O canto-água de Ana Cacimba

A artista paulista canta a fé afro-religiosa, a ancestralidade, a força do feminino e o afeto preto em “Azeviche”, seu eclético e caloroso disco de estreia

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Fotos: Paola Bertani

Quando Ana Cacimba canta, não é só sua voz que pode ser ouvida. Com ela, caminham muitas e muitos que vieram antes, os que estão agora e também aqueles que ainda virão. A conexão com sua ancestralidade é elemento basilar na sua obra e parte de um entendimento e um respeito ao passado que não se limita à homenagem ou à réplica, mas sim à construção de uma poética que ecoa histórias sem deixar de partir das próprias experiências. Seu mergulho interior e na memória dos seus permeia todas as faixas de Azeviche, seu primeiro álbum, já disponível nas plataformas de streaming.

A feitura de Azeviche vem de um processo que a artista classifica como de aquilombamento, de aproximação e afeto entre artistas, em sua maioria pretos, desejosos de compartilhar vivências e referências musicais. Um processo bem diferente do seu trabalho anterior, o EP Cura, lançado em 2021 e produzido em um momento crítico da pandemia, no qual as condições sanitárias não permitiam o encontro, forçando uma construção remota e mais solitária.

“A pandemia foi uma loucura. Sendo uma artista independente, periférica, mãe e, de repente, viver esse processo de isolamento, foi difícil. No primeiro edital da Lei Aldir Blanc municipal, consegui gravar o Cura. Também com a Aldir, mas pelo ProAC, pude conceber Azeviche, que nasceu de um processo completamente diferente, do desejo de aquilombar, da necessidade de ouvir o outro e também de ser ouvida. É de nós para nós. A criação dele foi um revirar de águas, com muito choro, muita bronca, muito acolhimento. Foi um filho gerado em vários úteros e amparado por várias mãos”, explica a artista em entrevista ao Monkeybuzz.

O som de Azeviche é, de fato, solar, convidativo, de (auto)reconhecimento. O título do álbum usa a gema de cor escura, considerada uma pedra de purificação e proteção feita de madeira fossilizada, como metáfora para as reflexões da artista durante a criação. Temas caros a ela, como a fé afro-religiosa, a ancestralidade, a força do feminino e o afeto preto encontram na voz poderosa e calorosa de Ana um veículo ideal. Com exceção de “Passarinho”, escrita por Niltinho Jr., todas as faixas são compostas por Ana. Outra parceira de composição é Gabi d’Oyá, que assina com Cacimba as faixas “Omí Purifica” (com participação de Anelis Assumpção) e “Intuição”, esta última também em colaboração com o rapper Winnit.

“A composição, para mim, vem de um lugar emocional, de uma conexão com minha fé. Meu canto é uma reza. Minha impressão é que muitas das letras são provenientes de sopros ancestrais, têm uma conexão com o sagrado. Dificilmente eu sento para compor e ver o que aparece. Uma das exceções a esse processo foi ‘Turmalina Negra’, que nasceu do meu desejo de escrever uma canção para o meu companheiro”, pontua.

A ligação com o sagrado acompanha Ana Cacimba desde sempre. Nascida em Diadema, em São Paulo, ela é descendente de quilombolas da comunidade de Caititu do Meio, no Vale do Jequitinhonha (MG), e cresceu ouvindo cantos e rezas das que vieram antes, muito inspirados no Tambor de Mina, religião de forte presença no Maranhão, em partes do Norte e, também, na região de onde vem sua família. A herança familiar se aliou às pesquisas em cultura popular, não só enquanto cantora, mas também como atriz e brincante. Sua intenção, desde o começo, foi alinhar essas várias formas de expressão, sem cair em academicismos. Sua pesquisa sobre os cantos tradicionais dentro dos quilombos era processada também com a prática, em um processo de “escrevivência”. O sincretismo, com referências às religiões afro-brasileiras e o catolicismo, se apresenta não como mecanismos de catequese, mas sim celebração, como na faixa “Procissão”.

Suas influências musicais são ecléticas: do manguebeat à tropicália, passando pelo maracatu e outros ritmos populares. Em Azeviche, ela procurou incorporar essa bagagem sonora eclética, missão, por sinal, bem-sucedida. Com produção de Maurício Badé e arranjos de Marcellus Meireles, o trabalho é luminoso e tem uma organicidade, com um uso preciso de instrumentos de corda, sopro, percussão e toques eletrônicos (a exemplo da vibrante” Kianda Sereia”), que convida o ouvinte a acompanhar a intérprete em uma jornada com contornos meditativos. Da abertura à faixa final, “Reza”, há um caminho fluído, que remete ao adentrar em uma mata, com suas belezas físicas e espirituais, com os encantados.

“‘Azeviche’ nasceu do desejo de aquilombar, da necessidade de ouvir o outro e também de ser ouvida. É de nós para nós. A criação dele foi um revirar de águas, com muito choro, muita bronca, muito acolhimento. Foi um filho gerado em vários úteros e amparado por várias mãos”

Ainda dentro dessas ligações entre o terreno e o divino, o passado e o presente, o próprio nome artístico de Ana parecia já ter sido predestinado. Ela ganhou o apelido Cacimba no teatro, inspirado na música “Ana Mora na Cacimba”, presente no disco Baião de Princesas, do grupo A Barca. Mas descobriu que sua ligação com a palavra vinha de muito antes. Quando pequena, Ana se afogou em uma cacimba e foi resgatada pela mãe. A menina vestia uma camisa de Nossa Senhora Aparecida, que na umbanda é representada por Oxum – à orixá ela dedica a música “Mamãe Oxum”. No terreiro, ouviu de uma guia espiritual que recebeu licença dos encantados para incorporar Cacimba ao nome artístico, pois, com sua arte, tinha algo a falar.

Com o disco navegando, Ana Cacimba aguarda agora transpor a força de Azeviche para os palcos. Os primeiros shows devem acontecer ainda em novembro, mas a apresentação do trabalho não vai ficar restrita aos palcos tradicionais. A artista pretende retornar ao quilombo de onde vem sua ancestralidade, em Catitu do Meio, para compartilhar o trabalho com os seus e também fazer registros para um trabalho futuro. “Estou muito realizada com esse trabalho. De alguma forma, ele liga vários sentimentos, sonoridades. A própria ideia da cacimba, da água, tudo isso é muito especial para mim. Meu canto é água e sou eu”.

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ARTISTA: Ana Cacimba