O vocabulário sônico de Chrisman

O artista congolês repassa sua trajetória e fala de “Dozage”, um épico de 35 faixas que vai do tarraxo ao funk, passando por dancehall, drll, amapiano e gqom

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Fotos: Ian Wainaina

Chrisman ainda não tinha ideia das possibilidades no mundo da música até entrar em um home studio pela primeira vez. Nascido na cidade de Goma, no Congo, ele estava imerso no hip hop e nas rimas de freestyle. Por volta dos 18 anos, foi gravar sua primeira música como MC e deparou-se com os produtores musicais. A partir dali, tudo mudou. “Eu via eles trabalhando, a forma como escolhiam os samples, como eles mexiam nos programas no computador e fiquei muito interessado”, conta. “Eu cheguei a pedir para eles me passarem o programa, mas eles não me deram. Disseram que eu tinha que pagar e eu não tinha dinheiro”.

Mesmo sem voltar para casa com aquele programa, a ideia de produzir músicas não saiu da sua cabeça. Tempos depois, ele acabou esbarrando na internet com uma lista de programas gratuitos para fazer beats. Entre eles estava o FL Studio, o famoso Fruity Loops, um dos mais populares softwares de criação de música — especialmente na música eletrônica. “Eu só baixei, nem sabia o que era direito”, lembra-se. Em 2016, ele começou a arriscar suas primeiras produções ainda sem imaginar onde aquele caminho o levaria. Sete anos mais tarde, Chrisman mudou de país e, após três discos e dezenas de trabalhos com outros artistas da África e de outros continentes, desponta como um promissor e talentoso produtor da música afroeletrônica contemporânea. Lançado em novembro, seu novo álbum, Dozage, é um épico de 35 faixas que atesta o poder de fogo do jovem artista.

Mas até ganhar destaque com sua música, Chrisman passou por uma série de desafios. Goma, sua cidade natal, é palco de uma violenta guerra entre as forças do Estado e um grupo rebelde. O conflito se arrasta há mais de 25 anos e impacta diretamente a vida cotidiana das pessoas, que sofrem com quedas ou racionamento de energia elétrica, por exemplo. “Não havia eletricidade na minha casa. Eu só tinha acesso à eletricidade por volta das 23 horas ou meia-noite até 5 da manhã. Essa era a hora que eu acordava, pegava o computador da minha mãe e fazia música a noite toda. E quando a energia caía, eu voltava a dormir”, detalha o músico.

Diante desse panorama, Chrisman sonhava em ir para um lugar onde o cenário musical fosse mais ativo e sua música pudesse chegar mais longe. Para ele, esse lugar era Uganda, país vizinho ao Congo. “Ninguém acreditava em mim. Então eu pensava que talvez se eu mudasse o meu ambiente e me colocasse num lugar onde as pessoas estivessem mais conectadas à música, eu seria melhor compreendido”, explica. Naquele momento, o que estava em alta era a música de artistas como Eddy Kenzo, Ykee Benda e outros artistas de Uganda. “Quando eu via essa música na TV, eu ficava tipo: ‘Uau! Olha a música que as pessoas estão fazendo! A TV do Congo tocava mais a música dessas pessoas do que música congolesa, então eu pensava que talvez o lugar certo para se estar fosse Uganda. Talvez fosse um lugar onde houvesse mais apoio para as artes. Era uma ideia na minha cabeça e eu decidi tentar.”

“Gosto de deixar as pessoas confusas. Espero que topem com minha música e não saibam bem o que dizer”

Sem muito — ou praticamente nenhum — planejamento além do sonho e da vontade de fazer sua música, ele pegou a estrada e enfrentou dificuldades logo de cara. Chegou em Kampala, capital do país, aos 22 anos. “A primeira noite foi muito difícil. Eu não tinha dinheiro, estava morrendo de fome, dormi na rua. Eu tenho uma prima que vive em Uganda, mas muito longe. Ela veio pra Kampala, me trouxe comida e me ajudou”.

Aos poucos as coisas começaram a engrenar para Chrisman e alavancaram de vez quando ele foi viver na Nyege Nyege Vila, uma casa mantida pelo selo Nyege Nyege Tapes, com vários estúdios, onde vivem outros artistas e produtores, além de tantos músicos passam por lá em residências artísticas. Esse contato com outros músicos foi transformador para Chrisman, que sempre teve uma personalidade mais tímida e introspectiva. “Eu tive de vencer o meu medo, ser eu mesmo e expressar meus sentimentos e minhas visões para as pessoas através das músicas”, pontua.

