Maffalda, DJ Tonias & Arthur Gomes

Das lan houses ao mainstream, do Soundcloud às gravadoras gigantes – o produtor paulistano repassa sua história, destrincha seus diferentes alter egos e avalia as transformações do pop nacional

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Fotos: Reprodução

Foi nas lan houses da Zona Leste de São Paulo que Arthur Gomes deu os primeiros passos na sua carreira de produtor musical. Baixando demos de softwares de áudio da era jurássica, ele se divertia fazendo remixes e mashups que combinavam psytrance e outras vertentes de eletrônica, que ouvia nas rádios e na MTV, com o funk, arrocha, forró que absorvia vivendo no bairro da Vila Formosa. Anos depois, as coisas foram ficando sérias. Com o nome artístico de Maffalda, suas tracks foram crescendo e crescendo no Soundcloud — em certos casos, ultrapassavam barreiras, como sua versão de “Infinity”, do Guru Josh Project, que virou trilha sonora oficial das páginas de memes brasileiras. Aos poucos, a mistura promovida por Maffalda tomou o pop nacional. Ao lado dos parceiros da produtora Brabo Music, ele assinou músicas de Pabllo Vittar, Anitta, Ludmilla, Urias e Luísa Sonza, injetando doses tropicais de brasilidade nas sonoridades do pop.

Mas, enquanto Maffalda ia bem, o Arthur vivia um conflito. “A Pabllo levou música do ano no Faustão em 2017, mas eu estava em colapso”, conta ele. Tirado do ambiente despretensioso e cheio de liberdade criativa para um ambiente competitivo dos charts pop, ele sentia vontade de extravasar suas ideias de formas mais cruas e sem amarras. Naquele mesmo ano surgiu o personagem do DJ Tonias. Era para ser apenas uma piada interna entre amigos, mas o perfil de Tonias no Soundcloud acabou sendo encontrado por outras pessoas e a piada de Arthur de novo foi ficando mais séria. Cheio de experimentações sonoras, storytelling misterioso e um corrosivo senso de humor shitposter, o feed de DJ Tonias virou um verdadeiro enigma que distorcia os clichês do pop ao extremo, como uma radical experiência vanguardista que fazia a Pop Art e a PC Music soarem conservadoras e inofensivas.

No fim de 2023, Arthur revelou que ele estava por trás do tal DJ Tonias do Soundcloud. Desde então, Tonias é creditado em tracks de Pabllo Vittar com Anitta e MC Myres com Ramemes. Em fevereiro, ele lançou o EP Toniasverso pelo selo Chique Discos, com participações de MC GW, MC Myres, MC Morena, MC 2jhow. Nessa entrevista, Arthur conta sua história e analisa os sons de Maffalda, DJ Tonias e as transformações pop nacional.

Vamos começar do começo? Eu ouvi uma entrevista sua em que você falou sobre um teclado que ganhou na infância e que ele foi importante pra tua formação. Como foi isso?

Sim, esse teclado foi realmente importante. Acho que era um Yamaha Pss 480. Meus tios tinham uma escola de música e eles estavam colocando alguns instrumentos pra vender. Meus pais não tinham muita grana e compraram deles — afinal, cem conto um teclado, você acha que não vai comprar? E aí o meu pai me deu de presente de Natal. O teclado tinha um problema na fonte e quando aprendi a sequenciar nele, gravar pequenas pistas em simultâneo, ele dava um curto e sumia tudo. Era uma prévia do que eu ia enfrentar no resto da vida: falhas de HD, backups e coisas do tipo. Isso foi o começo.

Nunca estudei nada de teoria musical, percepção musical, nada do tipo. Sempre foi uma coisa natural pra mim. Ouvia música desde quando estava na barriga da minha mãe, porque meu pai é músico e escuta muita música. Ele era do rolê de rock progressivo, de jazz… Era umas músicas mais cabeçudas. Ele teve banda nos anos 1980, tocava na noite, etc. Sempre tive um lar muito musical. Tinha os meus tios também, que tinham a escola de música e eu participava das atividades que eles promoviam. Também ouvia muita rádio, Metropolitana, Jovem Pan… Tocava muito pop, que é uma coisa que sempre gostei e sempre gostei de fazer, mas nunca foi o foco. Fazer pop foi algo que aconteceu.

Sei que as lan houses também foram importantes para você. Você era rato de lan house? Ficava o dia jogando games? 

