Mil e uma versões de Ajuliacosta

A rapper repassa sua trajetória – da música à moda, de Mogi das Cruzes a São Paulo – e conta como foi dar espaço para seu lado vulnerável e emotivo no disco “Brutas Amam, Choram e Sentem Raiva”

Loading

Fotos: @vxldinei / @httsapollo

Ajuliacosta vive para o rap. Nascida em Mogi das Cruzes, município da região metropolitana de São Paulo, a artista viu no hip hop uma forma de se encontrar como pessoa e profissional. Passando por expressões da cultura desde jovem, como a arte de rua, a moda e a música, foi com roupas autênticas e letras vorazes que AJU firmou seu espaço e hoje mantém sua marca de roupa feminina, a AJC$hop, e se destaca como um dos nomes mais quentes da cena. Mas a música chegou antes da moda. Incentivada pelas surpresas que uma programação de rádio pode proporcionar, Júlia Roberta conta que era dessa forma que costumava consumir música. “Eu até comprei um rádio recentemente, para ficar escutando na minha casa. É muito bom, você não escolhe a próxima música e você não faz a mínima ideia, é tipo um set na sua casa”. Além dos sons recebidos pelas ondas radiofônicas, ela conta que costumava ouvir samba, pagode, rap e funk.

Já a moda apareceu do de desejo de participar ativamente do movimento hip hop. “Surgiu da minha vontade de me reafirmar dentro desse movimento, de participar disso fisicamente mesmo, de ter aquela personalidade do hip hop em mim. Eu tinha muita vontade de comprar, mas não tinha grana, então comecei a fazer”. Suas peças customizadas começaram a chamar atenção das amigas na escola – e a habilidade na costura veio também para contribuir com sua independência financeira. “Eu queria ter dinheiro para fazer meu rolê e ter as minhas coisas, não pensava em lucro e investimento”.

Entre pausas e retornos à música, ela lançou o EP AJU (2021), mostrando seu lado combativo, impetuoso e feroz. Uma espécie de contraste com seu primeiro disco, Brutas Amam, Choram e Sentem Raiva (2023), em que Júlia explora facetas sensíveis e emotivas, elaborando dores, vulnerabilidades e ressentimentos. A capa do disco apresenta justamente as diferentes versões da artista – a expressão neutra refletida no espelho manifesta essa fusão entre os lados feroz e sentimental. E a ambivalência de personalidade se mistura pelo repertório do álbum.

No lado A, em faixas como “Tão Gostoso”, “Amo te Ver te Juju”, “Brutas Também Choram”, “Roteiro Mudado” e “Você Não É Meu Homem”, ela expõe inseguranças e desejos aflorados pelos encontros e desencontros românticos. Já no lado B, AJU explora temas como ancestralidade e injustiça social – as faixas “Pq a Polícia Smp Acaba Com a Festa?” e “Empresário” retratam a truculência da polícia contra a população preta e periférica. “Queen Chavosa” ressalta a importância das parcerias femininas; e em “Mil e uma Treta”, a personalidade combativa de AJU parece ser homenageada. Para finalizar, “Cigana” é uma música de Ajuliacosta para Ajulicosta, sintetizando toda sua espiritualidade, sagacidade e avidez.

São batidas de rap com influências de trap, funk e afrobeats sobre as quais a caneta de Ajuliacosta surge afiada, certeira e com poder autobiográfico. Aqui, ela resgata um pouco dessa biografia – da música à moda, de Mogi das Cruzes a São Paulo.

O que surgiu primeiro, sua paixão pela moda ou pela música?

Foi a música, com certeza. Sempre fui muito de escrever, escrevia desde muito novinha, mais ou menos uns 13 anos. A moda chegou um pouco depois, com uns 15.

Como foi esse primeiro momento na música?

Eu gostava muito de escrever e comecei a passar isso para a música quando conheci o rap nacional para além de Racionais MCs. Naquela época do Emicida, Karol Conká, essa safra que veio. Foi aí que comecei transformar minha escrita em rap.

Antes de se interessar pelo rap, o que você escutava?

Escutava o que tocava na quebrada. Sou uma pessoa que escuta muito rádio, na minha infância inteira escutava o que tocava na rádio. Escutava muito a Transcontinental, lá tocava pagode, samba, música black e tocava funk aos sábados. Até comprei um rádio recentemente, para ficar escutando na minha casa. É muito bom, você não escolhe a próxima música e não faz a mínima ideia. É tipo um set na sua casa. Dependendo da rádio, dá muito bom. E sempre fui de escutar muita música periférica que rola mesmo – pagode, samba, funk e rap.

