguma coisa com a minha experiência no mundo e preciso me expressar de alguma forma. Compor vem disso: do que eu quero dizer, sobre o que quero falar; e como me posicionar, o que quero comunicar para as pessoas. O que eu preciso botar para fora dos meus processos pessoais, sociais, psíquicos, emocionais. Ser artista é buscar se expressar através de linguagens”.

Iara conta que conseguiu uma boa entrega por parte das plataformas digitais, mesmo dentro de um mercado independente, e reluta para não ser colocada dentro de uma caixinha: “Eu acho que às vezes pode ser reducionista quando me relegam a um nicho, sendo que esta temática [fé e religião] está presente há muito tempo na música brasileira. Eu estou falando de orixás, da minha fé, mas paralelamente a isso, é música brasileira. Este disco traz o violão como foco e o ritmo que esse violão imprime e o diálogo que se tem com a percussão quando ela aparece… Isso é música brasileira”.

Com direção artística e musical da própria Iara, o disco traz participações expressivas e de personalidades que já circulavam no imaginário e na rotina de fé da artista, como, por exemplo, Moreno Veloso, Karina Buhr e Zé Manoel: “Meu convite para Moreno surgiu porque nós temos uma amizade de muitos anos e nós já fomos a várias festas de terreiros juntos, compartilhamos desta experiência, além da parceria musical que já vem de outros álbuns. O Zé Manoel foi uma pessoa que eu ainda não tinha me aproximado artisticamente, porém fazia muito sentido para mim quando eu pensei na música ‘Oluayê’. Eu vi que tinha que ter um piano e logo pensei nele, porque é um piano que tem uma simplicidade, porém também com profundidade. E igualmente porque tem músicas do repertório dele em que ele já canta para Oluayê, fez todo o sentido”, relembra.

Tiganá Santana, Anelis Assumpção, Maria Beraldo e Sebastian Notini assinam a produção em faixas pontuais, e instrumentistas tarimbados como Gabi Guedes (percussão), o moçambicano Otis Selimane (mbira), a baiana Aline Falcão (teclados e clarinetes) e a carioca Aline Gonçalves (clarinete) também colaboram no projeto. Além de Iara, Luiza Brina contribuiu nos arranjos.

Orí Okàn, após pouco mais de 38 minutos, finaliza com um belo áudio de Dona Cici de Oxalá, referência na cultura afro religiosa, que conhece Iara desde 2009, quando a artista passou a frequentar o terreiro Ilê Axé Opô Aganju, em Lauro de Freitas (BA). Desde então, Cici passou a ser tia de santo de Iara e acompanhou o projeto de 13 anos de Oríkì e seu desdobramento em um projeto fonográfico duplo. O áudio foi gravado sem pretensão durante as filmagens de um clipe (ainda sem previsão de lançamento) e, a princípio, nem entraria no registro – mas é com a doce e singular voz de Cici que a obra é arrematada de forma sucinta e coesa, sob o olhar de uma pessoa que está no projeto desde o início, conduzindo Iara dentro e fora dos terreiros.

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ARTISTA: Iara Rennó