Como fui ter computador só quando eu tinha uns 12 anos mais ou menos, tive que arranjar outro jeito de fazer as coisas. Eu me interessava muito por internet, mas só tinha como acessar pela lan house, que eu ia muito com meu amigo Eric. A gente não tinha computador bom e queria jogar. Eu era muito ruim de jogo, na verdade, porque eu não podia jogar videogame. Minha mãe falava que eu ia virar noia se tivesse um videogame. A relação eu nunca entendi até hoje [risos]. Aí eu não virei noia e não aprendi a jogar, tô aprendendo a jogar GTA hoje em dia só.

Mas enquanto a galera jogava GTA Vice City, Counter Strike 1.6, Ragnarok, eu ficava mexendo no Wavepad Audio Editor, Audacity, começando a mexer no FL Studio. O Wavepad é um software de áudio muito velho e foi o primeiro que usei na vida. Foi a primeira vez que arrastei uma faixa de áudio e cortei em pedaços. Usava uma versão demo do programa, desinstalava e instalava de novo. Como eu não tinha computador, eu deixava as coisas no Skydrive da Microsoft (que era o Google Drive da época). Daí eu voltava, baixava de novo e continuava. Naquela época, fazia pequenas montagens de funk. Pegava a batida do Voltmix e aquele sample que é o beat de tiroteios e ia colocando em cima das músicas.

Depois de uns anos ganhei um computador com 2 ou 4 GB de ram — acho que eram 2 gb. Foi aí que eu consegui instalar o FL Studio pela primeira vez e o Acid Pro. Eu tive as férias na escola e aí não tinha nada pra fazer. Eu não tinha amigo, ficava em casa o dia todo e então era só FL Studio, 24 horas por dia fazendo as músicas. Esse foi o meu segundo computador. Antes disso, em 2008, meus pais compraram um computador usado que era do meu primo. Esse só tinha 256 mega de memória ram. Dava pra mexer no Wavepad, no Audacity, mas eu usava mais o computador dos meus tios, porque como eles tinham escola de música eles tinham outros softwares lá, como Nuendo, Sonar e outros programas muito jurássicos.

Você foi mexendo em tudo?

Era muito natural sair mexendo. Parecia que minha cabeça estava 100% absorvendo aquilo. Eu tava muito na onda de entender como funcionava, porque não tinha tutorial, não tinha aula em português. Eu achava que a única via que tinha para aprender era mexendo, sabe? Sempre tive dificuldade em aprender as coisas por uma via pré-estabelecida de fora. Eu preciso aprender do meu jeito pra poder entender. Aí em 2011 eu vi uma aula de um cara que chamava Alexei Mikaelvich, algo assim. Ele estava refazendo a música “Estrelar”, do Marcos Valle, no Ableton Live. Naquela época eu já tava de saco cheio do FL Studio e vi ele mexendo no Ableton e eu falei: que software é esse aí?

Por que estava de saco cheio do FL Studio?

Eu senti que havia batido numa parede. Achava que eu tinha feito tudo que eu queria ter feito ali. Queria um ambiente novo, sabe? Queria mudar as coisas de lugar. Aí vi a aula desse cara e vi um som que eu nunca tinha visto no FL. Comecei a mexer no Ableton e tô nele até hoje. Parece que ali abriu uma outra porta e eu consegui explorar outros estilos musicais que eu não conseguia no FL Studio.

“Enquanto a galera jogava GTA Vice City, Counter Strike 1.6, Ragnarok, eu ficava mexendo no Wavepad Audio Editor, Audacity, começando a mexer no FL Studio” – Maffalda sobre a vivência nas lan houses

E o que você estava ouvindo nessa época das primeiras experiências com áudio?

Em 2011, 2012 eu tava muito na onda de ouvir dubstep, drum & bass. A UKF (selo britânico focado em dubstep) tava no auge, então consumia muito isso. E ficava muito no Tumblr, onde acabei descobrindo Frank Ocean, Tyler The Creator, posteriormente Daniel Caesar… E ao mesmo tempo tava descobrindo muita coisa nova. Eu gostava de sentar e descobrir música. Fui conhecendo os rolês de moombahton, rasteirinha e aí foi tudo se juntando. Eu nunca soube muito bem o que queria fazer, porque eu lançava uma música que era mashup com dubstep, depois uma track séria, aí depois era um edit, aí depois era uma ambiência… Era muito o que eu queria fazer  no momento. Eu tive um projeto de EDM que não deu certo, que tentei empurrar pros canais de música tipo “músicas sem copyright” mas nunca deu certo. Aí comecei a fazer as coisas e jogar no Soundcloud. Inclusive o perfil é soundcloud/maffalda2 porque existe o soundcloud/maffalda só que eu perdi a senha. Tudo que eu escutava, eu interpretava e devolvia.

