“Moliendo Café”: uma canção e muitos povos em 10 versões

A história de um grito latino-americano, composto há 65 anos, que, por meio de vozes diversas, traz à tona questões de classe, raça e colonialismo

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Fotos: Reprodução

Algumas canções, por vários motivos, têm um caráter universal. Não por terem sido produzidas por seres mitológicos ou deuses intocáveis da música; é mais porque conectam comunidades em escala global e fazem com que pessoas ao redor de todo o planeta se sintam acolhidas, representadas e, enfim, interligadas. Essa conexão acontece por conta das letras, da melodia, do contexto social e político nos quais essas verdadeiras obras-primas foram compostas – ou simplesmente por tudo, ao mesmo tempo. Vamos tratar aqui de um exemplo desse tipo de canção, mas desviando um pouco do habitual trajeto da música pop, frequentemente no topo das listas das plataformas de streaming mundo afora.

Foi em 1958, na cidade de Caracas, que o músico e compositor venezuelano Hugo Blanco criou a versão original de “Moliendo Café”, inicialmente uma balada instrumental formada por um reco-reco e o chamado cuatro, uma pequena viola de quatro cordas. Também há um contrabaixo no começo que lembra a escala de “Hit the Road Jack”, interpretada por Ray Charles, mas depois se descaracteriza totalmente, dando espaço para um arranjo de cordas bastante sul-americano. A música inclusive virou disputa judicial entre Blanco e seu tio José Manzo Perroni, que a registrou para Blanco na SACVEN (Sociedad de Autores y Compositores de Venezuela) porque ele ainda era menor de idade, mas alguns anos depois alegou que a composição era sua e que seu sobrinho a teria roubado.

Ainda no mesmo ano, o cantor também venezuelano Mario Suárez gravou a primeira versão cantada da música, cuja letra hoje é atribuída a José Manzo Perroni. Essa versão da música já não era mais uma balada, mas sim uma das chamadas llaneras, gênero musical camponês dos llanos, região interiorana que se concentra entre a Venezuela e partes da Colômbia. A letra, cantada num ritmo mais dançante, diz:

Cuando la tarde languidece renacen las sombras

Y en la quietud los cafetales vuelven a sentir

Esa triste canción de amor de la vieja molienda

Que en el letargo de la noche parece gemir

Una pena de amor, una tristeza

Lleva el zambo Manuel en su amargura

Pasa incansable la noche moliendo café

Quando a tarde se esvai renascem as sombras

E na quietude os cafezais voltam a sentir

Essa triste canção de amor do velho moinho

Que na letargia da noite parece gemer

Uma angústia de amor, uma tristeza

Leva o cafuzo Manuel à amargura

Passa a noite incansavelmente moendo café

Os versos ecoam um grito de resistência e um hino da cultura América Latina, grande produtora e consumidora de café do mundo. Além de tratar do labor de moer o café, processo que sucede o plantio, a colheita, a secagem e a torra dos grãos, os versos também abordam uma história de desilusão vivida pelo personagem Manuel enquanto ele trabalha. O personagem lamenta não poder viver uma ardente paixão, dado que aquele amor que possuía já não lhe pertence mais, e o que lhe resta é a labuta em frente ao moinho. É importante notar também que se trata aqui de um personagem demarcado como não-branco, dado o adjetivo “zambo” que lhe é atribuído e que, em português, se traduz como “cafuzo”, referindo-se às populações miscigenadas entre os povos originários americanos e os povos que vieram trazidos para o nosso continente de distintas partes de África na condição de escravos. Nesse sentido, o café não é apenas um signo cultural, mas também um artefato histórico que demarca o sangrento processo colonial europeu na América Latina.

