Resistir na rave: 25 anos de “Interstellar Fugitives”

Em 1998, o Underground Resistance, coletivo de música eletrônica de Detroit, lançou um disco que, com pitadas de afrofuturismo e ficção científica, evidenciou a força do techno como ferramenta política e antirracista

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Fotos: Reprodução

Foi em Detroit, em 1998, que o Underground Resistance lançou Interstellar Fugitives, o primeiro LP do coletivo e um dos discos mais aclamados de techno “das antigas”. Nesses 25 anos muita coisa mudou na dance music e na cultura clubber, especialmente no que diz respeito a certo apagamento do passado e das origens negras, latinas e proletárias do techno e do house, além de uma evidente privatização e elitização de festas, antes mais acessíveis e diversas. Por isso, é tão importante abordar esse disco a partir da perspectiva da própria história do techno – suas origens e seu legado de conscientização política, antirracismo, além de pitadas de afrofuturismo e ficção cientifica. Coloque os óculos escuros, pegue sua garrafinha de água e bora pra pista!

Da lama ao ouro: as origens do techno e a crise econômica de Detroit

Qualquer abordagem séria da história do techno precisa falar sobre a cena dos anos 1980 e 1990 na cidade de Detroit, no estado de Michigan, localizado no Meio-Oeste dos Estados Unidos. Conhecida no passado como capital industrial modelo do fordismo e das linhas de montagem, a cidade abrigava grandes fábricas automotivas como a Ford Motor Company e a General Motors. No entanto, uma forte recessão econômica após o governo Reagan, colocou um dos principais polos industriais do país em crise extrema, com dezenas de bairros abandonados, centenas de galpões vazios, níveis exponenciais de pobreza, falta de moradia e aumento vertiginoso da criminalidade numa região majoritariamente negra e latina do país. Além disso, grandes gravadoras da cidade como a Motown Records foram para Los Angeles, deixando um espaço de resistência e cultura negra a ser preenchido com níveis audaciosos de experimentação.

É por conta desse esvaziamento econômico e populacional que começaram a acontecer festas em espaços da cidade que não vinham cumprindo qualquer função social, especialmente dentro das montadoras automobilísticas, largadas às traças. Há um estudo feito pela pesquisadora Isobel Moloney, na Universidade de Leeds, na Inglaterra, que demonstra que cenários de crise econômica, instabilidade política e/ou conflitos armados fazem as pessoas quererem festejar mais. Prontamente os espaços passaram a ser frequentados por toda uma juventude que tinha pouquíssima ou nenhuma inserção no mercado de trabalho, além de grupos já historicamente marginalizados como pessoas LGBTQIA+, pessoas imigrantes e pessoas negras.

A primeira onda do Detroit Techno (DT) se deu na metade dos anos 1980 capitaneada pelo The Belleville Trio, dos “bruxões” do techno Derrick May, Kevin Saunderson e Juan Atkins, amigos de escola que se inspiraram profundamente na ficção científica de Star Wars e outros clássicos do gênero para criarem as primeiras composições do que veio a inaugurar o techno. O afrofuturismo aparece aqui como caminho e filosofia na produção de muitas faixas, evocando narrativas sobre civilizações africanas distópicas altamente desenvolvidas tecnologicamente e, dessa forma, desafiando a percepção colonialista do primitivismo das culturas africanas. As principais inspirações desses produtores vieram do som vanguardista de grupos como Kraftwerk e Yellow Magic Orchestra, mas também de Parliament Funkadelic, Herbie Hancock e Rick James – tudo isso sendo sintetizado na clássica bateria eletrônica Roland 808, eternizada no seu uso para desenvolver o estilo.