E o funk, como entrou nisso? Até porque as suas primeiras músicas, que levantaram mais o teu nome, bebiam do funk.

As duas coisas iam meio que em paralelo. Eu usava a música eletrônica (tipo o house, as coisas que tocavam na rádio) como um escudo para esconder da minha família que eu gostava de funk, porque não era uma coisa muito bem aceita. Meus pais não são conservadores nem nada do tipo. Mas é aquele negócio, sabe? Eu sou consumidor da erva cannabis, né? E daí eu legalizei com a minha mãe há um tempo, de um jeito que a gente está de boa, 100%. Ela entendeu totalmente, ela chegou a experimentar. Mas foi um processo em que eu tive que ver a escultura dentro do mármore, sabe? Eles têm convicções muito convictas e daí meu pai, por ser desses rolê muito cabeçudo de jazz e de não sei o quê, ele nunca deu uma chance pra isso porque ele tem certa resistência com coisa em português. Ele foi no meu set quando eu toquei no 0800 com o Deekapz, ouviu os funks tocando e falou: “Interessante as divisões rítmicas que vocês fazem”. Acho que eles só não entendem. Aí como eu não conseguia falar disso com eles, eu ia curtindo meio que na encolha. Por eu morar na Zona Leste, rolava muito, tinha muito CD de funk aqui na feira — compilações de funks do PCC entre outros clássicos que marcaram as nossas vidas. Então eu escutava muito por esse por esses meios e pelo meu primo também, que ficava roletando de Monza por aí e tinha CDs de funk.

E eletrônica eu escutava, sei lá, com os meus primos. Eu tinha um limite de quanta coisa podia acessar, porque era muito restrito ao rádio e a MTV, sabe? Então, eu dependia desses dois negócios. Daí eu chegava na casa do meu primo e ele estava escutando Astrix. O psytrance explodiu na minha mente, lembro até hoje das músicas. Mas foi muito observando o que as outras pessoas estavam ouvindo. Lembro que quando escutei “Shake It”, do Kasino, que tinha umas percussões no começo, eu fiquei: como será que faz esse som? E umas outras coisas eu ficava pensando: que doido, parece que eles estão no banheiro gravando.

Tinha uma curiosidade pela forma como os sons eram feitos, pelos processos por trás daquela sonoridade.

Desde cedo eu comecei a tentar fazer essa espécie de engenharia reversa para entender como as coisas funcionavam. Porque eu só tinha um gravadorzinho de fita da Iowa. É um microfone, você liga no gravador e grava. Não tem dois canais nem nada. E aí eu ficava gravando muita coisa. Eu achava muito interessante isso de gravar, voltar e decidir qual parte você quer usar. Aí comecei a copiar fita também. Eu tive uma fase analógica antes da fase analógica de hoje. Comecei a perceber que quando copiava de uma fita para outra dava mais chiado e ficava sem entender como os caras faziam. Eu escutava Sade e era tudo perfeito: “Pô mas isso é muito antigo e isso aqui eu gravei agora, como pode ter tanto chiado!?” Comecei a pesquisar naquele fórum KVR Audio e no IDM Forum pra tentar entender como fazia essas coisas.

Outra influência forte é o arrocha e o forró. Como isso chegou em tu?

Esses lances do arrocha, do forró, etc. acho que é uma coisa mais minha do que da minha família. Minha mãe é do Nordeste, mas ela simplesmente não liga para música. Ela gosta de 10 músicas, se eu fizer uma playlist e tocar todas as vezes essas mesmas 10 músicas ela vai se emocionar igual. Ela é muito fã do Oswaldo Montenegro. É o Skrillex dela. Meu pai era muito ligado nisso, minha mãe simplesmente não liga. Então eu tive muito espaço quando eu tava com ela pra ficar ouvindo outras coisas.

E daí como na infância fiquei sob cuidado de outras pessoas, fui absorvendo várias coisas. Minha tia ficava muito com rádio ligado e ela pedia música. Então escutei muito Zezé di Camargo & Luciano, Chitãozinho & Xororó, até o Sertanejo Universitário quando começou, no boom. Foram coisas que eu ouvia, mas que não causavam a mesma aderência de quando eu escutava, por exemplo, um Eurodance no rádio ou coisa do tipo. E o hip hop da TV também me influenciou muito — Timbaland, Sean Paul e essas paradas que as pessoas estão re-sampleando. Tudo isso ajudou a moldar muito. Comecei a identificar os sons que eu gostava. Foi a preparação pra me tirar do seio da família e me colocar na maldade do Kanye West, porque ali eu comecei a escutar “Through The Wire” e vi que ele trocava de snare no meio da música e eu ficava: uau! Então pode fazer isso! E daí eu testava fazer a mesma coisa em uma track. E tem algumas vertentes e subvertentes do arrocha e desse panorama de música popular que eu gosto muito e eu achava que rolava uma cola boa com música eletrônica, aí eu tentei. Mas eu não sei bem porque fiz. Tipo “Infinity (Maffalda Arrocha Flip)”. Foi um grande tiro no meu pé, mas eu fiz essa canção [risos].

