Os 95 anos do Coral Alexandrov

A história de Alexander Vasilyevich Alexandrov, primeiro regente do Coral do Exército Vermelho, e as possibilidades culturais em uma sociedade comunista

Loading

O Coral do Exército Vermelho, também conhecido como Coral Alexandrov, é um marco da música soviética, da música clássica e da dança. Trata-se de um grupo envolvendo um coro masculino, uma orquestra e um conjunto de dança criado há exatamente 95 anos – em 1928, 11 anos após a Revolução Russa de 1917. Além de conduzir um dos corais russos mais reconhecidos internacionalmente, Alexander Vasilyevich Alexandrov, o primeiro regente do coral, foi o compositor por trás do “Hino Nacional da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas”.

Criador e criatura: Alexandrov, o coral e o hino da URSS

Alexander Vasilyevich Alexandrov nasceu em 13 de Abril de 1883, em Plakhino, a alguns quilômetros ao sul de Moscou, e veio de uma origem humilde e camponesa, assim como boa parte dos russos no século 19. Desde pequeno, demonstrou muito interesse por música, dado que tinha ouvido absoluto e logo começou a se apresentar na igreja, tocando a viola de arco e cantando, além de ser introduzido a canções folclóricas. Ainda criança, aos nove anos de idade, Alexandrov é convidado por um solista que o viu tocar e cantar para estudar na escola de música mais antiga ainda em atividade da Rússia, hoje conhecida como Capela Acadêmica Estatal de São Petersburgo, onde se formou no ano de 1900.

O Coral do Exército Vermelho foi criado em 1928 enquanto ferramenta para reavivar as tropas revolucionárias, reanimando-as após um longo período de disputa que levou à derrocada do czarismo. Essa estratégia de glorificação dos ideais revolucionários por meio da arte permitiu que as pessoas pudessem reviver os ocorridos de Outubro de 1917. Momentos históricos como a invasão do Palácio de Inverno em São Petersburgo pelos bolcheviques, onde residia a família real russa dos Romanov, executada em 17 de Julho de 1918, foram registrados pelas produções artísticas soviéticas.

Alexander Vasilyevich Alexandrov (1883-1946)

Em 12 de Outubro de 1928, Alexandrov – já professor no Conservatório de Moscou – conduz a primeira apresentação oficial do coral, que consistia em doze soldados da revolução: oito cantores, um instrumentista tocando o bayan – uma espécie de sanfona popular no antigo Império Russo – dois dançarinos e um recitador. O espetáculo consistiu em pequenas cenas musicadas da vida militar. A partir daí, o compositor e condutor de orquestra desenvolve pesquisas importantes, como a transcrição das primeiras canções soviéticas escritas ao longo da guerra revolucionária e a recuperação de músicas folclóricas russas que nunca tiveram protagonismo durante o regime czarista. Suas composições autorais dotadas de muita criatividade também fascinaram os ouvintes da época e até hoje fazem parte do repertório do coral. É importante dizer também que, assim como outros tipos de artistas, o coral viajava por toda a União Soviética entretendo públicos diversos a partir de financiamento direto do governo, o que permitia a divulgação de artes soviéticas por todo o território da URSS. Em 1929, por exemplo, o coral se apresentou para trabalhadores que construíam a chamada Ferrovia do Extremo Oriente, que cruza de norte a sul a região leste do país, se conectando com fronteiras da China e da Coreia do Norte e passando por cidades como Vladivostok, Blagoveshchensk e Yakutsk.