“Eu tive de vencer o meu medo, ser eu mesmo e expressar meus sentimentos e minhas visões para as pessoas através das músicas”

Zona incógnita

O contato diário com esse movimento de artistas teve impacto direto sobre Chrisman logo no seu primeiro disco. A mixtape Ku Mwezi (2021) adicionou a sua paleta musical as influências do gqom, estilo musical sul-africano que ele passou a pesquisar mais a fundo após conhecer o produtor Menzi na Nyege Nyege Vila. “Fiquei muito interessado e comecei a experimentar com aquilo, incorporando as coisas que eles fazem por lá, mas também adicionando algumas esquisitices e trazendo a bagagem do trap, que vinha do meu passado no hip hop”, detalha.

Era o início de uma caminhada em ascensão, com amostras de inventividade de um produtor musical do tipo cientista, que analisa a fundo determinados gêneros musicais e os desdobra a partir da sua individualidade. Mas ainda estava longe de demonstrar todo o seu potencial. “Acho que nesse disco ainda não consegui expressar tudo que eu queria. Ele captura um momento importante da minha vida, mas eu tinha mais a oferecer”, pontua.

O amadurecimento viria no trabalho seguinte, o seu primeiro álbum: Makila (2022). “Foi o momento em que minha música estava muito conectada a espiritualidade. É uma homenagem a todas as pessoas que tentaram me motivar quando eu estava em Goma, especialmente ao meu avô, que foi a primeira pessoa que realmente acreditou em mim. Sem isso, eu nunca teria vindo a Uganda. O título é uma abreviação do nome do meu pai. E na língua lingala também significa sangue, o que remete à família mas também à guerra que vem acontecendo há anos na cidade de onde venho”.

Enquanto o trabalho anterior fazia uma imersão no gqom, no seu álbum de estreia Chrisman mostrava uma releitura radicalmente singular da Tarraxinha, música originada na Angola e conhecida pelo BPM mais lento, com uma levada cadenciada e ritmos envolventes. Nas mãos do produtor congolês, esse som ganhou uma abordagem minimalista e atmosférica, carregado de tinturas mais sombrias, com timbres industriais, toques de distorção e subgraves carregados de pressão. Uma prova disso é a meditativa “Angels of Kivo”, que contrasta a beleza do grandioso Lago Kivu (entre o Congo e Ruanda) e as incontáveis vidas que foram perdidas na região.

Em outras faixas, como “Apana Gusa”, Chrisman mostra uma sensibilidade para música eletrônica que vai muito além da pista de dança ao incorporar o que ele chama de “dirty sound”. “Essa sujeira no som”, ele explica, “é importante para mim porque descreve como eu faço minha música, como eu construo minha vibe. Quando não é algo muito sujo, acho o som um pouco chato. É nessa sujeira que eu encontro um clima mais sombrio. E é para esses caminhos mais sombrios que quero levar minha música”.

“Essa sujeira no som é importante  porque descreve como faço minha música, como construo minha vibe. Quando não é algo muito sujo, acho o som um pouco chato. É nessa sujeira que encontro um clima mais sombrio. E é para esses caminhos que quero levar minha música”

Todos esses passos formaram as bases para chegar ao seu álbum mais recente. Com 35 faixas, Dozage é uma odisseia do som afroeletrônico contemporâneo, atravessando os mares do tarraxo, amapiano, gqom, afrohouse, funk, drill, dancehall e o que mais vier pela frente. O álbum captura um processo de trabalho constante e de meticulosa dedicação, bem como as mutações de Chrisman como produtor-pesquisador. “Eu não o havia concebido como um álbum. É uma série de músicas que fui guardando em cerca de quatro anos, desde 2020”, conta.

Influenciado pelo paulistano DJ Chris Fonte do Funk, a faixa “Balisa”, por exemplo, é um funk aditivado por subgraves demolidores. Em “Kiki”, os hi-hats oriundos do trap são retorcidos e fragmentados ao limite, até soarem como detritos cósmicos. “Mukumbi”, por sua vez, é uma ousada aproximação do minimalismo drone, em que um beat flutuante beat, como numa pintura impressionista, é mais sugerido do que nítido e definido. Já “Itika” parece levar o dembow dancehall na direção de um suspense alienígena.

Abarcando uma enorme gama de gêneros musicais, Dozage não soa, no entanto, como um catálogo ou um amontado de faixas soltas. Isso porque todas as músicas apontam sempre para uma zona incógnita, para as dessemelhanças, para os desvios — e não para as marcas características desses estilos. Chrisman mostra-se hábil em dominar esses vocabulários sônicos, mas ainda mais incrível no seu poder de desnortear os seus fundamentos e explorar novos sentidos. Como se a sua música fosse sempre um novo território. “Gosto de deixar as pessoas confusas. Espero que topem com minha música e não saibam muito bem o que dizer”, admite Chrisman.

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ARTISTA: Chrisman