Por que um tiro no pé?

Porque depois disso todo mundo só queria mais “Infinity”. Eu postava outras músicas e dava 900 plays e ninguém ligava. Aí eu postava um arrocha e o pessoal curtia. Por isso que eu dei uma sumida uma época. Foi intencional pra mandar embora do canal todo mundo que veio procurar isso e eu poder voltar a postar. Chegou um momento que “Infinity” travou um pouco tudo. As pessoas queriam mais e mais “Infinity” eu não tinha mais.

“Desde cedo eu comecei a tentar fazer essa espécie de engenharia reversa para entender como as coisas funcionavam”

Eu acho muito interessante como tu trouxe elementos do arrocha para o pop. Têm o sax em “Amor de Que”, o trompete e metais em “Problema Seu”, as cornetas em “Garupa”. E não está só nas músicas da Pabllo, é algo que você foi trabalhando, uma linguagem musical que você estruturou. Como foi esse processo?

Foi pesquisa, observação, ficar caçando música. Fui descobrindo Banda Djavú, Banda Ravelly, Banda Tarraxinha, até o Cleiton Rasta quando estava começando a estourar pra gente aqui em São Paulo… Todas essas coisas eu sabia que existiam. Eu não escutava muito, mas compreendia o grau da importância daquilo pro cenário todo e era muito disruptivo no cenário da produção — o jeito que eles programavam os sintetizadores, as baterias e tudo. Para mim sempre foi juntar uma coisa com a outra, porque tinha tudo a ver. E o som do arrocha é uma parada que tem muita pressão, como o som da música eletrônica. Então se você souber concatenar os dois de um jeito que ficasse bom…

Eu conhecia esses sons todos por causa do lugar que eu morava e daí quando eu conheci o Gorky, em 2015, a gente começou a trabalhar em alguns projetos que ele me chamou pra fazer produção — tipo produção adicional do finado Bonde do Rolê, quem lembra aí deixa nos comentários [risos]. Ele ia fazer uma trilha ou outra coisa e me chamava. E daí ele foi chamando, chamando, chamando. Eu fui ficando, ficando, ficando. Depois ele acabou conhecendo a Pabllo. Viu que tinha um grande potencial e trouxe a ideia. A Pabllo foi trazendo as influências dela, que é PhD em tudo que envolve coisas do Maranhão e do Nordeste. A gente foi juntando tudo. No começo eu não entendia muito bem o que estava acontecendo. Eu só ouvia que era novo. E eu estava tendo contato com muita coisa nova. O lance drag, por exemplo, nunca chegou pra mim organicamente. Aí do nada eu estava inserido, jogado lá no meio. Aí fui aprendendo o que era e tentando colocar nas músicas. Por exemplo, fui na festa Priscilla, primeiro show da Pablo. Aí entendi como era o ambiente, vi como era uma festa para entender uma música que pudesse tocar ali. Mas até hoje não conheço muita coisa de música popular, infelizmente. Eu fui tentando ouvir e entender. Quando as pessoas vinham elogiar a produção e falavam “tem elemento disso, disso e disso”, eu pensava: “Caraca, é assim que as pessoas ouvem? Eu fiz isso?”. Então veio muito das influências da Pabllo e da pesquisa própria.

“Na produção [pop], penso sempre que estou fazendo uma música mais alternativa. Só que não posso pegar tão pesado, tem que ir aos pouquinhos. Quem conhece, conhece. Mas, pros fãs novos, dou uma segurada, porque minha tendência é não ficar pop. Sempre puxo pro lado mais abstrato, tirando da canção e levando pro lado da track”

Eu sinto que você e a Pabllo fizeram uma espécie de redesign da música pop no Brasil. “Problema Seu”, por exemplo, tem a subida e depois um drop com muita energia. Mas não é o drop do dubstep, é uma corneta do arrocha. Vocês percebiam que estavam alterando essa estrutura e preparando um terreno para um novo pop mais brasileiro?

