Intensidade e delicadeza com Carla Boregas

Em meio ao minimalismo do drone, “Pena ao Mar”, novo disco solo da integrante do Rakta, medita sobre o som em seu fundamento vibratório – da calmaria à violência

Loading

Fotos: Alex Batista

Após anos explorando nuances em torno do pós-punk com a banda Rakta, a experimentadora Carla Boregas imergiu em um ambiente sonoro diferente. “Eu queria pensar no contraste entre sutileza e intensidade. Como encontrar na intensidade ou nas coisas que são mais densas alguma forma de delicadeza?”, explica ela, em conversa por videochamada. De 2020 até então, Carla lançou três álbuns: Linha d’Água (2020) e Grande Massa D’Água (2022), ambos em parceria com o percussionista e artista sonoro M. Takara, e o disco solo Pena ao Mar (2023). Nos três, ela trabalha a partir de formas musicais longas e meditativas. Mas, em Pena ao Mar, investe no minimalismo do drone enfatizando sons sustentados ou cíclicos, produzidos por pedais de efeitos ou modulações eletrônicas.

Os títulos dos três álbuns remetem à água e ao oceano. E ainda que isso não tenha sido premeditado ou definido como uma temática, Carla reconhece que a água está presente em boa parte dos seus trabalhos recentes. “Me impacta muito estar perto da água, sabe? É um lugar que eu sinto como uma casa. Tem tanta coisa que eu acho que a água desperta,  principalmente a água do mar, que isso acaba me influenciando. Tanto o mar quanto o cérebro acho que são coisas que nós enquanto humanos ainda conhecemos pouco”, reflete.

As canções praieiras de Dorival Caymmi são talvez os retratos mais vívidos e profundos dos contrastes proporcionados pelo mar — um horizonte infinito de possibilidades, um manto sagrado, mas também um terreno hostil e violento, rodeado por mistérios. O mar da brisa que acaricia, mas também da onda que derruba. Carla diz que Caymmi é um de seus músicos favoritos e essa visão acerca do mar também permeia os seus trabalhos, que não evocam nenhum ideal idílico, mas sim a ambiguidade e uma tensão misteriosa.

Em Pena ao Mar, o som conjura a beleza lúgubre amarrada a uma melancolia luminosa. “É até engraçado a gente falar em pena como algo leve. Tem a pena no sentido de penalidade, uma pena de morte. Uma pena então pra mim é a dualidade dessa palavra também. Pena ao Mar parece um nome bonito, mas na minha também poderia ser trágico. Tem o lugar de fascínio e tragédia”, conta a artista. Algumas notícias reais também a levaram a esse título. Como é o caso da jovem família que morreu após uma falésia desabar na praia de Pipa, no Rio Grande do Norte, ou ainda a história do casal que estava sob pena de morte por construir uma casa no mar da Tailândia.

“Queria pensar no contraste entre sutileza e intensidade. Como encontrar na intensidade ou nas coisas que são mais densas alguma forma de delicadeza?”

Como a música pode exprimir a atração por essa zona cinzenta de incerteza, entre a beleza e a catástrofe? O ponto forte de Pena ao Mar está precisamente em afastar-se da ideia propriamente musical para relacionar-se com o som em seu princípio material: a vibração. As faixas do álbum movem-se muitas vezes pelas frequências agudas, em uma artesania sônica cuidadosamente elaborada para fazer vibrar o espaço e o corpo — como se pode notar nas oscilações de “Grafia do Invisível” e “Suprime o Exterior”. O som se torna uma espécie de memória virtual de um ponto comum entre ondas sonoras e ondas do mar.

“Por mais que tenha sido um disco que foi feito num espaço pequeno, que era meu quarto, me interessa muito essa coisa de como o som faz as coisas vibrarem”, conta Carla, ressaltando que quando começou a tocar baixo estava sempre em busca de “entender ou sentir como o espectro de frequência trabalha”. “É quase como se eu estivesse escrevendo com alguma coisa invisível. Para mim é super interessante quando o som faz ressoar coisas do espaço. É parte do que eu mais gosto de tocar ao vivo. É quase como se eu tivesse tentando controlar uma coisa que não tem muito controle”.

“Me impacta muito estar perto da água, sabe? É um lugar que sinto como uma casa. Tem tanta coisa que a água desperta, principalmente a água do mar, que isso acaba me influenciando. Tanto o mar quanto o cérebro acho que são coisas que nós enquanto humanos ainda conhecemos pouco”

Outras faixas, como “Correntes & Ventos” e “Sopro”, tem uma ambiência rarefeita, como uma harmonia de sopros e sussurros, e assim nos conectam a uma ideia — ainda não concretizada — que Boregas teve durante uma residência artística de construir um instrumento de sopro que pudesse ser tocado coletivamente por várias pessoas soprando ao mesmo tempo. “Era meio que imaginar como todo mundo está conectado pelo ar, algo que a gente foi percebendo de forma cada vez mais clara por conta do Covid”, ela diz.

Entre as conexões do ar e o vai e vem da água na praia, Pena ao Mar é uma meditação sobre o som em seu fundamento vibratório, propondo uma via sensorial que nos reconecta a natureza em toda sua intensidade — da calmaria à violência, tudo ressoa pelo corpo.

Loading