A segunda geração do DT, que deu origem ao coletivo musical Underground Resistance (UR), teve como membros verdadeiras lendas da música eletrônica: de Jeff Mills a Gerald Donald, de DJ Rolando a Santiago Salazar, de Robert Hood a Mike Banks, DJ 3000 e o grupo Los Hermanos. Além desses, uma série de nomes fantásticos que moldaram o gênero ajudaram a construir o coletivo. O UR é, antes de tudo, a prova viva de que techno nunca foi música de branco playboy na sua essência, já que a maioria de seus membros eram de origem proletária, em sua maioria negros e latinos de origem mexicana ou chicanos, como se autodenominam hoje os mexicano-estadunidenses.

É com o UR também que se intensifica a presença do afrofuturismo nas músicas enquanto ferramenta decolonial e antirracista, reivindicando através de narrativas sobre robôs, aliens e civilizações interestelares um futuro digno para os filhos da diáspora africana. Podemos dizer até que eles teriam sido precursores do chamado IDM (Intelligent Dance Music), posteriormente encabeçado por nomes como Aphex Twin, The Future Sound of London e The Orb. Um exemplo disso é um dos vários pseudônimos de Gerald Donald e James Stinson – Drexciya. O nome da dupla se refere a uma mitologia afrofuturista criada pelos próprios artistas, que desenvolveram esse projeto em anonimato por quase toda a sua existência. Os chamados drexciyanos seriam um grupo étnico de habitantes subaquáticos do Oceano Atlântico, descendentes de mulheres africanas grávidas que teriam sido jogadas ao mar durante os vários séculos do tráfico negreiro através das rotas transatlânticas. Os bebês que carregavam em seus ventres desenvolveram a habilidade de respirar embaixo da água, e o projeto serve como proposta imaginária do tipo de música que eles escutam nesse contexto distópico.

O Gene R1 e as mitologias cibernéticas de Interstellar Fugitives

O primeiro LP lançado pelo coletivo em 1998 carrega as incursões experimentais da música eletrônica de Detroit em 15 faixas, de modo que nos resta agora a difícil tarefa de destacar algumas delas neste artigo. Antes disso, contudo, vale pontuar: a elaboração conceitual dos discos do UR sempre foi complexa, repleta de histórias e narrativas literárias criadas em cima das faixas, o que tornam as canções vanguardistas não apenas pela maneira como soam, mas pela informação política que carregam. Nos encartes do CD, que podem ser consultados na internet, existe um texto extenso explicando que, ao longo da história, sempre houve movimentos de resistência contra o que o espírito humano reconhecia como maléfico, mas que a sociedade normalizou.

A resistência, dentro da mitologia afrofuturista do UR, está associada a um gene chamado R1, tido como mais antigo do que a própria humanidade, mas que aparece entre uma a cada cinco mil pessoas e se comunica por meio de códigos secretos incutidos em padrões rítmicos de batidas percussivas, algo que veio acompanhando todas as sociedades humanas no passar dos séculos. Além de se atribuir consciência a esse gene misterioso, se acredita que ele se comunique a partir da expressão artística, e que esteja diretamente associado a incontáveis rebeliões, revoluções e derrubadas de governo.

O disco começa com uma faixa ambiente chamada “Zero is My Country” produzida por Chamaleon, preparando o terreno juntamente da segunda faixa chamada, “Maroon”, produzida por James Pennington aka The Suburban Knight. Essa crescente culmina em “Nannytown”, creditada ao UR, de batida sincopada que se distancia do ritmo habitual do electro, sob sintetizadores intergalácticos, pratos gritantes e vocais que dizem:

I, I’m a voice from the past

Standing in the future

To forever haunt you

You should’ve never done this to us

‘Cause now we can never rest

We are

Black, electric

Strong, electric

Eu, eu sou uma voz do passado

Em cima do futuro

Para sempre te perseguir

Você nunca deveria ter feito isso conosco

Porque agora não poderemos descansar

Nós somos

Negros, elétricos

Fortes, elétricos

A canção faz referência ao gene R1 – essa voz do passado existindo no futuro, nos perseguindo constantemente. Outra faixa fascinante é “Mi Raza”, de apenas um verso que parece dizer algo sobre uma terra prometida, em vocais de tons graves cheios de distorções e acompanhados de batidas frenéticas de electro produzidas por DJ Rolando aka The Aztec Mystic. Repare que aqui a utilização da língua espanhola no título e o próprio nome artístico do produtor em referência ao povo asteca revela uma conexão evidente com a cultura mexicana.