Eu não fazia ideia. Eu só ia fazendo. Quando os discos da Pablo foram passando, ao longo dos anos, era sempre: o que será que vai vir agora? Como será que vão ser as músicas? Eu nunca pensava no depois que as músicas terminavam de ser feitas. Eu não considerava que a música ia sair, ser lançada e impactar a vida de pessoas lá fora, etc. Eu não sei, eu sou muito desapegado com a minha obra. Eu faço e está feito. E daí vamo pra próxima música e vai fazendo, vai fazendo, vai fazendo… Não sei, eu sinto que tem um gerador infinito de coisas, sabe? Principalmente quando é besteira, quando é gracinha, quando é música de brincadeira, pra zoar. Mas só agora estou entendendo, com muita terapia na cabeça, que fiz coisas que podem ser importantes pra vida das pessoas.

Você é mais apegado ao processo.

É, pra mim o que vale é isso aí. Acho que se eu soubesse que eu estou fazendo uma parada gigante e que isso aqui tem que ser hit, talvez não teria saído da mesma forma, sabe? Porque quanto mais direcionamento tem, mais impede a música de fluir naturalmente. Você vai tampando as chances do acaso aparecer. Acho que por não ter ideia do que estava fazendo, eu acabei fazendo muito mais do que faria se eu soubesse o que eu estava fazendo. Às vezes é aquele lado “quero ser manipulado pela Globo sim!”. Ignorância, gostoso demais! Eu sou essa pessoa [risos].

Mas você e a Brabo Music já trabalharam com muitos artistas que têm essa demanda de ter que ir bem nos charts, como a Luiza Sonza e a própria Pabllo. Como é trabalhar com essa demanda? Tem um peso, uma responsabilidade? Tem coisas que não é possível explorar tanto?

A gente sempre tenta estar atualizado o máximo possível com o que está acontecendo. Sempre estar alinhado com o jeito que a galera está pensando em conjunto, já para ter essas cartas na manga quando for trabalhar com um artista muito grande. A gente tenta fazer coisas mais populares que sejam fáceis de encaixar também, porque é um exercício pra gente também. A gente fala que fazer as músicas da Urias, da Pabllo ficou fácil pra gente porque temos um jeito muito fechadinho de trabalhar. Aí quando vem uma responsa dessa (“tem que ser hit”, “tem que ser de tal forma”), eu me condiciono a esvaziar a mente e esquecer que tudo isso existe. Se não, acabo querendo fazer uma coisa mais torta, não posso e fico insatisfeito com a música. Eu pessoalmente não consigo analisar like e plays. O Zebu é fascinado por esse negócio. Ele vê os charts, quanto subiu, quanto desceu. Não só da Pabllo, ele sabe de pop em geral.

“Quanto mais direcionamento tem, mais impede a música de fluir naturalmente. Você vai tampando as chances do acaso aparecer. Acho que por não ter ideia do que estava fazendo, eu acabei fazendo muito mais do que faria se eu soubesse o que eu estava fazendo”

Uma coisa que acho curiosa do trampo com a Brabo Music é que vocês abriram mão das assinaturas individuais. A música não sai creditada como Maffalda, por exemplo. Como funciona o processo da equipe da Brabo?

Eu acho que dá pra perceber se você ouvir todas as músicas do Gorky, todas as músicas que o Pablo Bispo escreveu, todas as minhas tracks, todas do Zebu, aí acho que dá pra abrir a malha da Brabo Music. Mas de fato tem um terceiro som que é muito particular do que a gente acha que funciona. Por exemplo, eu tenho certa dificuldade pra ver a música em uma ideia inicial que está muito inicial. Fico sem entender. Se ela vem mais elaborada, já vem mais fácil. O Gorky não, ele consegue ver a estátua dentro do mármore. Então é muito da gente estar aberto e sempre chegar num resultado que todo mundo goste. Eu escutei, estou ok com a faixa. Ele escutou e está ok com a faixa. Zebu escutou e está ok com a faixa.

Eu faço música todos os dias, mas nunca escrevi uma letra na minha vida. Eu não consigo. Palavras não são comigo, sabe? Fico só fazendo beat, todos os dias. Nem que seja uma ideiazinha de vinte segundos, pequenos loops, bateria… É como fazer um cardio. Tiro pelo menos meia horinha pra fazer uma coisa, porque eu sei que precisa continuar fazendo. E o pessoal da Brabo é meio assim também. O Pablo Bispo também faz coisa todo dia. Ele é apenas letra, mas ele também é produtor — só que produtor mais no sentido Rick Rubin do negócio, não é tanto de operar o maquinário e mais de olhar e dizer: é isso, com isso, com isso. O Zebu é meio que tudo. Ele escreve, ele compõe, ele também produz, ele também grava, ele faz tudo. Ele está trabalhando com o Jão inserido numa rotina de produção e gravação que está muito intensa há uns anos já.

Aí geralmente fazemos um ping-pong, porque ele é muito bom na ideia inicial. Tipo: a gente precisa de uma bateria, um baixo e uma voz agora. Ele consegue montar muito rápido e manda pra mim. Aí eu deixo soando “versão Corinthians”. Troco o kick e os pads provisórios que ele pôs, pego a guitarra e faço de novo, monto a música, estruturo ela de um jeito que ela vai ficar mais parecida com a versão final e daí nós temos uma boa demo. Ou então ao contrário: eu começo e mando pra ele, a gente mexe e finaliza junto.

O Gorky mexe também, mas ele é mais o coordenador da equipe, o líder do negócio, porque ele é quem junta todo mundo no espaço e fala: vocês é melhor fazerem isso, vocês fazem isso. Ele vai coordenando a coisa. Aí a gente sempre chama pessoas que estejam alinhadas com que a gente está querendo fazer. A gente chama muitos autores LGBTs, meninas, porque quando a gente vai pros songcamps são sempre homens héteros com o malegaze do negócio. Daí a gente tenta fugir disso e fazer músicas mais divertidas e mais sentimentais. Eu gosto disso também. Quanto mais emocionante, melhor. Eu gosto de emoção forte.

Vocês também estão trabalhando com artistas que são do pop, mas que vêm de outro ambiente, como a Urias, que acessa um cenário meio diva pop, mas é mais dissonante. Como é trabalhar nessa zona entre os polos?

Acho que as pessoas gostam muito porque tem todos os elementos que a galera do pop gosta. As músicas são cheias de energia e as letras são agressivas e, sei lá, a Urias é muito bonita também, tem o lance visual todo… Então eu acho que por ter todos os elementos que o pessoal do pop gosta eles param pra olhar Aí chama atenção. Teve uma vez que o Latino comentou um negócio da Urias dizendo: “Gosto muito das suas músicas!” [risos]. Tudo pode acontecer. É muito doido quando sai alguma coisa que é parecida ou quando a gente encontra mais pessoas fazendo essa música que fica nessa linha divisória é legal, porque é um território que é muito bom, que tem muita coisa pra explorar. Você ainda tá no underground, em contato com tudo que acontece de legal, de música que realmente importa. Só que ao mesmo tempo você tá no pop sem tanto ônus do pop, sem as pessoas encherem o saco, sem cobrança, sem fãs que querem destruir a sua casa e vazam seu número. E também são públicos muito distintos, mas acho que a linha divisória vai ficando cada vez mais imperceptível com o tempo, à medida que a música do mainstream vai virando o que é a música do underground. Em 2013, 2014 a gente tentava fazer Jersey Club, todo mundo achava legal e agora tem no rádio. Levou todo este tempo, mas agora tem.

Ao mesmo tempo esse movimento parece ser algo que tá rolando no mundo todo. O pop da Charli XCX ou mesmo da Beyoncé já é bem diferente, mais experimental, absorvendo o lado ruidoso. Como esse lugar do meio reflete na produção musical?

Acho que a gente pensa no lado mais edgy do que no lado pop. O lado pop acaba sendo uma consequência. No lance da Urias, Pabllo, Number Teddie, por exemplo, tem pessoas que estão acostumadas com o jeito de escrever pop. Então acho que por termos outro background, sai com uma cara diferente. Você citou a Charli XCX e eu era muito fã da PC Music em 2014-2015. Principalmente do A. G. Cook. Daí quando eu chegava pra fazer arrocha eram esses os timbres que eu tinha. Com a Pabllo, a gente sempre tem o formato do pop, pensa sempre num refrão com explosão, numa melodia mais catchy. Mas, para mim, do ponto de vista da produção, eu penso sempre que estou fazendo uma música mais alternativa. Só sinto que não posso pegar tão pesado. Tem que ir aos pouquinhos. Quem conhece, conhece. Mas pros fãs novos eu dou uma segurada, porque minha tendência é não ficar pop. Eu sempre puxo pro lado mais abstrato, tirando da canção e levando pro lado da track.

A gente está vivendo um momento de crise de atenção generalizada. Como essa recepção tem afetado a criação das músicas?

