Paris, São Gonçalo

Conversamos com os produtores Agazero e Gabriel do Borel para entender de que forma o funk e outras músicas eletrônicas brasileiras chegam à curadoria de grandes grifes do mundo e ecoam pelas passarelas

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Fotos: Daniele Oberrauch / Gorunway.com

Junho de 2022. Com várias estrelas e artistas como modelos, a grife francesa Mugler lança seu fashion film para a coleção Primavera/Verão. O vídeo, de quase 10 minutos, tem uma trilha sonora majoritariamente eletrônica, do ballroom ao house – entre faixas de Shygirl, Kevin JZ Prodigy, Yves Tumor e outros, um trecho específico da trilha sonora chama a atenção. “A culpa não é minha / foi dele quem botou na pepeka sem camisinha”, canta MC Lucy em faixa produzida por Gabriel do Borel, enquanto Lourdes Maria (filha de Madonna) e outras modelos desfilam em roupas de altíssimo valor.

Essa cena viralizaria, claro, por ser quase cômica entre brasileiros: o contexto e a letra formam um combo bastante curioso. Mas não seria o primeiro, nem o último flerte da grife com a música eletrônica nacional. Sob direção musical do DJ canadense Total Freedom, a Mugler já trazia uma curadoria de faixas brasileiras. Em seu fashion film Outono/Inverno 2021, a etiqueta reinvidicava “Tosse Break”, do grupo experimental-industrial Tantão e os Fita; já em janeiro de 2023, em Paris, outro desfile da marca tomava as passarelas físicas. Nele, além do uso da faixa “Onda de Balinha”, da funkeira Natralhinha, parte da trilha havia sido produzida pelo DJ Agazero – direto de São Gonçalo, no Rio de Janeiro.

 “Até hoje eu não toco em muitos eventos por aqui no Brasil, nunca tive tanta notoriedade. Mas sinto que depois disso muita gente passou a olhar pra mim, então esse foi um passo muito importante na minha carreira” – Agazero

A participação de Agazero se distingue das outras. Aos 25 anos, o produtor afirma que foi o primeiro brasileiro a assinar uma trilha autoral e exclusiva para a marca, trabalho que continua acontecendo mesmo após o desfile. Agazero, ou Eric, conta que Total Freedom chegou a visitá-lo em São Gonçalo: “Ele sempre dava sugestões (…) e como ele direcionou a criação junto comigo em meu home studio, tudo foi se moldando através de conversas e de uma maneira bem dinânica”. O fruto dessa parceria é uma espécie de house com trap, produzido quase como um projeto colaborativo entre os dois.

Eric ressalta o cuidado de Total Freedom com o trabalho, contratos e remuneração, buscando respeitar as origens e contexto do produtor. “Ele já conhecia todo meu background musical antes da proposta rolar”, lembra. “Ele conhece muitos produtores brasileiros e músicas daqui por ser um grande pesquisador, e já tinha levado influências musicais daqui pra outros desfiles”.

Não é qualquer um que procura visitar e entender de onde vem o produtor que contrata, mas essa parece ser uma preocupação genuína de Total Freedom. Há pistas dessa relação com o Brasil até em seu portfólio próprio: em seu Soundcloud, o DJ (assinando por lá como “Big Gay Idiot”) compartilha sets e remixes que evidenciam o painel de referências levado à Mugler. Em “​​TF DUMMY NUMBER Supraventricular Tachycardia FELIX LEE n MC G15”, por exemplo, ele visita “Beijo Molhado”, do carioca MC G15.

 

A relação Mugler-Brasil pode vir se estreitando, mas não é caso isolado. No desfile de roupas masculinas Outono/Inverno 2023 da Louis Vuitton, em Paris, a curadoria ficou por conta de Rosalía, que, entre canções autorais, escolheu “Sento no Bico da Glock”, também do DJ Gabriel do Borel (que já colaborou com a artista). A canção é reproduzida com efeito distante sobre a voz, fazendo com que os versos “Sento no bico da Glock / Rebolo e tiro o short / E vem, vamos fuder(…)” se tornem mais difíceis de decifrar – mas uma vez que a batida entra, vem cristalina.

O trabalho de Gabriel do Borel vem ganhando cada vez mais repercussão internacional e, por aqui, ele trabalha com estrelas como Anitta e Luísa Sonza. Ao contrário de Agazero, ele conta que o uso de “Na Pepeka Sem Camisinha” no desfile da Mugler foi uma surpresa; já no caso da Louis Vuitton, houve um pedido de autorização prévia. Os dois casos o deixaram extasiado.

“É um misto de sensações, que fica difícil até achar palavras para explicar. O menino do Borel que sonhava em conquistar sua comunidade está voando alto e tendo seu trabalho reconhecido. E tornando o nome do Borel também conhecido” – Gabriel do Borel

Mas estamos falando de uma reaproximação genuína entre moda internacional e cultura brasileira ou esse trato é superficial? Para Luxas Assunção, repórter de moda da Vogue Brasil, pode estar ocorrendo uma reprojeção do Brasil no universo da moda – ainda que lenta. Segundo ele, há um grande número de modelos brasileiras desfilando por essas marcas, além de eventos como o recém-anunciado desfile da Carolina Herrera no Rio de Janeiro.

