O carnaval lynchiano da Veludo Azul

Em seu EP de estreia, “Cinco Contos”, trio paulistano desenvolve anedotas ecléticas e vai da folia ao faroeste

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Fotos: Divulgação

Nos encontros espontâneos e duradouros, em que os ritmos se entrelaçam como personagens de uma narrativa intrincada, surge a Veludo Azul – uma banda que tece sua música com os fios da crônica. Formado por Emil Kopaz, Felipe Fretin e Sergio Hime, o trio paulistano é uma fusão de talentos individuais que se unem para contar cinco histórias presentes no EP de estreia, Cinco Contos – indo do carnaval ao faroeste, passando pelo drama e o romance. “São inspirações, não são descrições ipsis litteris da realidade, mas ilustra o carnaval – aquele expurgo, as pessoas saindo do personagem; outra é uma batida policial; outra é a descrição de um déspota sendo completamente sincero e quase cômico”, introduz Felipe, vocalista e compositor.

A história da Veludo Azul começou nas raízes da banda Cabeça Óca, formada em 2017. O encontro dos integrantes foi resultado de uma teia de conexões em que amizades de infância se transformaram em parcerias musicais. “O Felipe conhecia outro integrante, que já saiu, esse outro integrante trouxe o Sérgio, e o Sérgio me trouxe. Durante a pandemia, a Cabeça Óca foi meio que se desfazendo, foi perdendo o conceito, já não fazia muito mais sentido, e a banda se desfez”, explica o guitarrista Emil Kopaz. Tal como outras bandas e iniciativas artísticas, o período da pandemia dificultou a continuidade da Cabeça Óca, mas a ligação entre os três músicos foi o combustível para uma nova perspectiva. “Nós três, especialmente, tínhamos uma afinidade musical muito grande, e aí, nesse pós-pandemia conversamos sobre continuar o projeto, com novas ideias, cada um trazendo sua referência que já não cabia mais na outra banda”, contextualiza Emil.  A necessidade de expressão e reinvenção levou à formação da Veludo Azul, um projeto que busca explorar a imagética da narrativa dramática em horizontes sonoros. “A gente tenta flertar com o cinema e com as trilhas sonoras, criando cenários mesmo”, completa Emil. O pano de fundo musical tem um pé na tradição, do rock ao country, passando pelo ska até chegar à fanfarra carnavalesca, mas sem deixar de lado a espontaneidade eclética. “Ser plural dá margem para ir para diversos lugares e histórias… Nosso som é mais rock ‘n’ roll, um pouco mais country, mas também todas essas brasilidades modernas”, pondera Felipe.

“O que mais interessa numa boa história não é o conteúdo, mas a forma como ela é contada. Grandes narradores conseguem transformar uma ida ao mercado da esquina numa experiência rica”

A vontade de contar histórias por meio da música, para os membros da Veludo Azul, é uma trajetória pessoal que começa desde a infância. Tanto Felipe Fretin, como Emil Kopaz e Sergio Hime (guitarristas), tiveram suas primeiras incursões na música impulsionadas pelo ambiente de sua casa. A composição surgiu de forma orgânica, alimentada pelo hábito de leitura e pela curiosidade inerente à adolescência. “Eu nem sempre tinha de cabeça as músicas que queria tocar, então ficava inventando. Também sempre gostei bastante de ler, acho que tudo começou a partir disso”, relembra Felipe. Da mesma forma, Sergio e Emil se conheceram no colégio, onde se aproximaram pelo interesse em comum em descobrir a guitarra na adolescência. “A gente tinha uma banda no colégio, mas por um tempo cada um foi pro seu lado, com a faculdade. Mas acho que a nossa história é bem parecida, começa brincando e quando vê o negócio está sério”, comenta Emil.