Em 1961, o cantor e ator chileno Lucho Gatica gravou uma versão da música no suave ritmo de bolero, com acompanhamento de sopro, violinos e piano. Há algo ao mesmo tempo épico e acolhedor na canção, talvez por conta dos tons de música clássica e das levadas de jazz que se misturam. Essa versão foi lançada num EP contendo outras três canções intitulado Moliendo Café / Ahí Va / Enamorada / La Enorme Distancia. Ainda no mesmo ano, como não poderia faltar, tivemos uma versão brasileira instrumental bem acelerada que foi lançada por Poly E Seu Conjunto no disco Moendo Café, que continha também versões de outras canções populares latino-americanas. Angelo Apolonio, guitarrista do grupo, criou um arranjo impressionante na sua guitarra havaiana – pela qual é reconhecido até hoje –acompanhado de reco-reco, atabaques e chocalhos. Também em 1961 Sachiko Nishida gravou “Coffee Rumba コーヒー・ルンバ “, composta por Seiji Nakazawa enquanto uma versão mais lenta e em japonês de “Moliendo Café”, que foi posteriormente interpretada por outros artistas japoneses como Yōko Oginome, Yōsui Inoue e a banda The Peanuts. A adaptação tem uma letra consideravelmente mais alto-astral e fala mais sobre tomar café do que sobre moê-lo, além de dançar e apaixonar-se de forma ardente.

Já em 1962, a apresentadora, atriz e aclamada cantora de música tradicional italiana Mina Mazzini canta uma versão em espanhol arranhado de “Moliendo Café”, que foi lançada no seu disco também intitulado Moliendo Café. Com mais de 150 milhões de discos vendidos em todo o mundo, a cantora foi a que mais vendeu na história da Itália e ficou conhecida como a “Tigresa de Cremona”, cidade de onde veio. Houve ainda um caso muito curioso, referente a uma versão do icônico cantor espanhol – e galã das playlists de várias mães, tias e avós – Julio Iglesias. No seu disco intitulado America, lançado em 1976, Iglesias gravou versões de músicas de várias partes da América Latina, incluindo Brasil, México, Cuba e, é claro, Venezuela, com essa versão em ritmo de balada com tons de música disco ef unk estadunidense, contando com acompanhamentos de sopro, violinos, tambores e a sua inconfundível voz. Por conta desse cover, a torcida do Boca Juniors, no mesmo período, criou sua própria versão de “Moliendo Café” adaptada para o futebol, e que contou com os gritos da torcida que mais vibra no Estádio La Bombonera, sob o qual se escuta “dale dale ô” no ritmo da icônica canção.

Uma das versões mais interessantes é provavelmente a da Vieja Trova Santiaguera, um grupo de salsa criado em 1994 por músicos que, como o próprio nome sugere, já eram bastante experientes e originários de Santiago de Cuba. Além de serem artistas muito habilidosos das antigas e performarem a canção através da belíssima e única linguagem da salsa cubana, eles acrescentaram novos versos que trazem uma potência inigualável para o conjunto total da obra. Dentre as estrofes adicionadas à música, alguns dos versos mais bonitos são:

Moliendo café por la madrugada

Moliendo café incansablemente

Moliendo café, aunque muchos duerman

Moliendo café todita la noche

Moliendo café con toda la gente

Moliendo café el zambo Manuel

Moliendo café el viejo molino

Moliendo café, allá en Venezuela

Moliendo café, entre la montaña

Moliendo café, para la señora

Moliendo café, y la señorita

Moliendo café, y los caballeros

Moliendo café para todo el mundo

Moendo café pela madrugada

Moendo café incansavelmente

Moendo café ainda que alguns durmam

Moendo café a noite todinha

Moendo café com toda a gente

Moendo café o cafuzo Manuel

Moendo café o velho moinho

Moendo café lá na Venezuela

Moendo café na montanha

Moendo café para a senhora

Moendo café para a senhorita

Moendo café para os cavalheiros

Moendo café para todo o mundo

Já a última versão dessa canção toma um rumo totalmente diferente: o produtor de música eletrônica grego Panama Cardoon lançou uma versão em 2014 com levada de hip-hop, mas que mantém a essência da canção numa homenagem contemporânea ousada e interessante. A bateria dá uma energia dançante totalmente única para a canção, que sampleia a voz da versão bônus deste artigo, interpretada pela cantora cubana Xiomara Alfaro, que gravou em 1964 uma versão da música lançada no seu disco La Inimitable.

Esse breve passeio pela história dos belíssimos 65 anos da canção “Moliendo Café” – que passou por vozes, continentes e contextos dos mais diversos – reforça a ideia de que existem canções que possibilitam conexões mais profundas, que rompem barreiras linguísticas e culturais, apelando para um senso de humanidade muito expansivo e unido. É um (raro) tipo de canção que permite a construção de uma noção de pertencimento a partir de sentimentos, histórias e sensações profundamente humanas. (Ouça as versões de “Moliendo Café” nessa playlist)

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