Já em “Something Happened on Dollis Hill”, produzida por Andre Holland aka The Infiltrator, notamos a presença do verso “¿qué pasa raza?” ao longo do groove, numa busca pela comunicação com a audiência latina e especialmente chicana. A frase basicamente faz uma pergunta ao ouvinte, mas de forma direcionada à “raça”, ou seja, provavelmente àqueles que se identificam como parte da comunidade latina nos Estados Unidos, mas também fazendo referência a outras comunidades racializadas dentro do contexto extremamente racista estadunidense. Os elementos instrumentais também surpreendem em sua composição, com um marcante dedilhado de baixo sampleado ao longo de toda a faixa, além de instrumentos que remetem a sons tradicionais da cultura musical latino-americana como as claves e o guiro, muito presentes na salsa e em outros ritmos caribenhos. Já o título faz provável alusão a uma dupla pioneira da música eletrônica que surgiu em Dollis Hill, na Inglaterra do final dos anos 1980, chamada 4hero.

(Nicole Fara Silver - The New York Times, 2014)

Há ainda “Afrogermanic”, com batida de electro pesadíssima e influências profundas de techno. Ela foi produzida por Chaos aka Marc Floyo, numa reflexão sobre desinformação e alienação que nos serve muito bem na atualidade, especialmente ao pensarmos sobre a veiculação de verdades duvidosas e afirmações supostamente qualificadas, porém repletas de incoerências e inconsistências, nos levando à necessidade de um retorno a nós mesmos, às nossas intuições e experiências.

Everything you hear may not be there

Look inside your soul

Listen to your heart

It might be a mirage

Everything you see may not be real

Everything you read may not be true

Tudo o que você ouve pode não estar ali

Olhe para dentro da sua alma

Escute seu coração

Talvez seja uma miragem

Tudo o que você vê pode não ser real

Tudo o que você lê pode não ser verdade

“Intersteller Crime Report” faz referência à produção anterior, o que acontece em outros momentos do disco nos quais uma faixa usa o nome da outra em seus versos, o que não parece ter sido um erro de nomenclatura nos meios digitais, mas, sim, uma decisão consciente de experimentação. Nos versos dessa faixa, também carregada de batidas sincopadas, sintetizadores intergalácticos e sons cibernéticos, ouvimos versos que misturam inglês e alemão com os dizeres:

I’m afrogermanic

Ich spreche Deutsch

Afrogermanic

Wir spreche Deutsch

Eu sou afro-germânico

Eu falo alemão

Afro-germânico

Nós falamos alemão

O Underground Resistance, seja como grupo ou a partir de seus membros individualmente, é uma verdadeira revolução do techno, do electro, do IDM e de uma série de outros gêneros e estilos da música eletrônica. Sem suas contribuições, a dance music e a cultura clubber jamais seriam as mesmas. Se hoje vemos um cenário musical de apropriação cultural pela branquitude e um adestramento desses gêneros e estilos musicais, é porque isso se converteu numa grande indústria multimilionária que já pouco tem a ver com preceitos ideológicos, políticos e referentes à diversidade étnica, ao antirracismo e à militância inerente ao DT.  Mas ainda encontramos facetas contemporâneas que dialogam com essa proposta, como a cena dos bailes funks brasileiros e as festas de cumbia, neoperreo e reggaeton experimental espalhadas por todas as quebradas da América Latina. Nessa comemoração dos 25 anos de Interstellar Fugitives, lembremos que música e festa podem ser atos políticos – e que a liberdade de ser e estar no mundo, promovida por esses lugares e movimentos, deve ser valorizada, nutrida e construída por amantes da música eletrônica e da vivência underground.

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