Você falou que começou a costurar com 15 anos. Como você se interessou pela costura e como surgiu a marca AJC$hop?

O interesse pela costura, pela roupa e pela moda em si veio muito com o rap. Surgiu da minha vontade de me reafirmar dentro desse movimento, de participar disso fisicamente mesmo, de ter aquela personalidade do hip hop em mim. Eu tinha muita vontade de comprar, mas não tinha grana, então comecei a fazer. Comecei a fazer customizando, as peças eram para mim e ia para escola com elas. Nisso, as meninas se interessaram e comecei a fazer para elas, mas tudo customizado. Para mim, era uma coisa legal que eu ia conseguir tirar uma grana. Tem muito disso, de me reafirmar dentro do movimento através da estética e tem muito de independência financeira. Desde muito novinha, sempre quis trabalhar, comecei a trabalhar registrado acho que eu tinha uns 16, mas antes eu vendia roupa porque queria muito trabalhar e não tinha a idade ainda. Acho que é a fase que todo adolescente passa. E eu acho que precisa ter essa independência financeira, isso me ajudou muito.

“As minas têm que provar mil vezes que são fodas para conseguir espaço. Não acontece só no rap – rola também no audiovisual, em contratações. Meu trabalho vem disso: fortalecer minas que estão na mesma correria que eu”

Julia, você começou a marca muito jovem, como funcionava a parte mais burocrática de planejamento de coleção, produção e entrega?

Novinha você não faz planejamento nenhum, você vive um dia após o outro [risos]. Acho que se eu fizesse um planejamento nessa época, tão novinha, hoje estaria com a minha marca consolidada. Mas não tinha como, eu não tinha a cabeça, não tinha estrutura familiar e eu queria viver muito. Foi o período que eu não estava morando com a minha mãe, depois dos meus 16, então não me importava com planejamento, o que me importava era ter dinheiro para sobreviver mês após mês. Eu queria ter dinheiro para fazer meu rolê e ter as minhas coisas, não pensava em lucro e investimento. Comecei a pensar nisso um pouquinho mais velha, já com os meus 20 anos. Comecei a pensar em sair da máquina de costura porque percebi que não dava mais para ficar costurando. Hoje eu tenho 26, não preciso mais costurar e confesso que tenho até um pouco de preguiça [risos]. Mas foi porque comecei a pensar sobre a partir dos 20. Novinha você não pensa, a única coisa que pensava era na minha independência financeira e ganhar minha grana fazendo o que eu conseguia. Queria viver a minha independência, não pensava em ganhar dinheiro com a marca, claro que a gente sonha alto, mas minha realidade era realmente sobreviver mês após mês.

E agora, como é o processo de pesquisa para lançar novas coleções?

Vem muito da temporada em que estamos. Essa mais recente eu tive que pensar muito que era começo do ano e, geralmente, as pessoas estão quebradas, então eu preciso lançar uma coisa eu faça e que vai render. Por isso, tem que ser peça pequena e isso já vai combinar que é verão e temporada de Carnaval. Escolhi três cores do mesmo tecido em que eu vou fazer peças pequenas e isso vai render, não vou gastar tanto e não vou precisar cobrar tanto. Começo de ano as peças têm que ser baratas, que é o que as pessoas vão conseguir pagar. E é o meu público, meu público-alvo é mina que trampa independente ou as mina que tão na correria. Eu penso em quem vai comprar e no quanto essa pessoa pode pagar.

Qual peça é essencial para toda mulher ter no guarda-roupa?

Um top reto. Eu juro por Deus que você pode colocar qualquer coisa e o topinho reto vai te ajudar, ele vai te ajudar muito.

Voltando para a música, quando você percebeu que desejava seguir por esse lado e como foram os seus primeiros passos?

Sempre fui muito de escrever e, com o tempo, conheci o Arena MC, uma batalha de rima de Mogi, mas eu nunca fui MC de batalha, só frequentava mesmo. Nisso, umas amigas minhas conheciam uns MCs e falaram que eu escrevia. Eles me convidaram para gravar uma música com eles e fiquei muito nervosa, eu tinha uns 14 anos. Depois da gravação, eles me convidaram para entrar no grupo Mistura de Fatos e eu topei. Cheguei a fazer um show com eles, mas eu era muito novinha. Não tinha cabeça e eu tinha noção de que não era a hora, estava passando por muita coisa familiar e sabia que não ia rolar. Saí do grupo um pouco depois e devo ter ficado menos de seis meses no Mistura de Fatos. Quando saí, continuei focada só na marca, em trabalhar e fazer outras coisas. Com uns 16 anos, comecei vir para São Paulo, eu passei em uma faculdade aqui, comecei dar rolê por aqui e conhecer muitas pessoas. Conheci uma amiga que tinha um amigo com estúdio e eu colava nesse estúdio para desenrolar. Mas parei de novo, porque muita coisa aconteceu na minha vida, agora eu estou mantendo as coisas e fazendo.