A valorização da narrativa nas composições de Cinco Contos se dá pela inspiração no cinema. A admiração pela sétima arte como meio de contar histórias é um fio condutor fundamental na estética da Veludo Azul, a começar pelo nome da banda, referência direta ao clássico de David Lynch, de 1986. “É uma relação íntima, a gente conversa bastante sobre cinema e literatura e tenta trazer alguns elementos mais teatrais para as composições, algumas coisas imagéticas”, aponta Felipe. No EP, o gênero western é particularmente homenageado no country-alternativo-folk-pop de “Uga-Buga, Meu Amor”, que narra a saga de um anti-herói frente às contradições sobre liberdade política. No processo criativo, trilhas sonoras emblemáticas, de compositores como Ennio Morricone e Carter Burwell, foram um norte criativo. “Uma vez, na casa do Fê, ficamos ouvindo a trilha inteira de Era Uma Vez no Oeste, no sofá, conversando sobre… É algo muito nosso, que compartilhamos”, recorda Sergio. Porém, diferente das tramas grandiosas, as histórias de do EP tem uma abordagem mais de anedota, como rastros de memória. “Para mim, o que mais interessa numa boa história não é o conteúdo, mas a forma como ela é contada. Grandes narradores conseguem transformar uma ida ao mercado da esquina numa experiência rica”, reflete Felipe. Outro cenário que se destaca nos “contos” do repertório é o carnaval. Na música que leva o nome da festa, a banda traz sua capa do Sgt. Pepper’s – de Iemanjá a Pierrot, a narrativa de quem aparece é a não linearidade, o expurgo em festa. Já na derradeira “Pé no Pedal” a melancolia da Quarta-Feira de Cinzas toma conta ao lembrar que carnaval vai e vem, paralelo à vida. De forma virtuosa, as guitarras de Emil e Sergio se embrenham em timbres que lembram bandas como Son Volt, junto de um groove trópico-pop com percussão, teclados e baixo pincelando as cores da folia.

Toda ficção tem um pouco de verdade, e a relação de Emil e Sergio com o carnaval não se resume às músicas presentes em Cinco Contos – são, na verdade, reflexo de suas experiências musicais. Isso porque ambos fazem parte do Bloco da Piranha, que surgiu a partir de festas no Mundo Pensante, centro cultural paulistano na Bela Vista. Paralelo ao lançamento do EP, eles organizaram o primeiro desfile oficial do bloco no carnaval desse ano, mesmo com as adversidades que geraram discussões sobre o desinvestimento no festa de rua de São Paulo. “A festa já existe há nove anos, mas esse foi o primeiro ano de desfile oficial… E na minha trajetória na música, botar o bloco na rua foi a tarefa mais difícil que eu tive, por conta da falta de incentivo mesmo – a busca por patrocínio e a prefeitura que só atrapalha”, explica Emil. Nos 16 minutos espalhados em cinco músicas, o espírito carnavalesco é manifestado ao trazer sons do cenário das ruas. “Dessa dualidade, da música ao vivo no carnaval, versus aquele ambiente controlado do estúdio, tentamos por meio dos foley simular a bagunça, seja com a gente gritando, ou com garrafa quebrando”, conta Felipe.

“As músicas têm que trazer sensações e, ao escrever dessa forma, trazendo personagens, cenários, a gente quer isso: criar imagens na cabeça das pessoas”

As composições de Felipe Fretin encontraram em Kaneo Ramos, amigo de longa data e produtor, a sensibilidade necessária para aflorar as ideias que formam o cenário e as nuances das histórias. “Além de ser muito sensível, ele é fluente em muitos estilos e é um cara muito aberto e capaz de captar as ideias, mesmo quando elas ainda são um pouco difusas”, descreve Felipe. Ainda que lançado em janeiro desse ano, o trabalho já vinha sendo elaborado desde 2021, numa dinâmica à distância que foi desafiadora para a banda, em contato indireto com Kaneo. “A gente gravava alguma coisa, mandava para ele, ele colocava em uma pista da gravação, mandava de volta… Incrivelmente, foi bem dinâmico, mais fácil do que eu imaginei que seria”, relata o compositor. Uma vez no estúdio, a relação com o produtor se revelou ainda mais vibrante, cristalizando a colaboração na gravação da quinta e última música do EP, “Pé no Pedal”. “Pintou uma ideia na hora, sobre o final dela: o Kaneo começou a mexer no pedal de delay, quando vimos virou aquela loucura, foi um negócio que a gente não tinha imaginado, ficamos sem reação”, descreve Emil.

Como uma ótima introdução à sua história, a Veludo Azul cria em Cinco Contos uma experiência imaginativa, na qual personagens e espaços ganham existência por meio do som. De um modo singular, mas não exatamente pretensioso, o trio paulistano traz o storytelling como essência sensitiva de suas músicas. “As músicas têm que trazer sensações e, ao escrever dessa forma, trazendo personagens, cenários, a gente quer isso: criar imagens na cabeça das pessoas”, define Emil.

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ARTISTA: Veludo Azul

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