O que vem depois do corpo-espetáculo de Loïc Koutana?

O artista está expandindo o seu repertório já abrangente (moda, dança, performance) para a música. Conversamos com L’Homme Statue sobre sua nova e corajosa vida musical

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Fotos: Gleeson Paulino

A performance é uma expressão artística em que o corpo é utilizado como um instrumento de comunicação que se apropria de objetos, situações e lugares – quase sempre naturalizados e socialmente aceitos – para dar-lhes outros usos e significações. Como arte que se ocupa do corpo, atravessou distintas concepções, buscando questionar limites e fronteiras da cultura e do cotidiano a ele associados em nossa sociedade. Hoje, usando mediações tecnológicas, promove outros modos de apresentação do corpo, ao mesmo tempo que se propõe a repensá-lo, convidando-nos a refletir sobre os novos desafios da arte e do corpo na atualidade

PERFORMANCE: UM FENÔMENO DE ARTE-CORPO-COMUNICAÇÃO

Artigo de Fernando do Nascimento Gonçalves para publicação Logos, Comunicação e Universidade, da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)

Esta definição de performance artística fica evidente quando olhamos para a carreira do performer Loïc Koutana, conhecido pelo projeto L’Homme Statue. O artista conversou com o Monkeybuzz quando estava prestes a embarcar para São Paulo, após uma apresentação do Teto Preto, em Recife. O curioso é que, apesar do seu background, nossa conversa foi também sobre música, para além da performance.

Ao lado do músico Pedro Zopelar, colega de Teto Preto, o artista franco-congolês está colocando para fora um talento que antes estava reservado ao seu quarto de adolescente. Loïc é cantor. Porém, morria de vergonha de soltar a voz em frente a família formada por talentosos músicos. Ele não se julgava bom o suficiente. Guardou a ideia. Agora, na busca por encontrar outros modos de apresentação que levem em consideração seu corpo negro, encontrou refúgio no canto. O processo até aqui, aliás, é reflexo da evolução de seu trabalho performático: foi a experiência de autoconhecimento do artista que fez com que ele se voltasse para a voz. Linn da Quebrada, King Krule, Milton Nascimento, Nicolas Jaar, Luedji Luna e Blood Orange estão na sua lista de influências.

Foi em 2014 que Loïc chegou ao Brasil. Ele veio para participar de um estágio em Manaus, durante a Copa do Mundo. Ao ingressar em uma pós-graduação na Universidade de São Paulo, mudou-se para a capital paulista e o que fixou na cidade foi o amor pelo atual namorado Raphael Lobato. E foi aqui que sua veia artística pulsou mais forte. Ainda assim, para ajudar a sua família (que passava por uma difícil circunstância econômica) fez das passarelas de Paris, seu meio de subsistência. “Imagine, as agências de modelos chegavam para o jovem negro e diziam: ‘desculpe, não escolhemos você porque já temos gente com o seu perfil’. Sempre um monte de brancos. Nos jobs, só tinha um preto. Eu estava muito pouco representado. Foi aí que eu entendi que precisaria lutar o dobro para ter o que eu desejava. Nós negros sempre lutamos mais.” Parisiense e filho de pai congolês o artista, durante sua infância na Costa do Marfim, passava os recreios dançando, brincadeira preferida das crianças ao seu redor.

O álbum intitulado Ser está previsto para ser lançado em 2020, através do selo ODDiscos. Confira o videoclipe do single “Braços/Vela”, definido como “um suspiro de L’Homme Statue sobre determinação e esperança”. Os destroços queimados do apartamento de Loïc durante um incêndio serviram de cenário para o vídeo. A tragédia aconteceu no começo desse ano, mas, graças à mobilização de amigos na internet, o casal pode reconstruir a vida. A direção é de Doug Bernardt, realizador do premiado filme de Bluesman do rapper brasileiro Baco Exu do Blues.  Bases eletrônicas entre sonoridades orgânicas sustentam melodias afeitas ao Soul e R&B que se mesclam ao Jazz em alguns momentos. Veja e ouça:

Antes, eu estava sempre dentro de um projeto, dando vida à ideia de outra pessoa. Agora, meu grande desafio é contar minha própria história

De que forma a sua relação com a dança está se encaminhando como reflexo da atuação no Teto Preto?

O que aprendi de mais importante no Teto Preto: arte e política estão mais ligados do que imaginamos. Falo isso porque quando eu comecei a performar no Teto Preto, eu falava apenas português. Minha missão era dançar. Quando você dança, seu corpo vai imitando e desenhando as palavras, a dança tem mais impacto. Minha missão, no início, era mais a de traduzir o que a Laura falava. Então, no começo, servia mais para entender língua. Eu entendo português justamente incorporando a letra da Laura no meu corpo. Com o empoderamento vindo das letras, dos textos, foi assim que as pessoas começaram a se tocar. Sobre o que a Laura falava em “Bate Mais” estava sendo totalmente explícito através da dança.  Foi desta forma que o corpo preto cresceu, as pessoas começaram a colocar a Laura como emblema. Também entendi o impacto do corpo preto na cena eletrônica, que nos desvaloriza. Tudo isso foi muito importante para mim. Foi fundamental para eu entender que o corpo e a política estão conectados também. Eu não entro só para dançar, mas para traduzir tudo que meu povo preto passa, para reproduzir o que as as manas, as bees, as trans e todas minhas irmãs pretas passam. Então, eu entendi com o Teto Preto que o corpo e a arte tem uma responsabilidade muito importante, é algo que vou levar na minha carreira para sempre. Apenas fazer um show lindo, para dizer “sou lindo e tchau”, não. Para fazer arte é preciso impactar o corpo e a alma.