Vejo isso refletindo mais na minutagem das músicas, que estão cada vez menores. Tem umas pessoas lançando músicas de 58 segundos, 59 segundos. Parece que o pessoal tenta condensar uma quantidade de coisas num curto espaço de tempo. O choque inicial tem que ser maior ou tem que ter alguma grande coisa atrelada à música para que ela tenha uma atenção a mais — um clipe muito foda ou acontece alguma coisa, tipo a música vaza e esses negócios pra criar expectativa e ir aumentando a retenção da track. Eu senti isso no Noitada (álbum da Pabllo Vittar). Você tem que dizer a que veio logo nos primeiros 9 segundos porque se começa a demorar vai apagando a luz. É tipo um flash, ele desarmando e a mensagem tem que ser passada de uma vez. Esse é o efeito que a gente busca mais hoje.

Acho que agora é um bom momento pra falar do seu outro trampo, o DJ Tonias.

[Maffalda abre um sorriso e esfrega as mãos]

Por que essa cara?

Porque é uma outra coisa. Parece que vira uma chave na minha mente. Pra mim, Maffalda é uma coisa muito mais do pop. Grudou no pop. Vou remanejar o funk para o DJ Tonias e vou deixar o Maffalda uma coisa mais Kaytranada das ideia.

“O DJ Tonias sempre foi a lixeira da minha mente”

O DJ Tonias surgiu num contexto em que tavam rolando uns perfis que eram os DJs Disfarçados do Soundcloud. Até fiz uma playlist com essas músicas do DJ Tonias, Sophie da Rua Augusta, Kaytrazinho da Norte, DJ Carmackinho dos São Sebas etc. Depois eu soube que você era o DJ Tonias e pra mim fez todo o sentido, porque parecia alguém que pegava todas as convenções e clichês do pop e levava ao extremo, destruindo esses símbolos.

O DJ Tonias veio de piadas internas que fazia com meus amigos da Zona Leste. O DJ Tonias é um personagem como a mamãe do Futurama. É a mastermind daquele universo onde a gente vivia, o Jardim Santa Eduarda, bairro do lado da Vila Formosa, onde também passei parte da minha juventude. A gente fingia que aquele era um país à parte e o DJ Tonias comandava tudo naquele negócio. Tudo era sobre o DJ Tonias. E eu não mostrava pra ninguém, não postava. A senha do Soundcloud é a mesma até hoje. Porque era um negócio só pros meus amigos ouvirem, tanto que nas primeiras faixas só tem comentários deles.

Na gringa tinha uns caras que faziam esses perfis do Soundcloud que era pura besteira. E aí eu pensei que queria muito fazer isso em português. Também tive uma época muito forte de Youtube Poop em 2009 até 2011, que eu editava vídeos e tive um canal de YouTube Poop. Só que eu odiava tudo e aí eu deletei tudo porque eu sou assim desde sempre e eu vou fazer isso de novo [risos]. Com o DJ Tonias, eu criei o Bandcamp e a Tereza Records lá no Youtube pra ficar mais difícil pra mim mesmo. Criei um obstáculo pra mim mesmo porque no SoundCloud é muito conveniente eu ir lá e apagar. Às vezes dá uma dá uma pressão na mente aí, eu fico abublé das ideia e quero apagar tudo.

Mas, como eu dizia, tinha sempre teve essas contas engraçadas aí no site. Parece que naturalmente as pessoas foram descobrindo, começou a chegar mais gente e um pessoal como o Matheus, do Deekapz, foi fazendo também os seus perfis, como o Carmackinho do São Sebas. Só que o dele era sério, ele colocou um degrau a mais. Era de zoeira a temática das músicas mas elas davam pra tocar na pista. Eu lembro até quando eu toquei na Wobble no ano que ele lançou assim aquela track com o sample do “Nois Empurra” e foi explosão. É meio 100 Gecs das ideias, só que sem aparecer, sem mostrar o rosto. São pessoas que sabem fazer pop, que sabem fazer músicas normais, só que elas estão fazendo uma outra parada pra provar que elas também sabem fazer outra coisa. Isso foi crescendo. O JLZ fez o Sam Gellaitry do Borel depois, Fuso! fez a Sophie da Rua Augusta… Aí começou a chegar num nível que era: quem será que é esse perfil? Tipo o EPROM da Cidade Tiradentes ninguém sabe quem é até hoje.

E o lance do pop tava tudo acontecendo. A Pabllo levou música do ano no Faustão em 2017, mas eu estava em colapso. Um ano e meio atrás eu era um rato, bicho! Eu ficava na internet o dia. Eu trabalhei numa gráfica uma época fazendo tratamento de foto, mexendo com revelação, plotagem, essas fitas assim. E aí eu fui demitido naquele esquema de “a gente adora você, mas a gente vai ter que te mandar embora”. Daí eu fui mandado embora, aí ficava em casa o dia todo. Finalmente tinha tempo pra fazer minhas tracks, né? Porque antes me dividia entre trabalhar e mexer no Ableton. E aí eu fiquei fazendo, fazendo e fazendo… Eu tinha essa realidade e do nada eu estava ali dentro do pop e coisas do tipo. Eu tinha muita raiva no meu coração e eu não tinha onde expurgar isso. Eu só tinha a companhia do meu amigo Vinícius — tem até uma música do DJ Tonias que chama “que saudade de visitar meu amigo Vinicius em sua humilde casa para os amigos de bom gosto”.