Em fevereiro de 1933, o coral se apresentou pela primeira vez no Teatro Bolshoi de Moscou para lideranças políticas do país. Após essa apresentação, o camarada Alexandrov tem uma conversa com o então Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética, Josef Stalin, o que mudou para sempre os rumos do coral por meio de um investimento pesado em sua produção artística. Alexandrov não era apenas artista ou professor de música, mas uma figura política de extrema relevância e um agente na política global daqueles tempos de Guerra Fria. Nesse contexto de um governo comunista, houve um grande estímulo para artistas amadores nos baixos escalões do exército, de modo que, ao final de 1933, o coral já era composto por mais de 135 homens. As possibilidades de criação artística de Alexandrov foram consideravelmente expandidas, e ele acabou inaugurando, de forma pioneira, um tipo de conjunto artístico que não existia em nenhum lugar naquela época, já que consistia em soldados envolvidos com as artes performáticas da dança e da música, sintetizando tradições variadas da música folclórica, canções soviéticas entoadas pelas massas durante a guerra e música clássica tradicional.

Por ordens do próprio Stalin, o hino da URSS foi criado em 1938 por Alexandrov, originalmente para ser o “Hino do Partido Bolchevique”, partido responsável pela Revolução Russa e a instauração do governo soviético. O crescimento do fascismo na Europa Central, em países como a Alemanha e a Itália, já era um sinal para os soviéticos de que era necessário iniciar uma campanha contra o nazi-fascismo imediatamente. Não fosse essa campanha, acompanhada de um exército de mais de 6 milhões de soldados do Exército Vermelho lutando contra as forças de Hitler, o nazismo não teria sido derrotado em 1945.

A canção era “A Internacional”, uma música de origem francesa e tom internacionalista que reivindica a união da classe trabalhadora em todo o mundo – composta por Eugène Pottier,  em 1871. Por ser uma canção que não se refere diretamente ao contexto russo ou do bloco soviético, cria-se uma melodia que narrasse explicitamente figuras e fatos históricos russos. É por isso que algum tempo depois foi criada a letra do hino, pelo escritor de livros infantis russo Sergey Mikhalkov e o poeta armênio Gabryiel Ureklyan, da qual traduzimos um pequeno trecho:

“Uma união inquebrável de repúblicas livres,
A Grande Rússia selou para sempre.
Longa vida à criação pela vontade do povo,
À unida e poderosa União Soviética!

Seja glorificada, nossa livre Pátria,
Confiável fortaleza da amizade do povo!
Estandarte dos Sovietes, o estandarte do povo,
Que ela conduza de vitória em vitória!

Através das tempestades, o sol da liberdade brilhou sobre nós,
E o grande Lenin iluminou o nosso caminho.
Stalin ensinou-nos a ser fiéis ao povo,
Ao trabalho e às conquistas, fomos inspirados!”

O Coral recebeu honrarias como a “Faixa Vermelha da Ordem da Estrela Vermelha” e Alexandrov também conquistou suas próprias condecorações, como o prêmio de “Artista do Povo da URSS”, a “Ordem da Faixa Vermelha do Trabalho”, a “Ordem Lenin” e o Prêmio Stalin da Paz de primeiro grau. Após sua morte, seu nome seguiu recebendo homenagens e foi associado a instituições, programas de incentivo à cultura, praças, ruas, monumentos públicos e condecorações militares.

O papel da música em uma sociedade comunista

Mas qual é a importância da arte e da música em uma sociedade socialista ou comunista? O livro Sobre Literatura e Arte (1936), compilação de reflexões sobre Estética na obra de Karl Marx e Friedrich Engels, afirma que, dentro de uma sociedade capitalista, certas áreas de produção espiritual são deliberadamente hostilizadas, como é o caso das artes. Isso não significa dizer que, ao longo dos séculos de regimes capitalistas por todo o mundo, não houve grandes artistas e obras. No entanto, as artes em sociedades de falsas democracias burguesas se desenvolvem respirando por aparelhos – o máximo esforço para o mínimo reconhecimento. A escravidão do capitalismo obriga a artistas a encontrarem força criativa e cura em meio a um mundo doente e decadente. Dessa forma, os autores indicam como fundamental a ideia de que a destruição da propriedade privada significaria a eliminação do maior obstáculo para o florescimento da criação artística em todo o seu potencial.