Como foi sua passagem pelo DGTL Barcelona, reação do público e a estrutura?

Este episódio do DGTL disse muito sobre a importância do empoderamento. Não digo só do empoderamento preto, mas empoderamento artístico. A importância de nos respeitar e fazer valer nosso trabalho, fazer valer nossos direitos. Pela primeira vez na minha vida, eu tive que me posicionar de fato, lutar pelo meu direito. E foi uma situação que eu nunca deveria enfrentar na vida. O episódio foi um grande furacão, mas foi importante na minha carreira de artista para mostrar a mim mesmo, e aos meus irmãos e irmãs artistas negros, a necessidade de defender nossos direitos. Quando estive em Barcelona, o tratamento foi totalmente diferente. Depois daquilo que aconteceu, fomos recebidos dentro de um bom hotel. Nós tínhamos uma van para irmos do hotel ao festival, localizado ao lado do evento. Tinha um camarim muito decente, ganhamos atenção do festival igual cada artista do line-up. Passar por tal tratamento foi muito importante para mim, porque performance nas festas é sempre considerado algo para completar pista. Não, dessa vez, eu e AUN fomos tratados da mesma forma que um DJ internacional, DJ gringo. Esta deveria ser uma situação normal desde o início. Fiquei feliz e agora estou entendendo que sim, precisamos nos impor, e não significa ser arrogante, é simplesmente fazer seu trabalho honestamente e receber o tratamento merecido. 

Desde quando você se lembra de cantar?

A minha historia sobre música começa com meu pai e irmão que tocam baixo e piano, isso é algo que me liga a eles. Mas eu sempre me escondia e nunca quis mostrar do que eu seria capaz, tinha medo de cantar na frente deles, são músicos talentosos, disciplinados. A música sempre foi presente na família, na minha vida, mas demorou para eu assumir o cantar. Eu sempre gostei de música, quando criança, eu queria ser bombeiro ou outra profissão fora do meio artístico. Mas música sempre foi presente na minha vida, estou chocado e ficarei surpreso se eu viver de cantar. Eu não controlo minha voz, às vezes, sai em falsete ou mais grave, isso nunca fez sentido para mim, então, eu nunca me assumi oficialmente na música.

Qual foi o ideal ou desejo em comum que uniu você e o Zopelar no projeto?

Obviamente, começou pelo Teto Preto. Não nos conhecíamos artisticamente, a afinidade aconteceu durante as turnês, os shows e ensaios. De repente, ficamos amigos até eu ficar sozinho com ele no camarim e poder contar que decidi cantar, despretensiosamente, começamos a se encontrar para fazer música. A ideia nunca foi de produzir um álbum, foi simplesmente de fazer música e curtir. Isso é um ponto em comum, o amor à música. Falamos isso pois estamos em uma época em que todo mundo quer fazer música para bombar. No Teto Preto, sou feliz de produzir música. Fazemos umas piras, não somos valorizados pelo mercado por isso, mas estamos feliz por produzir, por fazer música.

Quantas tracks estão no álbum?

São sete músicas, mas não posso falar os nomes. Cada pessoa vai descobrir, cada faixa é um novo capítulo em que eu mostro um lado meu. Às vezes, tem reflexão, como na música inspirada no incêndio que destruiu minha casa e do Raphael. Até hoje, esta situação me toca, deixa triste, mas fez parte da minha história, não tem como apagar. As músicas falam a respeito de amor, ciúmes, medo, empoderamento, e sobre negros poderem desenvolver suas ideias. Falam de assuntos que eu não sei como expor nas redes sociais e eu decidi abordar pela música. O álbum tem Zopelar na produção, participação do Chay Suede e o Maurício M, era como se fossemos amigos de longa data. Tem participação surpresa! A arte é do Gleeson Paulino, a capa é um trecho do clipe filmado pelo Doug Bernardt.

De que forma você pretende conciliar a carreira como performer, modelo e cantor?

Eu me desliguei das três agências de modelo em que eu trabalhava. Parei de modelar, graças às redes sociais, eu entendi que não é necessário agência para ser modelo. Você pode ser seu próprio chefe. Mas o mundo da moda sempre estará presente na música através de clipes e do álbum, que tem um lado visual muito forte. Minha prioridade, por enquanto, vai ser Teto Preto e o projeto solo. Como não dá para fazer tudo na vida, eu decidi deixar a carreira de modelo de lado, mas ela vai estar presente dentro dos meus projetos

Têm alguma previsão de shows marcados?

Recebemos propostas de festivais, mas queremos analisar tudo com muita calma. Talvez priorizar shows em espaços menores, não sabemos.

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ARTISTA: Loïc Koutana

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