Em meio a isso, como foi o processo produção do EP AJU (2021) e do disco Brutas Amam, Choram e Sentem Raiva (2023)?

Foi uma produção difícil para mim, todos. Primeiro que eu fico meio doida quando preciso cumprir prazos e acabo deixando todo mundo doido também. Foram processos bem difíceis, para ser sincera com você. Estou me planejando para que o próximo trabalho tenha mais calma e leveza e menos neurose e expectativa. Parece parto quando você vai fazer um negócio desse.

Quais foram as maiores dificuldades e o que você acha que funcionou muito bem?

Eu sou uma pessoa que se cobra muito. Me cobro muito e eu cobro as pessoas ainda mais. Se o negócio passar o prazo, eu fico doida, e algumas coisas atrasam. Também não sei se me dei pouco tempo, fico pensando nisso: o que eu posso fazer para a próxima produção ser mais gostosa. As minhas capas deram muito certo, eu amo muito. Agora o que eu quero melhorar é tempo. É muito complicado você ter dois trabalhos e esses dois trabalhos precisarem muito de você. O que eu quero para nova produção é tempo; tempo para pensar nisso de fato, para compor e para fazer as coisas.

Um dos temas que você levanta é a raiva e a brutalidade, como no nome do disco e no trecho “me desculpa ser dura, mas eu sou a Júlia” do single “OK” (2021). Como você aprendeu a lidar com essa raiva e essa brutalidade?

Acho que eu sou assim por conta das mulheres da minha família. Venho de uma linhagem de mulheres que precisaram lidar com as coisas sozinhas. Fazer as coisas, estar na correria, trabalhar, sustentar os filhos e, como eu fui criada por essas mulheres, não tive referência paterna na minha família. Como eu vi essas mulheres, eu me tornei essa mulher que precisa segurar tudo. E essa mulher que precisa segurar tudo se sente sobrecarregada, ela não tem tempo para perder com coisa besta, sabe? E automaticamente se torna uma pessoa curta e grossa. Não é que é ser uma pessoa curta e grossa, mas é uma pessoa que não tem tempo para ficar debatendo sobre certos assuntos. Eu acho que me fiz assim, mas foi de forma natural por vir dessa linhagem de mulheres que precisaram ser assim. Eu trouxe essa parte de amor e choro porque é uma parte que tenho aprendido a lidar, para além desse sentimento que eu já conheço, lidar com essa outra parte, de dar amor, receber amor, coisas que talvez elas não tiveram e assim foi se passando. A partir do momento em que eu me permito viver isso, já é um passo para mudar a próxima geração, pelo menos é o que eu acredito.

“Estou me planejando para que o próximo trabalho tenha mais calma e leveza – e menos neurose e expectativa”

Era até uma coisa que eu ia te perguntar, no clipe de “Queen Chavosa” você exalta muita a relação de parceria entre as mulheres. Com essas parcerias foram importantes para você ao longo da sua vida?

Eu venho de uma família matriarca. Não é que não precisa, mas ter a ausência desse homem fez com que eu não pense muito nele. Sem contar que alguns deles profissionalmente são bem desrespeitosos. É muito difícil trabalhar com homem e ele não confundir as coisas. Não estou falando que são todos, mas tive experiências ruins e eu me baseei muito nessas experiências para focar em trabalhar só com mina ou pelo menos trazer mais. As mina têm mais sensibilidade, a gente consegue trocar uma ideia e eu acho que a gente consegue se respeitar mais. Eu já tinha essa vontade de trabalhar só com mulher, mas acho que vem muito a partir disso, de ter vindo de uma família matriarca. Seria bom ter um homem, mas não precisou e a gente conseguiu lidar com as situações e automaticamente eu trouxe isso para dentro do trabalho. Dentro do ateliê eu só trabalho com mulher. Na minha música tem homens comigo na minha equipe de shows, mas em equipe de projeto eu priorizo levantar o trabalho das minas. Meu, se não for a gente pela gente não vai ser, sabe? E eu sinto que tem muita mina fazendo coisas fodas e elas têm que provar mil vezes que são fodas para conseguir espaço. Isso não acontece só no rap, rola também no audiovisual, na parte de contratações, então o meu trabalho vem muito disso, de fortalecer essas minas que estão na mesma correria que eu.