A teoria marxista, entretanto, precisa ser respaldada na materialidade dialética do socialismo real da URSS. A verdade é que, mesmo antes da União Soviética, a Rússia já era um fenômeno de compositores de música clássica – Pyotr Tchaikovsky, Sergei Rachmanioff e Igor Stravinsky. Dentro da teoria musical soviética, há um encontro entre as tradições do passado e a busca pela experimentação, reunindo valores como a democracia, o humanismo, a cidadania e a busca pela construção de uma identidade nacional, mas sempre tendo em mente que o país era composto de muitos grupos étnicos e culturas que deveriam ser respeitadas e celebradas. Ao mesmo tempo, incorporava o ideal leninista de transformação revolucionária da realidade social mundial e a construção de um mundo comunista. Isso fica evidente no aspecto estético quando nos voltamos para o realismo soviético, impresso tanto nas artes visuais quanto na música, na arquitetura e na literatura, bem como a filiação partidária, a capilaridade de ação popular dentro das mais distintas regiões da URSS e o caráter evidentemente internacionalista dessas produções.

No entanto, o que tornou a cultura musical soviética possível, além de um processo revolucionário de anos, foi o investimento massivo do estado na formação de músicos, compositores, cantores, dançarinos, produtores musicais e todo tipo de profissionais que permitiram o surgimento de uma música que respaldasse, em cada canto do enorme território da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a arte. A postura leninista diante das artes após 1917 pautou a Constituição da URSS, na qual o Artigo 11 prevê que “a vida econômica da URSS é determinada e dirigida pelo plano econômico nacional do estado, com o objetivo de aumentar a riqueza pública, melhorar constantemente as condições materiais dos trabalhadores e elevar seu nível cultural, consolidar a independência da URSS e fortalecer sua capacidade defensiva.” Nessa primeira década de formação do bloco soviético, houve um grande enfoque na música folclórica russa, entoada pelos campos e bairros proletários do país. Havia, inclusive, uma forte postura contra a música clássica, acusada de ser demasiadamente burguesa. Durante esses anos, foi criada a Associação de Músicos Contemporâneos, assim como outras organizações de trabalhadores que permitiram que esses artistas passassem por um processo de proletarização, sendo lidos pela sociedade soviética como trabalhadores tanto quanto aqueles que estavam dentro das fábricas ou nas cooperativas agrícolas.

Após a administração de Lenin, que dura até sua morte no ano de 1924, Stalin assume o poder e governa até 1953. Durante essa segunda administração, há uma postura diferente em relação à cultura do Ocidente, já que as diretrizes do partido começam a ver na música clássica uma forma proveitosa de articular relações diplomáticas a nível internacional, bem como de disseminação dos ideais soviéticos através de uma forma específica de soft power. Isso levou a um investimento maior em áreas mais tradicionais da cultura musical soviética já estabelecida, ainda que mantendo um olhar atento na cultura russa antiga, o que levou, por exemplo, à popularização de canções como “Kalinka”, inclusive performada inúmeras vezes e famosa na voz dos membros do Coral do Exército Vermelho.

Agora voltamos à pergunta: qual a função da música numa sociedade comunista? Talvez seu principal papel seja o de servir e ser produzida pela e para a classe trabalhadora, enquanto forma de entretenimento e trilha sonora para todo tipo de celebração. Também deve ser um lembrete constante da história, uma ferramenta para retornar ao passado, ressaltando sem nostalgia o caquético capitalismo burguês, ao mesmo tem em que abraça a vitória de um novo modelo de sociedade. Um mundo mais justo, menos desigual e comprometido com o humanismo, a irmandade sem fronteiras de todos os povos e a tão sonhada democracia multipolar. Por fim, tudo isso levaria a música a um potencial de criação quase ilimitado: arte criada não mais em prol do lucro de grandes gravadoras e empresários, mas, sim, para ser força motriz de uma revolução cultural.

Loading

Autor: