Kyan & Mu540: os quebradas inteligentes

Crias da Baixada Santista, MC e produtor consolidam a parceria no EP “UM Quebrada Inteligente”, uma viagem dançante que mescla house, drill e funk

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Fotos: Divulgação

Um dos fundamentos tanto do rap quanto do funk é a combinação MC e DJ. A união entre o que está de frente para o público desferindo rimas e a figura que fica na retaguarda soltando beats e impulsionando melodias pode resultar em hits e parcerias de sucesso – de Thaíde & DJ Hum a MC Duda do Marapé & DJ Marquinhos Sangue Bom. No caso de Kyan & Mu540, responsáveis pelo EP UM Quebrada Inteligente, a colaboração vai além da música e é uma parceria pessoal. Uma amizade que se torna som e que traz ecos vindos da Baixada Santista, local onde ambos os artistas viveram a efervescência do funk e descobriram os caminhos que desejavam trilhar.

A quadrilha se une pra fazer a fita – é o enxame, é a zica

O EP UM Quebrada Inteligente consolida a intersecção de momentos diferentes de Kyan e Mu540. Kyan havia finalizado o disco Dias Antes de Mandrake (2022), um trabalho introspectivo e focado no início de sua jornada – os sonhos que desejava realizar, a relação com sua família e a música, envelopados por influências de trap e funk consciente. Enquanto Mu540 estava elétrico com a produção do EP No Susto (2023), em que se concentrou especialmente no mandela – reflexo dos bailes que vinha frequentando, comandados por DJs com os quais mais se conectou durante o processo de produção. “Cada um estava no seu clima. O Kyan chegou querendo festa e ainda com uma reflexão, e eu já estava na vibe mandela. Porém, não queria colocar tanto mandela de novo para não chover no molhado. Eu adotei como missão trazer novas propostas para o público”, conta Mu540.

Explorando diferentes estéticas, UM Quebrada Inteligente viaja por elementos de funk, drill e house – como na faixa “Fantástico Mundo da Oakley”. Há espaço para momentos mais reflexivos, como em “Total 90!”, mas a descontração domina a atmosfera do projeto. “Nós fizemos o que gostamos de ouvir, é um trabalho que eu e o Mu540 fizemos inteiramente sobre o que a gente queria fazer e o que a gente gosta de ouvir. É um disco verdadeiramente nosso”, define Kyan.

“Fizemos o que gostamos de ouvir. É um disco verdadeiramente nosso” – Kyan

Com a capa inspirada em DJ Jazzy Jeff & The Fresh Prince (Will Smith), os artistas reafirmam a relação entre moda e música ao criar. Nas faixas, artigos da Nike, Mizuno e Oakley ganham destaque, e, além de Oakley e Class Original no visual da capa, o diálogo com moda chegou até o dia de divulgar o trabalho, com o EP lançado em Paris durante a Semana de Moda.

Kyan havia sido convidado para participar de um showcase durante um evento de marcas nacionais de streetwear – Sufgang, Class, Pace, Carnan, Mad Enlatados e Quadro Creations. Intitulado Je M’appelle Brasil, o evento aconteceu na França, na época em que Mu540 estava na Europa em turnê com Deize Tigrona. A sincronia permitiu que a audição do disco fosse realizada durante o evento, antes de o EP subir nas plataformas digitais – e estrear no Top 10 Global do Spotify em 9º lugar.

“Eu já fiz rap, drill, funk e house. Daqui a pouco vou fazer bachata, lambada, vou meter o louco. Tudo isso é para mostrar para os moleques que a gente pode fazer tudo, você não precisa rotular o seu estilo. Nós somos pessoas da quebrada que gostamos de música, então temos que ocupar todos os estilos”, diz Mu540. “O EP veio para afirmar: você é um quebrada inteligente, por isso que você tem que estar em todo lugar. Por isso que a gente foi lá para a França. É o enxame, é a zica. Igual os caras do RZO falavam, a quadrilha se une para fazer a fita”.

“Cada um estava no seu clima. O Kyan chegou querendo festa e ainda com uma reflexão, e eu já estava na vibe mandela. Porém, não queria colocar tanto mandela para não chover no molhado. Adotei como missão trazer novas propostas para o público” – Mu540

O som, a resenha e a parceria perfeita

A partir de referências e vivências parecidas, a parceria entre Mu540 e Kyan também foi impulsionada por amizades em comum e as redes sociais. “Eu e o Kyan falávamos no Insta, e o Kaique, um amigo meu, me mostrava os medleys dele e eu acabei curtindo. Nisso, ele me deu a ideia de chamar o Kyan para fazer uns sons”, conta Mu540.

