Medo e desejo com Mannequin Pussy

Uma conversa com Marisa Dabice sobre vulnerabilidade, mitos do americano médio, lições de um término ruim e, claro, o ótimo disco “Patience”

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Fotos: David Brandon / CJ Harvey

Descobri Patience, mais recente trabalho do Mannequin Pussy, em listas de melhores discos do ano passado por aí. Rápido, enérgico e sincero, o terceiro disco do quarteto da Filadélfia traz 10 faixas espalhadas em menos de 30 minutos de duração. Sobre o conteúdo das letras, Marisa Dabice – letrista, vocalista e guitarrista do grupo – deixa claro: não há medo de parecer vulnerável.

“Quando escrevo músicas, até o Patience, nunca fiz pensando que as pessoas poderiam escutar. Agora percebo que é algo para todo mundo e que vai durar para sempre”, diz Dabice, em entrevista ao Monkeybuzz. O motivo para a mudança na recepção das pessoas está em seu jeito de cantar. Nos dois primeiros lançamentos, Gypsy Pervert (2014) e Romantic (2016), ambos com menos de 20 minutos, Marisa gritava – e muito.

Seu vocal permanece rasgado em algumas faixas de Patience, como na dobradinha “Clams”e “F.U.C.A.W”. Porém, em geral, é um disco “mais calmo” ou “com menos urgência”, se compararmos com fase inicial da banda. Formada pela vocalista e guitarrista, ao lado de Solin Regisford (baixo), Kaleen Reading (bateria) e Athanasios Paul (guitarra), a banda expandiu sua sonoridade após longos períodos em turnê, além de mudanças de estúdio e de produtor.

Quem assina a gravação e a produção do trabalho é Will Yip. O engenheiro de som passou a ser conhecido no Rock Alternativo depois de trabalhar em discos de bandas como Tigers Jaw, Turnover e Title Fight. Outra importante mudança ocorrida antes da gravação foi a proposta da Epitaph Records, gravadora independente fundada por Brett Gurewitz, guitarrista do Bad Religion. O selo, que abriga nomes como Weezer, Millencolin, Motion City Soundtrack e até mesmo nomes mais populares do mainstream como o Bring Me The Horizon, passou a ser a nova casa do Mannequin Pussy.

As expectativas para o lançamento eram altas e não decepcionaram. Além de aparecer em diversas listas – Pitchfork, NME, Rolling Stone, e de quase todos os veículos gringos –, também recebeu apoio de inúmeros fãs, que se identificaram com a banda. Em um dia específico do mês de março, a plataforma Bandcamp disponibilizou 100% dos lucros para os artistas, o que resultou em 600 pedidos, entre camisetas, broches, calcinhas e LP’s. Prestes a completar o primeiro aniversário, Missy (apelido de Marisa) continua recebendo mensagens sobre Patience: “Sim, sou terrível, leio tudo (risos). A maior parte são de apoio! Tem sido um ano maravilhoso”.

Há muitos posts e fanart com um trecho específico de “Drunk II”, o “I still love you, you stupid fuck”. A música, que ganhou clipe com direção da própria vocalista, virou uma espécie de hino online sobre términos ruins e as consequências de encher a cara para esquecer. Do tipo ligar para o ex, porque se esqueceu que terminaram. Vamos dizer que uma amiga de uma amiga minha, não vou dizer quem, passou por algo semelhante – e acabou escutando um “não podemos ser amigos” e “quero pegar outras mulheres”.

“Consigo dizer isso hoje: um pé na bunda é uma espécie de presente. Uma chance de se conhecer melhor, de saber como você quer que a sua vida seja”

São pequenos momentos incontornáveis pelos quais passamos no caminho até o amadurecimento, seja em forma de caras péssimos ou de ideias fracassadas. Quando conversamos, Missy disse que escrever músicas foi a maneira que ela encontrou para extravasar. “Consigo dizer isso hoje: um pé na bunda é uma espécie de presente. Uma chance de se conhecer melhor, de saber como você quer que a sua vida seja”, reflete.

Minha identificação foi tanta que durante os últimos meses devo ter interrompido uma porção de conversas de amigos para tentar catequizar alguém sobre esse som. Escutei andando na rua, na estrada, em casa – e se tornou a primeira opção para aqueles momentos nos quais aparece a dúvida sobre o que ouvir. Tipo de sentimento que já nutro por algumas outras bandas especiais.

Em “Who You Are”, que remete a um mood meio início dos anos 2010, ela questiona: “quem te ensinou a odiar como você é? Amo quem você é” – ao mesmo tempo em que diz estar se sentindo culpada, porque se olhou no espelho e desejou ser outra pessoa. No release do disco, Missy explica que essa faixa é sobre “algo que diria ao meu eu de 20 anos, que perdia tanto tempo não acreditando em mim mesma” – hoje, ela tem 30.

Em uma das várias conversas sobre a banda que tive com uma amiga, a Renata Remédios – artista visual e que tem composto as primeiras canções em sua guitarra –, chegamos à conclusão de que, ao ouvir Mannequin Pussy, a sensação de empoderamento também vem da agressividade sincera (ou a sinceridade agressiva) de Missy. “Se relaciona com o tipo de som que gosto, ainda restrito a homens. Muito difícil surgirem mulheres que fazem um som mais agressivo… Não sei se esta é a palavra certa, mas é algo forte. Missy é a pessoa mais sincera que eu conheço. Foi como me encontrar em alguém que passou pelo o que eu passei”, me conta Rena, via WhatsApp.

Quando não está se alternando entre o Hardcore e o Punk Rock, a vocalista também compõe canções de Alt Pop no trio Rosie Thorne, que tem apenas um single lançado, “Slick”, de 2018. Formado também por Zach Sewall e Max Steen, a empreitada está em repouso por conta da agenda apertada. “O projeto obscuro, Rosie Thorne, que deve mudar de nome para M.Z.M – nomes são difíceis! Temos muito mais tempo para terminar essas músicas”, diz, enquanto completa um mês de isolamento, após os casos de coronavírus explodirem nos Estados Unidos. Alguns planos foram adiados – como a gravação do clipe de “High Horse” –, mas ela pretende entrar em estúdio com o MP em julho, para lançar algumas músicas no final do ano.

“Sou um tipo de pessoa ‘apaixonada pelo amor’. Já me apaixonei seis vezes” – Marisa Dabice.

(Sol em Virgem, ascendente em Sagitário, Lua em Leão, Vênus em Libra. E fã de Zelda.)

Como você está durante a quarentena? 

Estou abrigada na Filadélfia desde 14 de março, onde vou permanecer até o final do mês. Estou ok, estou notando tudo o que mudou na minha vida durante o ano passado e que me trouxe essa posição confortável e de segurança. Me sinto muito sortuda em viver em um lugar seguro e ter dinheiro suficiente para alimentação e abrigo – pelo menos por mais alguns meses, se for além disso, não sei o que vai acontecer.

Ainda há uma cena acontecendo na Filadélfia? 

Tivemos um momento, mas diria que ele acabou. O aluguel aumentou muito! Amo essa cidade e não quero partir, mas me questiono como as artes vão ser afetadas, já que a vida ficou mais cara.

Você está escutando alguém em especial durante o período de isolamento? 

Música? Hum… Sinto que desaponto algumas pessoas quando falo que não escuto música em casa! Sou mais chegada nos videogames. Então, se alguém quiser escutar a trilha sonora do Zelda pode falar que foi a minha sugestão.

Quais são as suas preocupações no momento?

Nem consigo contar quantas são. Algo que costumo dizer para mim mesma é que há muitos motivos para lutar. Me sinto exausta. Ainda estou tentando encontrar o tempo e os recursos para ter uma chance real de construir um futuro melhor. Nos Estados Unidos, pelo menos, a epidemia está trazendo atenção aos nossos sistemas e como eles não servem para a grande maioria da população. Os EUA são um país tão novo e com tanta mitologia. O americano médio realmente acredita que os “Estados Unidos são a melhor nação na terra”, que isso significa que tudo funciona e que não precisamos mudar nada, devemos continuar como tudo sempre foi. Isso é um mito que o nosso governo criou para nos desviar de desafiar o sistema. Não sei… vamos passar por conversas difíceis neste ano, especialmente, por causa das eleições.

“O americano médio realmente acredita que os EUA são a melhor nação na terra, que isso significa que tudo funciona e que não precisamos mudar nada, devemos continuar como tudo sempre foi. Isso é um mito que o nosso governo criou para nos desviar de desafiar o sistema”

O que te traz esperança e felicidade nesses tempos confusos? 

Meu amor! Meus amigos! Minha irmã! Meus pais! Sou muito sortuda de ter pessoas lindas na minha vida, que me lembram como é importante achar aqueles com quem você pode falar sobre coisas pesadas.

Como superar o medo de parecer vulnerável? Isso foi uma questão em algum momento? 

Não, sempre escrevi desse jeito. Eventualmente, você precisa escrever fora de si, como habitar outras personalidades ou projetar fantasias em histórias de outras pessoas. Para mim, parecia que eu tinha que trabalhar isso ao longo desses discos. Quando escrevo músicas, até o Patience, nunca fiz pensando que as pessoas poderiam escutar. Agora percebo que fazemos algo que é para todo mundo e vai durar para sempre… Inquietante não é a palavra, talvez emocionante. Incrível nos conectarmos com tantas pessoas por meio da nossa arte.

O amor sempre foi uma inspiração para você? 

Claro! Para mim, amor é lindo, inspirador e desconcertante. Tipo, o que é que nos enche desses sentimentos? Quero trazer a astrologia para isso porque aprendi que tenho vênus em Libra, então sou um tipo de pessoa “apaixonada pelo amor”. Já me apaixonei seis vezes (risos). Alguns tiveram mais importância do que outros. Eles continuam vindo e apenas amo tudo isso.

Existe uma forma melhor de lidar com rejeição? Fazer músicas foi o seu jeito de superar uma fossa? 

Escrever, absolutamente, é o melhor jeito de esquecer ou entender melhor da onde vem a sua dor. Não sei dizer exatamente o motivo, mas funciona! Sobre términos, não sei dizer. Consigo dizer isso hoje: um pé na bunda é uma espécie de presente. Uma chance de se conhecer melhor, de saber como você quer que a sua vida seja. Pode ser algo mais doloroso para aquelas pessoas que basearam as suas identidades em sempre estarem em relacionamentos, em vez de procurarem a si próprios.

Um amigo, o Luccas Villela da banda E a terra nunca me pareceu tão distante, viu seu show em Berlim. Ele disse que a sua performance o lembrou de Kathleen Hanna, um tipo de energia explosiva no palco. O movimento riot grrrl é uma referência? 

Eu era muito nova na época em que ele estava rolando, então não me liguei até as que as comparações começaram a rolar. Quer dizer, assisti ao filme 10 Coisas Que Eu Odeio Em Você, quando estava na escola então já tinha ouvido falar sobre “Bikini Kill e Raincoats”, mas quanto a ter discos significativos, não aconteceu. Agora, como musicista, sou grata por tudo o que essas mulheres fizeram. Me relaciono com seu espírito e por sua luta. A música é inspiradora, porque mostra o quanto você consegue fazer com ideais e colaborações.

Li que vocês compraram um globo e colocaram fogo nele. Como surgiu a ideia da capa? 

A ideia veio no momento em que escrevi a linha “Your worlds on fire/ As I watch up from my high horse” (da música “High Horse”). Obviamente, algo pessoal, mas também é ambiental. Antes do disco ser lançado, aconteceram incêndios devastadores na Califórnia, Amazônia e Austrália. A terra está mudando e precisaremos nos adaptar. Precisamos mudar se queremos sobreviver. O título é quase uma piada, porque sou muito impaciente, do tipo pirraça de que quero agora. Me sinto mudada depois dessa experiência. Aprendi a desacelerar, a entender que as coisas levam tempo e apreciar o silêncio. Revoluções não acontecem do dia para a noite – elas levam anos.

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