Mas, para Luxas, esses exemplos de música eletrônica brasileira nos desfiles têm outro simbolismo. “[O uso da música daqui] é um jeito de se mostrar em contato com o zeitgeist, com o que os jovens escutam, em contato com as novidades”, elabora. O som do funk, especificamente, é uma manifestação musical tão original quanto singular – o gênero entrega uma atmosfera eletrônica que esbarra no futurismo, mas que vem quente, frenética e autêntica. É uma semântica que muitas marcas buscam na contemporaneidade para seguirem relevantes. Na falta de palavra melhor, o funk as eleva ao status de disruptivas.

Se, no desfile, o som tem uma carga, a letra tem outra; é comum o estranhamento com o fato de que grifes internacionais, a epítome do luxo, escolham músicas que falam sobre sexo e drogas – vindas da periferia, ainda. No caso da Louis Vuitton citado acima, os versos estavam mascarados, mas quem sabe, sabe. A Mugler já não disfarça. Mas pensando praticamente, seria pouco realista pensar que uma grife desse porte teria escolhido um proibidão explícito sem se informar acerca do significado das letras. “Tem uma confiança imbuída na contratação da pessoa por conta da trilha, o que permite que o diretor criativo não se preocupe com a letra das músicas”, Luxas ressalta. Mas a conotação das faixas não é alheia à direção criativa. “Existe uma consciência de que aquilo é ousado, mas não acho que haja uma preocupação”.

“O uso da música daqui é um jeito de se mostrar em contato com o zeitgeist, com o que os jovens escutam, em contato com as novidades. Acho que existe uma consciência de que a música brasileira é altamente viralizável, e o brasileiro, como público, é muito interessante nas redes sociais. Engaja muito, é muito forte online, temos uma das populações mais online do mundo” – Luxas Assunção, repórter de moda da Vogue Brasil

Talvez haja uma espécie ignorância deliberada que entende que uma parcela pouco significativa do público mundial se atentará ao conteúdo das canções; o que vale, aqui, é a estética sonora. (Ainda que quem conheça as letras as percebam como, também, componentes desse vocabulário sonoro).  E nesse sentido, não faltam músicos, pensadores e críticos gringos que entendem o funk como um som inovador, de nuances e contextos, como, por exemplo, o que atravessam um termo como “pepeka”.

Há um elemento ainda mais importante. Na conversa, Luxas reforça que a possível viralização dos desfiles tem se tornado um ponto central na moda; uma preocupação implícita em explorar possíveis públicos que não estariam presentes fisicamente. E na possibilidade de consumir música puramente pelo seu valor de marketing, não há país mais frutífero nesse sentido que o Brasil: é só passar rapidamente pela timeline do TikTok que não sobrará dúvidas. O consumo internacional de músicas como “Tubarão Te Amo” não acontece só organicamente – porque gringos gostaram da faixa –, mas também porque parecem ter entendido a força viral que carrega um elemento brasileiro. E aí, de que importa o significado sexual (que, no fim das contas, a marca pode alegar desconhecimento)?

Luxas acredita que, com a necessidade de se lançar de outra forma nas redes sociais, as etiquetas têm essa compreensão. “Acho que existe uma consciência que a música brasileira é altamente viralizável e o brasileiro, como público, é muito interessante nas redes sociais. Engaja muito, é muito forte online, temos uma das populações mais online do mundo”.

Essa viralização em potencial do conteúdo brasileiro é um sintoma agudo nacional. Ficamos tão encantados com nossa “presença” cultural em espaços antes inacessíveis que esquecemos de questionar a forma com que isso se dá ou para que lado pende a balança. É uma vitória, com vírgulas e ressalvas – e que acontece porque é vantajosa para o outro lado também. “O funk hoje tem chegado a lugares que era muito difícil de se pensar há bem pouco tempo. O que é uma grande vitória para o movimento. Mas ainda existem barreiras que precisam ser quebradas”, lembra Gabriel do Borel.

Barreiras nacionais, inclusive. De bom grado, retribuímos o uso de faixas nacionais nesses desfiles com muitas visualizações e compartilhamentos; com mais atenção à marca que utilizou a faixa do que a valorização do artista por trás. “Até hoje eu não toco em muitos eventos por aqui no Brasil, eu nunca tive tanta notoriedade. Mas sinto que depois disso muita gente passou a olhar pra mim, então esse foi um passo muito importante na minha carreira”, conta Agazero.

Por estética, viralização ou apreciação, as grifes parecem enxergar o que nos recusamos: a curadoria de um diretor musical de etiqueta francesa chega a um produtor de São Gonçalo, que não tinha a mesma visibilidade em casa. Para além do que o Brasil fornece para fora, talvez a gente precise entender o que os de fora podem nos fornecer. Uma noção de que o ouro está aqui e, dessa vez, não deve ser extraído antes que a gente o veja – ou entenda o quanto vale.

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