Entre sessões marcadas e desmarcadas e links trocados nas redes sociais para cada um conhecer o estilo do outro, Mu540 lembra o momento em que conheceu Kyan presencialmente. “Eu fui a um estúdio ver apresentação de outro MC, e o Kyan estava presente. Nisso, ele mostrou umas letras e eu vi ele cantando ‘Nós é Ruim e o Cabelo Ajuda’ e ‘Frutificando Ouro’, que é um som que ele ainda não lançou. Passaram uns dias e o Kyan lançou o medley de ‘Preto e Dinheiro’ e eu queria fazer algo com essa música. Foi aí que começamos a fazer nosso som. Eu levei ele na Favela Records e rolou tudo”. Para Kyan, a união com Mu540 foi fundamental para sua trajetória. “Eu consigo entender que, artisticamente, o Mu540 teve um peso enorme para minha carreira. Sem ele, eu não teria a visão artística sobre o Kyan e nem sobre como eu penso música hoje”. Desde então, os artistas firmaram uma parceria que inclui o lançamento de diversas músicas como “Mandrake”, “Tropa da Lacoste”, “Menor Magrinho”, “Trap de Cria” e “Mini Game” – e a colaboração entre os dois se desenvolve com naturalidade, como acontece com bons amigos. “Nós sempre tentamos fazer o arroz com feijão: fazer música, simplesmente. Sentar, conversar, fumar um e ver como está o outro para sentir como vai ser a vibe da sessão. A gente se diverte e a gente gosta de se divertir fazendo música”.

A história do hip hop e do funk conta com diversas duplas marcantes, que apontam novos caminhos criativos. E para Mu540, sua parceria com Kyan dialoga mais com as que vêm do universo funk. “Por fan service, que o pessoal fala muito, Metro Boomin e 21 Savage. Mas nossa parceria é pique Duda do Marapé e DJ Marquinhos Sangue Bom”.

“Já fiz rap, drill, funk e house. Daqui a pouco vou fazer bachata, lambada, vou meter o louco. Tudo isso é para mostrar para os moleques que a gente pode fazer tudo, você não precisa rotular o seu estilo. Nós somos pessoas da quebrada que gostamos de música, temos que ocupar todos os estilos” – Mu540

É o batidão da Baixada Santista

Crias da Praia Grande, Murillo Oliveira Santos, o DJ Mu540, e Renan Mesquita da Silva, o Kyan, cresceram na Baixada Santista em uma época de efervescência do funk. A música ecoava na vida dos garotos, que tinham fácil acesso à cultura que se formava na região. Mu540, inclusive, ressalta que a influência musical surgiu em casa e nas ruas. Além do samba tocado pelo pai e dos flashbacks que escutava com a mãe, foi nas esquinas da Praia Grande que ele escutou os primeiros beats e rimas. “O funk tocava muito nas ruas e os moleques colocavam músicas na jukebox em bar do lado de casa. Eu ia para jogar fliperama e acabava absorvendo”.

Em meio ao forte movimento musical na Baixada, Mu540 notou que sua forma de mixar podia se tornar carreira musical – algo que não era cogitado no início. Já para Kyan, a música sempre foi um objetivo. “Percebi que tinha que seguir minha carreira porque era a única coisa que eu fazia e as pessoas me elogiavam muito. As pessoas reconheciam como um talento raro quando eu cantava para os moleques do meu bairro, eles sempre elogiavam. Eu sentia uma diferença genuína das pessoas comigo no sentido musical”, reflete.

Com a expansão do funk nas favelas do Rio de Janeiro, o ritmo chegou a São Paulo pelo litoral. O funk da Baixada Santista é caracterizado pelo funk consciente, com relatos da rotina da juventude periférica permeados por debates sobre a violência, além de desejos e celebração de conquistas. Na Baixada, o funk também se desenvolveu como reflexo de influencias do rap paulistano dos anos 1990 – Racionais, RZO e Sabotage –, promovendo o encontro entre letras incisivas e a batida envolvente do funk carioca.

“Na minha visão, a Baixada moldou muito o funk de São Paulo, e eu sempre vi isso ali como um consumidor, sem entender muito do que era falado nas letras. Mas a imposição, o jeito que era rimado, todas as coisas me envolviam, e eu fui crescendo e entendendo, até o movimento político de diversos artistas. Isso me educou” – Kyan

E assim nomes da cena foram despontando: MC Primo, MC Felipe Boladão, MC Lon, MC Bola e Mc Careca. A influência desses artistas no som da nova geração, claro, veio forte. “Minha parte criativa tem relação com a Baixada. Os fundamentos do funk sempre foram fortes e isso me deu alicerce de criatividade”, reforça Mu540. “Na minha visão, a Baixada moldou muito o funk de São Paulo e eu sempre vi isso ali como um consumidor, sem entender muito do que era falado nas letras. Mas a imposição, o jeito que era rimado, todas as coisas me envolviam e eu fui crescendo e entendendo mais, até o movimento político de diversos artistas. Isso me educou como artista”, conta Kyan.

“Tudo que estava acontecendo nas letras estava acontecendo na nossa frente. A moda com o [Nike] 12 molas, as drogas da época, os bailes, como o Boulevard e o Pelicano. Os MCs passando na rua de bike, o Lon cortava cabelo na junta militar, sempre andando como pessoas normais na rua. Era normal ver o MC Beiço, Paulinho da PG e Felipe Boladão no começo. É muito louco porque você se sentia parte da cultura. Hoje em dia eu sinto mais isso, na época estávamos só vivendo”, relembra Mu540.

Lugar importantíssimo de desenvolvimento do funk, a Baixada Santista também ficou tristemente marcada pelos assassinatos de MC Primo, MC Careca, MC Felipe Boladão e MC Duda do Marapé. Os assassinatos ocorrem em abril de 2010, 2011 e 2012, respectivamente. Primo foi morto 10 dias antes de Careca. Mortos em Abril – Quatro Assassinatos que Abalaram o Funk de SP (2022), documentário da MOV UOL, destrincha os casos – que seguem sem solução.

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ARTISTA: Mu540