E no DJ Tonias tudo tem uma história de fundo. O DJ Tonias pensou em tudo, porque eu justamente criei esse negócio pra gravar os símbolos da minha própria vida. Então a música do fulano de tal é pra zoar o meu amigo porque na época ele fez tal coisa. A “musica para quando eu finalmente desistir da produção musical”, que você mencionou num texto, era aquilo mesmo. Eu não tava a fim de fazer mais nada, em plena pandemia, eu fiz só zoando. Fazer o DJ Tonias me dava um respiro do pop, que tinha que ser tudo afinado, tudo perfeito, tudo enxuto. Isso dava uma gastada. Aí no DJ Tonias eu podia fazer o que eu quisesse. No Maffalda eu não posso fazer o que eu quiser, porque tem umas pessoa ali que já estão ouvindo, tem que ter uma continuidade. Era uma uva essa época. Aí hoje em dia cai nesse mesmo lugar. Posso fazer tudo, mas não posso. Tem o negócio da Sony agora que eu preciso agir como uma pessoa normal e tal… Mas o DJ Tonias sempre foi a lixeira da minha mente.

Agora você lançou o Toniasverso, um EP oficial do DJ Tonia com do MC GW, MC Myres, MC Morena, MC 2jhow. Por que decidiu lançar o álbum, se o projeto era a lixeira da mente?

Eu recebi um convite da nossa querida gravadora Chique Discos, que é do Gorky e do Zebu. Eles estão lançando novos artistas e convidaram para fazer um release intermediado pelo selo deles. Aí eu topei porque eu também estou tentando dar uma atenção mais pras plataformas, no sentido de trazer as músicas. Nas músicas do Maffalda, por exemplo, você dá um toque no scroll do mouse e você chega em 2014 e acabou. Não tem nada praticamente nas plataformas, sabe? E aí eu queria ver como que é ter um release, como que é lançar um negócio hoje. Quais são os trâmites e como é ter um álbum oficial. Mas meu foco ainda é o Soundcloud.

Você é parte de uma geração de produtores musicais que se conectou através do Soundcloud e que por lá começou a soltar as primeiras faixas. Hoje, muitos desses nomes estão trabalhando com artistas maiores, como o JLZ e o Baco Exu do Blues, a Badsista com Linn, você com a Pabllo. Como você enxerga esse movimento?

Eles têm que estar lá porque eles são pessoas que têm uma pesquisa muito rica, principalmente o Carlos e Badsista que são pessoas que eu convivi muito nessa época pré-DJ Tonias, de 2015 a 2016. A gente andava muito junto, pra cima e pra baixo e acho que essa expansão que a gente estava falando do som do pop ficando mais edgy é justamente pela presença dessas pessoas. Acho que são os verdadeiros produtores e que eles têm que ocupar esses lugares sim, porque é uma galera que tem uma pesquisa fodida em tudo, sabe? Não só de música. Têm um senso estético muito grande e podem agregar em muitas coisas simultaneamente, sabe? Sei lá, o Carlos do Complexo poderia assinar uma linha de roupas. São pessoas que têm um conhecimento muito completo e podem agregar muito em muitas áreas. Que bom que essa época finalmente chegou, sabe? Muita gente ficou no caminho, muita gente até desistiu do ofício e agora finalmente as luzes viraram pra nós, mesmo que por um momento. E agora pelo menos tem alguma coisa de referência para outras pessoas. Quando digo referência, nem é referência de sonoridade necessariamente. Mas tem um asfalto, tem um caminho, sabe? Quando eu escutava a Ludmilla, a MC Bruninha em 2012 ou 2013 lá na escola eu nunca consegui achar as pessoas que faziam as músicas, sabe? Era muito difícil até de procurar créditos. Então acho que essa proximidade — você saber quem faz as coisas — faz a gente ter mais acesso a esses conhecimentos. Eu sinto que eu deveria compartilhar mais as coisas. Eu tenho vontade de voltar a fazer tutorial e compartilhar as coisas, porque não gastei nada pra aprender esses negócios. Eu queria só botar no YouTube.

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