E falando um pouco disso, você tem o projeto Set AJC que sempre rolam parcerias femininas. Como surgiu o projeto e como foram os bastidores do mais recente, o Set AJC 2, que saiu com sua nova coleção de roupas?

O Set AJC surge da necessidade de trazer essas minas à tona. Vejo muito set, mas dificilmente tem mulher no meio ou quando tem é só uma. O primeiro set AJC nós fizemos em uma casa AJC, eu aluguei uma casa e gravamos tudo junto. O objetivo era fortalecer a presença feminina na indústria da música por completo, queria muito que fosse tudo feito por mulheres. No set AJC 2, eu enchi mais a equipe e coloquei uma coisa para cada de fato, porque o primeiro foi muito improviso, eu peguei umas funções, e nesse eu consegui bancar com que tivesse mais mulheres. No primeiro a gente já tinha feito essa relação com a roupa e eu resolvi fazer nesse segundo também. Acho que é importante, que casa com a proposta e eu ganho das duas formas. Eu sempre estou ouvindo muita mulher, então fui pensando nos nomes. Fiquei com um pouco de receio se ia dar certo porque no primeiro foram seis meninas e nesse último foram quatro, mas é um projeto que eu quero que continue por mais tempo. Quero trazer mais de uma vez no ano, se possível, fazer as coisas acontecerem de uma forma boa e planejada. Acho que a gente tem esse poder de impulsionamento, então que a gente impulsione as minas que estão aí fazendo corre.

Uma coisa que me chamou muito a atenção na sua parte do set é que você fala: “Eu não vou entrar em gravadora/Eu vou montar minha firma”. Você pensa em trabalhar com produção de artistas? E qual a liberdade de se manter independente?

Sendo independente eu consigo ter controle total da minha carreira. Eu sei o que se passa, o que quero e o que não quero. Tudo bem, pode ser que as coisas demorem um pouco mais para mim, são tantos “pode ser”, mas eu tenho o controle das coisas. E se você entra em uma produtora hoje em dia, com certeza você fica na mão de um cara e eu acho que eu não gostaria de viver assim, não sei. Não sei se é porque a vida toda eu fui independente, então não faz sentido agora eu entregar todo o meu sonho na mão de alguém. Talvez se essa pessoa aparecesse lá quando eu tinha 16 anos e estava pensando, aí eu teria assinado com alguém. Mas agora, construindo minhas coisas, acredito que não. Agora trabalhar com outros artistas, talvez, futuramente. Não posso dizer nem que sim, com toda certeza, nem que não. Consigo pensar em pessoas que eu gostaria de trabalhar, mas agora eu não tenho tempo. Então fica muito no talvez.

“Acho que as pessoas que nascerem e viveram em São Paulo não têm a dimensão da oportunidade cultural que elas tiveram”

Falando um pouco das parcerias que você foi fazendo ao longo do tempo, como surgiu a parceria de produção com o MAT e a Iamlope$$?

A Iamlope$$ conheci há um tempo. Sabia que ela era uma mina produtora e quis muito conhecer o trabalho dela por ter esse desejo de trabalhar com mais mulheres. A gente fez alguns trabalhos e eles ficaram incríveis, eu sou muito feliz e grata por isso. O MAT é meu namorado e a gente se conheceu há uns oito anos. Quando nos conhecemos, ele já tocava em festas e já estava gravando no estúdio. Nisso, o cara do estúdio me passou o programa e eu passei para o MAT, aí ele começou a produzir os beats e comecei rimar em cima dos beats que ele fazia.

Voltando para o disco, eu acho “Cigana” uma faixa interessante para terminar. Ela dá essa impressão de continuidade e de que serão novas experiências para você apresentar em trabalhos futuros. Como rolou a produção dessa faixa e qual sua relação com o povo cigano?

Essa é uma faixa bem antiga que restaurei para trazer no álbum. Sempre tive muita conexão com o povo cigano, por conta da espiritualidade. Depois uma menina até falou que eu estava exoticando o povo cigano, mas não é a minha intenção. Tenho é muita fé em uma cigana e eu quis trazer um pouco disso para música, sempre tive conexão com o povo cigano. Minha mãe diz que antes de eu nascer, uma cigana leu a mão dela e falou que ela teria uma filha menina e que essa filha ia fugir de casa com 13 anos. E foi isso que aconteceu, então eu acho que é uma energia, uma egrégora que me acompanha há algum tempo. Não sei se tem relações com vidas passadas, mas eu sei que eu tenho essa afinidade, essa egrégora espiritual, e eu quis trazer isso para música.

E como foi essa fugida de casa com 13 anos?

Fugi essa primeira vez com 13 anos, mas eu fugi muito de casa, gata. Não vou lembrar direito, juro, era muita coisa. Só lembro que fugi porque eu era muito para além da minha idade. Eu já gostava de fumar maconha, de sair, de estar na rua e conheci a pichação muito nova, tudo isso deixava a minha mãe muito preocupada. Acho que foram várias coisas, muitas coisas, não dá nem para te contar sem falar uns traumas pesados.

Você chegou a pichar também?

Eu participei dos meus 13 até os meus 15 e foi muito importante para mim. Eu conheci muita coisa, conheci outro lado do rap e fiz muito rolê com o pessoal da pichação.

Você participou e participa de diversas vertentes da cultura hip hop – a arte de rua, música e moda. Qual foi a importância desse movimento para sua formação artística e pessoal?

Foi o que me formou, foi a minha escola. Através do rap eu comecei a pensar muito mais na minha identidade visual, racial e financeira. Consegui ver mais sobre desigualdade social e isso me trouxe muita coisa. Se você for reparar, algumas pessoas moram na periferia, mas não sabem ou não aceitam, de fato, a condição que elas têm. Elas se veem num outro patamar. Não sei se é o embranquecimento ou sei lá, achar que você tá em um filme ou em uma novela. Mas o mundo real é bem diferente, com uma guerra de classes e é muito difícil você quebrar essa bolha e conseguir sair disso. E mesmo que você saia, você precisa ter alguma coisa que te faça lembrar quem você é. Mesmo que você saia e ganhe grana, você precisa lembrar de coisas que não te façam embranquecer. E esse processo é muito complicado. Então, acho que o rap mantém os pés no chão e me ensinou para onde eu quero ir.

Júlia, agora você mora em São Paulo, mas você é de Mogi das Cruzes e cita bastante essa vivência do corre entre o centro e a região metropolitana nas faixas. Como em “Marido de Bandida” em que você dá um salve para alguns lugares de Mogi e em “Mina Chavosa” que você canta “Se eu ficar de favela o polícia joga pimenta / Se eu for nos pico de boy, alguém vai encher meu saco”. Como você acha que a sua vivência entre Mogi e São Paulo influenciou sua arte?

Vejo essa diferença até hoje. Acho que as pessoas que nascerem e viveram em São Paulo não têm a dimensão da oportunidade que elas tiveram. Digo sobre oportunidade cultural, aqui tem muita coisa que pode ser feita, principalmente para quem quer ser artista. Em Mogi não tinha muita coisa, e eu comecei a vir para São Paulo cedo porque me interessei por teatro e vim para São Paulo para fazer. Então as pessoas daqui de São Paulo não têm noção das oportunidades e privilégios que têm de estar nessa cidade cheia de coisa para fazer o tempo todo. Quando comecei a vir para cá, sabia que aqui era muito grande. Minha mãe fala que desde pequena eu falava que futuramente ia comprar um apartamento e morar aqui, porque São Paulo é muito, muito, muito movimento, coisas e eventos. Eu comecei a vir para cá e eu comecei a ver o quanto que o lugar de boy aqui é de boy mesmo. Lá em Mogi um lugar que a gente acha que é super de boy é arrumadinho, mas aqui a gente vê a desigualdade social de uma forma muito grande. A pessoa que é branca e rica aqui em São Paulo, ela é branca e rica mesmo, não que lá não seja, mas eu não tinha acesso. Aqui você anda nos lugares, você encontra, você vai em uma festa de rap e tem um monte. Comecei a ter esses encontros e para mim isso foi um choque, porque eu estava nesse momento de descobrir minha identidade racial e eu tinha muita raiva de boy. Não estava no meu nicho, eu achava eles folgados e não queria ninguém mexendo comigo ou me exoticando, então eu era bem hostil. Hoje estou um anjo comparado com o que eu era antes. O que eu mais senti de diferença foi isso, as pessoas não têm noção dos privilégios que tem por estar aqui e essa questão de diferença de classe. Foi um choque cultural mesmo.

Para finalizar, como você definiria o disco Brutas Amam, Choram e Sentem Raiva?

Esse disco marca uma fase bem importante na minha vida. Uma fase de me descobrir, questionar e de me entender. Apesar dele surgir de um processo árduo, em que eu me cobrei muito, acho que depois dele eu consigo ter leveza. Quis fazer o que eu queria, não o que esperavam que eu fizesse. Isso porque preciso confiar no que eu acho, não quero fazer mais do mesmo e repetir a fórmula de sempre. Eu quero conquistar sendo eu.

Loading

ARTISTA: Ajuliacosta